A dialética da dissimulação

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Por FÁBIO KONDER COMPARATO*

Na duplicidade permanente de nossa organização política, a grande constante foi o encobrimento dos verdadeiros titulares do poder soberano.

Em obra primorosa,[i] Alfredo Bosi focalizou o caráter intrinsecamente contraditório do processo colonizador do Brasil. Inspiro-me nessa visão metodológica, para ressaltar aqui outra oposição entre aparência e realidade, formando uma unidade dialética: o caráter fundamentalmente dissimulado dos nossos grupos sociais dominantes, com fundas repercussões na vida social.

Para ilustrar esse propósito e, concomitantemente, prestar homenagem a um dos melhores comentadores da literatura brasileira, recorro neste texto a citações de obras de alguns de nossos maiores literatos, notadamente Machado de Assis.

O desdobramento da personalidade

Começo por lembrar o jovem personagem do conto O Espelho, de Machado de Assis.[ii] Como asseverou o narrador a seus ouvintes espantados, cada um de nós possui duas almas. Uma delas exterior, que exibimos aos outros, e pela qual nos julgamos a nós mesmos, de fora para dentro. Outra, interior, raramente exposta aos olhares externos, com a qual julgamos o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora. Uma simples vestimenta – no caso a farda de alferes da Guarda Nacional – foi capaz de criar para o jovem personagem do conto uma dupla personalidade.

O uniforme representou uma espécie de alma exterior, graças à qual ele já não mais se enxergava absolutamente sozinho e isolado do resto do mundo, num sítio do qual a proprietária, sua tia, se havia ausentado há vários dias, e todos os escravos fugido na noite seguinte à ausência da dona. Quando se enxergava não fardado no espelho, sua imagem aparecia “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Bastou, porém, vestir a farda e olhar-se novamente no espelho para rever-se nitidamente, “nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso”; voltara a ser ele próprio, pois havia reencontrado sua alma exterior.

No curso de toda a nossa história, até hoje, com ínfimas variações, esse desdobramento de personalidades perdurou no seio dos nossos grupos abastados. No meio doméstico ou na esfera privada, as pessoas vivem com os defeitos e qualidades de sua alma interior, encoberta aos olhares externos. Já na esfera pública, o personagem se transforma, ele é outro, quase que totalmente diverso.

Uma das razões explicativas dessa personalidade dúplice, que chega às raias da esquizofrenia, é, sem dúvida, a permanência entre nós do complexo colonial, mesmo após a Independência. Como asseverou Sérgio Buarque de Holanda,[iii] a tentativa de implantação da cultura europeia em um ambiente que lhe era largamente estranho fez com que nossas classes dirigentes vivessem como desterradas em sua própria terra. Sua mentalidade ou visão de mundo, componente da “alma exterior” na nomenclatura do conto machadiano, nada mais era, até praticamente meados do século passado, do que a cópia apócrifa daquela vigente em terras europeias, e que tinha pouco a ver com a realidade social propriamente brasileira.

Sem dúvida, a partir do término da Segunda Guerra Mundial, com o enfraquecimento da influência econômica e cultural das potências europeias no concerto das nações, a mentalidade de nossos grupos dominantes ampliou seus horizontes, embora permanecendo sempre vinculada aos países ditos civilizados. Mas o desdobramento da personalidade permaneceu imutável, pois a “alma interior” continuou praticamente a mesma, segundo o velho brocardo: “quem pode manda, obedece quem tem juízo”.

Em suma, o caráter de nossas mal chamadas “elites” sempre foi bovarista, como bem salientou Tristão de Athayde.[iv] À semelhança da trágica personagem de Flaubert, elas procuram fugir do ambiente canhestro e atrasado em que vivem, e que as envergonha, de modo a sublimar na imaginação, para o país todo e cada pessoa em particular, uma identidade e condições ideais de vida que fingem possuir, mas que lhes são de fato completamente estranhas.

Para a consolidação dessa duplicidade de caráter, muito contribuiu a civilização capitalista, que aqui aportou juntamente com os primeiros descobridores e exploradores do território. Com efeito, a dissimulação permanente, com a oposição sistemática entre aparência e realidade, constitui um elemento indissociável do espírito capitalista. Ela se manifesta, tradicionalmente, pela longa experiência da publicidade mercantil, bem como pela dissimulação do poder.

No primeiro caso, o método de atuação é o mesmo empregado por Satanás no mito bíblico da primeira e fatal desobediência do ser humano aos mandamentos do Criador, tal como relatado no Capítulo 3 do Gênesis. O mercador age como a serpente, “o mais astuto de todos os animais dos campos”. Ao oferecer suas mercadorias ou serviços, ele não argumenta com base na razão, mas dirige-se, antes, aos sentimentos ou às paixões ocultas do eventual comprador.

Da mesma forma na esfera política, os líderes capitalistas procuram sempre manter-se em posição encoberta ou dissimulada, como sujeitos ao poder do Estado, quando, na verdade, vivem e prosperam intimamente ligados aos grandes agentes estatais, formando uma dupla oligárquica. Pois, como bem advertiu o historiador francês Fernand Braudel, que lecionou na Universidade de São Paulo logo após a sua fundação, “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”.[v] E em pouco tempo, graças a essa associação oculta, a vida social é inteiramente transformada pela ética da incessante busca do interesse material.

Em soneto célebre, reproduzido pelo Professor Bosi no capítulo 3 da sua Dialética da Colonização, Gregório de Matos relatou essa transformação radical ocorrida na Bahia no século XVII, quando Salvador tornou-se o principal porto comercial do Brasil: “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado! / Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, / Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando e tem trocado / Tanto negócio e tanto negociante. / Deste em dar tanto açúcar excelente / Pelas drogas inúteis, que abelhuda / Simples aceitas do sagaz Brichote. / Oh se quisera Deus que de repente / Um dia amanheceras tão sisuda / Que fôra de algodão o teu capote!”

Essa dialética da dissimulação, na qual aparência e realidade fundem-se para dar nascimento a uma unidade contraditória, produziu a sistemática duplicação de nossos ordenamentos jurídicos. Com efeito, por trás do direito oficial – em geral de nível equivalente ao dos países mais adiantados, mas de vigência mais aparente do que efetiva –, vigora outro direito, em tudo conforme aos interesses da oligarquia dominante. Quando chamados a julgar as lides forenses envolvendo integrantes da oligarquia, os órgãos do Poder Judiciário optam em geral pela aplicação deste último ordenamento, travestido em direito oficial, graças aos refinados recursos da técnica exegética.

Foi o que sucedeu em nossa história com a escravidão e as instituições políticas, como se passa a ver.

As duas faces da escravidão

Durante muito tempo, historiadores e sociólogos consideraram ter havido um claro contraste entre a escravidão de africanos nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto lá os escravos foram tratados cruelmente, aqui os cativos teriam recebido tratamento benigno, senão francamente protetor.

A meu ver, na origem dessa suposta contradição de atitudes encontramos uma diferença radical de mentalidades entre os dois povos. Os americanos, além de não dissimularem suas convicções e dizerem francamente o que pensam, não costumam ocultar seus atos de crueldade. E foi isto que esteve na origem da mais longa e sanguinária guerra civil do século XIX. Nós, ao contrário, timbramos em proclamar nossa ausência de preconceitos em relação aos negros e pobres, e encobrimos sistematicamente as brutalidades contra eles praticadas; o que nos levou a abolir a escravidão sem grandes conflitos.

Sob esse aspecto, encarnamos à perfeição o poeta fingidor de Fernando Pessoa. Fingimos tão completamente, que chegamos afinal a nos convencer de nossa “índole reconhecidamente compassiva e humanitária”, como afirmou Perdigão Malheiro, autor de um tratado jurídico sobre a escravidão brasileira no século XIX.[vi] E foi assim que sempre nos apresentamos aos olhares estrangeiros. Na Exposição Internacional de Paris de 1867, por exemplo, nosso governo informou, oficialmente, que “os escravos são tratados com humanidade e são em geral bem alojados e alimentados… O seu trabalho é hoje moderado… ao entardecer e às noites eles repousam, praticam a religião ou vários divertimentos”.[vii]

A realidade, contudo, contrastava brutalmente – é bem o caso de dizer – com essa falaciosa apresentação dos fatos. A Constituição de 1824 declarou “desde já abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179, XIX).

Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a aplicação da pena de galés, a qual, conforme o disposto em seu art. 44, “sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade, tida por não cruel pelo legislador de 1830, só se aplicava de fato aos escravos.

Dentre os vários instrumentos de tortura sistematicamente aplicados aos escravos, um dos mais comuns era a máscara de folha-de-flandres. No conto “Pai contra mãe”,[viii] Machado de Assis assim a descreve: “A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”.

Outro instrumento de tortura largamente aplicado aos cativos era o ferro ao pescoço. Nesse mesmo conto, Machado de Assis explica que tal instrumento visava a punir e desvelar aos olhos de todos os escravos fujões. “Imaginai”, diz ele, “uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado”.

Não era, aliás, de surpreender que os escravos fugissem com frequência, e que “pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre”, acrescenta Machado de Assis, “mas por ser instrumento da força com que se mantém a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem”.

E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os cativos foram, até as vésperas da abolição, mais precisamente até a Lei de 16 de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas num só dia. A lei supracitada só foi votada na Câmara dos Deputados porque, pouco antes, dois de quatro escravos condenados a 300 açoites por um tribunal do júri de Paraíba do Sul vieram a falecer.

Tudo isso, sem falar dos castigos mutilantes, como todos os dentes quebrados, dedos decepados ou seios furados.

Uma lei de 1835 dispôs que seriam punidos com a morte, após um processo judicial sumário, os escravos que matassem ou ferissem gravemente o seu senhor, a mulher deste, seus descendentes ou ascendentes; ou o administrador, feitor e suas mulheres. Mas a lei teve reduzida aplicação. Os senhores rurais consideravam pura perda de tempo recorrer a um processo judicial, ainda que expeditivo, quando, em sua qualidade de legítimos proprietários, podiam fazer o que bem entendessem com o que lhes pertencia. O escravo era uma coisa; não uma pessoa.

Apesar de ter sido mantido constantemente em recato, é inegável que o direito não oficial da escravidão jamais deixou de ser aplicado. Um bom exemplo, a esse respeito, foi a permanência do tráfico negreiro por longos anos, em situação de gritante ilegalidade.

Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo rei português ainda no Brasil, em cumprimento a tratado celebrado com a Inglaterra, determinou a proibição do comércio infame sob pena de perdimento dos escravos, os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente, firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, tal proibição foi reiterada pela lei de 7 de novembro de 1831.

Mas todo esse aparato jurídico oficial permaneceu letra morta, pois fora editado unicamente “para inglês ver”. Como lembrou o grande advogado negro Luiz Gama, ele próprio vendido como escravo pelo pai quando tinha apenas 10 anos, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério; eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!…”[ix]

Efetivamente, na opinião pública o tráfico negreiro nada tinha em si de ignóbil. Antiético não era tratar seres humanos como mercadorias, mas sim deixar de pagar religiosamente as dívidas mercantis.

Machado de Assis ilustrou tal fato com o personagem Cotrim, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas[x]. Como afirmado no romance, “ele possuía um caráter ferozmente honrado (…). Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”.

Diante desse quadro trágico, não era de estranhar que os próprios escravos desenvolvessem, eles também, o costume de uma dualidade de atitudes diante dos senhores.

Foi o que sucedeu, por exemplo, com a prática da capoeira,[xi] uma invenção dos escravos fugitivos e perseguidos. De início, era ela uma espécie de luta corporal. Não possuindo armas suficientes para se defenderem, fazia-se necessário aos negros cativos desenvolver uma forma de enfrentar as armas inimigas, unicamente com seu próprio corpo. Tiveram, então, a ideia de seguir o exemplo dos animais, com marradas, coices, saltos e botes.

A denominação dessa forma de luta corporal veio do mato onde os escravos fugitivos se entrincheiravam e treinavam essa forma de resistência. De fato, a capoeira foi, inicialmente, uma forma de defesa dos quilombolas no meio rural. Nos espaços controlados pelo senhor, todavia, os escravos tinham necessidade de dissimular essa característica de combate corporal da capoeira, apresentando-a como uma forma de dança, simples divertimento enfim. De onde o aparecimento do berimbau, utilizado na verdade para avisar a aproximação dos senhores, feitores ou capitães-do-mato.

Com a abolição da escravatura, os capoeiras foram aproveitados como membros da Guarda Negra, fundada por José do Patrocínio para defender a Princesa Isabel e praticar distúrbios e violências nas manifestações republicanas. De onde o fato de o Código Penal de 1890 haver tipificado, em seu artigo 402, a capoeiragem como um delito especial.[xii]

A duplicidade permanente de nossa organização política

Sem dúvida, o dualismo estrutural é próprio do fenômeno político. Há nele sempre uma relação dialética entre as ideias e a ação concreta, entre os costumes e o direito estatal, entre o pensamento crítico e as instituições de poder. Nessa realidade essencialmente bipolar, nenhum lado pode subsistir sem o outro.

Há casos, porém, em que esse confronto real é falseado, porque ao lado da realidade política constrói-se um teatro político, onde o pensamento é declamatório e os agentes despem-se da sua personalidade vivida, para se transformarem em personagens dramáticos. Ou seja, a persona volta a ser a máscara teatral das origens.

É o que sempre aconteceu entre nós, desde que adotamos o sistema de representação política. Ainda aí, Machado de Assis soube caracterizar perfeitamente a dissimulação da realidade pelas aparências. No conto “A Teoria do Medalhão”[xiii], por ocasião da maioridade de seu filho o pai decide dar-lhe conselhos de vida independente. A principal orientação dada é a do ofício a ser exercido pelo filho; a saber, o de medalhão. Consiste ele, essencialmente, esclareceu o pai, em não ter ideias próprias sobre assunto algum. E concluiu: “Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício”.

Ocorre, então, o seguinte diálogo: “– E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os déficits da vida? / – Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade. – Nem política? / – Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do schibboleth bíblico”.

No contexto dessa dissimulação própria de toda a nossa vida política, a grande constante foi o encobrimento dos verdadeiros titulares do poder soberano. Como já foi salientado acima, desde o Descobrimento tal poder tem pertencido, sem descontinuar, a uma dupla oligárquica, formada pelos potentados econômicos privados, aliados aos grandes agentes estatais.

Ou seja, quem manda nestas terras não é isoladamente a burguesia, como sustentam os marxistas, nem tampouco exclusivamente o estamento burocrático, como pretendeu Raymundo Faoro,[xiv] na linha da interpretação weberiana. A soberania desde sempre pertence a ambos esses grupos, permanentemente unidos, na linha da mais longeva tradição capitalista.

Machado de Assis referiu-se en passant a essa constante estrutura dúplice de poder em nossa sociedade, ao assim caracterizar o personagem do conto “A Chave”[xv]: “vê-se que é abastado ou exerce algum alto emprego na administração”.

Não é, pois, de estranhar se, desde as origens, segundo a mentalidade privatista do capitalismo, a dupla oligárquica passou a servir-se do dinheiro público como patrimônio próprio, gerando a duradoura endemia da corrupção estatal; corrupção essa que, durante séculos, gozou de total impunidade, em contraste com a dura repressão da mais leve desonestidade praticada pelos integrantes da camada pobre de nossa população. É, aliás, o que o mesmo Machado ilustrou no conto denominado “Suje-se gordo!”[xvi]

A característica principal da nossa soberania oligárquica binária consiste no fato de nunca ter tido assento em nossos costumes políticos o louvado princípio do Estado de Direito; ou seja, a Constituição e a lei jamais sobrepujaram a vontade e o interesse próprio dos grupos dominantes.

Foi o que ilustrou Manuel Antônio de Almeida, em passagem célebre de Memórias de um Sargento de Milícias (capítulo 46). Querendo livrar seu jovem afilhado do castigo que lhe impusera o major Vidigal, a comadre protetora foi procurá-lo, e ele, querendo atalhar a conversa, foi logo dizendo: “– Já sei de tudo, já sei de tudo”. “– Ainda não, senhor major, observou a comadre, ainda não sabe do melhor e é que o que ele praticou naquela ocasião quase que não estava nas suas mãos. Bem sabe que um filho na casa de seu pai”. – Mas um filho quando é soldado, retorquiu o major com toda gravidade disciplinar… – Nem por isso deixa de ser filho, tornou Dona Maria. – Bem sei, mas a lei? – Ora, a lei… o que é a lei, se o Senhor major quiser?…O major sorriu-se com cândida modéstia”.

Eis a razão pela qual nada mais temos feito, no campo político, do que viver uma série ininterrupta de “lamentáveis mal-entendidos”, segundo a expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda.[xvii] Ele se referiu especificamente à democracia, mas o qualificativo também se ajusta como uma luva ao liberalismo, à república, e ao constitucionalismo aqui praticados.

Um liberalismo de fachada

Como bem esclareceu José Maria dos Santos,[xviii] “na América pós-colonial, onde a ficção da investidura divina chegou tarde demais para ter crédito, nunca pôde o despotismo dispensar os atavios da liberdade. O esforço principal e constante dos publicistas, nesta parte do mundo, tem quase exclusivamente consistido em demonstrar, entre duas violências, quanto o poder pessoal absoluto se coaduna e identifica com a mais perfeita democracia, desde que, transmissível a períodos certos, não possa fundar-se em direitos hereditários”.

No ensaio Existe um Pensamento Político Brasileiro?,[xix] Raymundo Faoro pôs a nu a falácia do nosso liberalismo durante o Império. Na verdade, não só então, mas também em vários outros momentos ulteriores, a ideologia liberal tem sido para nós, como bem advertiu Sérgio Buarque de Holanda, “uma inútil e onerosa superfetação”.[xx] Foi em nome da defesa das liberdades que se instituiu o Estado Novo em 1937 e se instaurou o regime empresarial-militar trinta anos depois.

Ao iniciarmos nossa vida política independente, o liberalismo representava o progresso e a modernidade. Não podia, pois, deixar de seduzir o caráter bovarista de nossas elites. Logo no princípio da Fala do Trono de 1823, dirigida aos membros da assembleia constituinte, nosso primeiro imperador os incitava a dar ao país “uma justa e liberal constituição”.[xxi] Os destinatários do discurso imperial, em lugar de tomarem tais adjetivos em sentido puramente simbólico, conforme o padrão convencional, procuraram ao contrário dar-lhes um alcance prático: a limitação do poder dos governantes, pelo reconhecimento e a garantia das liberdades civis e políticas. O monarca não demorou em despertá-los desse devaneio infantil e colocá-los com os pés no chão: a constituinte foi dissolvida manu militari e o país recebeu das mãos do imperante, segundo suas próprias palavras, uma constituição “duplicadamente mais liberal”,[xxii] posta em vigor sem debates nem aprovação dos representantes do povo.

No Império, a grande maioria dos políticos que militaram no partido liberal era incapaz de explicar como a ideologia do liberalismo podia, ainda que minimamente, harmonizar-se com a escravidão. Vinculavam-se quase todos, direta ou indiretamente, aos interesses do latifúndio; mas ao mesmo tempo sustentavam as teses, ditas de direito natural, de que os homens não se confundem com as coisas suscetíveis de alienação, e de que a liberdade é apanágio de todo ser humano e nunca uma concessão dos governantes.

Além disso, ao mesmo tempo em que defendiam por princípio as liberdades individuais, aceitavam sem maiores constrangimentos o exercício regular do poder pessoal pelo imperador. O próprio Joaquim Nabuco, líder incontestado dos abolicionistas, no calor de um debate parlamentar acabou por admitir a sua efetiva descrença no princípio do governo das leis e não dos homens, para resolver os problemas nacionais.

Em discurso pronunciado no Parlamento do Império,[xxiii] o grande tribuno reconheceu que o imperador tinha o dever de exercer sua soberania, de origem divina, sem fazer cerimônia em relação ao Poder Legislativo constitucional: “Eu nunca denunciei o nosso governo por ser pessoal, porque com os nossos costumes o governo entre nós há de ser sempre por muito tempo ainda pessoal, toda a questão consistindo em saber se a pessoa central será o monarca que nomeia o ministro ou o ministro que faz a Câmara… O que sempre fiz foi acusar o governo pessoal de não ser um governo pessoal nacional, isto é, de não se servir do seu poder, criação da Providência que lhe deu o trono, em benefício do nosso povo sem representação, sem voz, sem aspiração mesmo”.

Tratava-se, em suma, por parte de um liberal de quatro costados, de aceitar na prática o regime inveterado da autocracia, bem expresso na fórmula cunhada pelo Visconde de Itaboraí, e que refletia fielmente a realidade política: “o rei reina, governa e administra”.

Nenhuma surpresa, pois, no fato de que os dois partidos do Império – os conservadores, ditos saquaremas, e os liberais, apelidados de luzias – divergentes no estilo, mas não na prática política, tenderam inelutavelmente a convergir no centro, realizando assim a grande vocação nacional: conciliar os grupos oligárquicos. Holanda Cavalcanti caracterizou essa realidade com o dito célebre: “nada mais igual a um saquarema do que um luzia no poder”.

Joaquim Nabuco, ainda aí, soube tirar a lição dos fatos e anunciar o futuro. No discurso que pronunciou na Câmara em 24 de julho de 1885 acerca do projeto da lei que libertava os escravos sexagenários, observou que um deputado pelas Alagoas havia denunciado a formação de um “partido dos centros, disposto a receber ao mesmo tempo o elemento adiantado do partido conservador e os elementos atrasados do liberal, impelindo a melhor, a grande parte deste partido evidentemente para a república, e a parte atrasada do partido conservador… creio que também para a república (Risos)”.[xxiv]

Uma república privatista

É sabido que a proclamação da República não passou de um equívoco. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se”.  E acrescentou logo, como para justificar de alguma sorte o seu republicanismo decepcionado: “O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos”.  Tudo isso não impediu que a proclamação da república pelos membros do governo provisório principiasse pela invocação do povo; o que levou o representante diplomático norte-americano no Rio de Janeiro, embora francamente favorável ao novo regime, a deplorar, em despacho endereçado em 17 de dezembro de 1889 ao Secretário de Estado, em Washington, o pouco caso que assim se fazia da vontade popular.[xxv]

Escusado dizer que não estava na mente de nenhum dos líderes intelectuais do movimento, todos positivistas, lutar contra o multissecular costume, já denunciado por Frei Vicente do Salvador no início do século XVII, por força do qual “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.[xxvi]

Na realidade, o abandono pela oligarquia do regime monárquico resultou diretamente da abolição da escravatura. Eis porque, naquele período histórico, a república foi rejeitada maciçamente pela população negra, pois era sentida por esta como uma vingança contra a Princesa Isabel, dita A Redentora, como assinalado acima.[xxvii]

Em sua obra póstuma Linhas Tortas,[xxviii] Graciliano Ramos assim caracterizou nossa assim chamada República Velha: “A Constituição da república tem um buraco. É possível que tenha muitos, mas sou pouco exigente e satisfaço-me com referir-me a um só. Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes – o executivo, que é o dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável, mas que é tacitamente considerado o sumário dos outros três. É aí que o carro topa. Há no Brasil um funcionário de atribuições indeterminadas, mas ilimitadas. Aí está o rombo na constituição, rombo a ser preenchido quando ela for revista, metendo-se nele a figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota”.

E de fato, como bem observou pioneiramente Alberto Torres,[xxix] em 15 de novembro de 1889 institucionalizamos o coronelismo estadual. Malgrado aquilo que veio determinar a Constituição de 1891 (para norte-americano ver, é bem o caso de dizer), o presidente da República tornava-se o delegado dos governadores (originalmente ditos presidentes) dos Estados na chefia do governo federal; e os governadores, por sua vez, passavam a derivar seu poder político do apoio recebido dos chefes locais, todos ou quase todos senhores de baraço e cutelo em seus respectivos latifúndios.

Na verdade, durante toda a República Velha os chefes locais dominantes eram de São Paulo e Minas Gerais, estabelecendo-se assim o costume – obviamente não fundado na letra da Constituição – da alternância de um paulista e um mineiro como Chefe de Estado. Ao romper essa regra costumeira ao final de seu mandato, designando o paulista Júlio Prestes para sucedê-lo na presidência, em lugar do mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Washington Luís precipitou a Revolução de 1930.

Como se percebe, sob o roto véu republicano despontou, desde logo, a realidade federativa, asseguradora da autonomia local aos potentados estaduais. Era isso, de fato, o que passou a contar antes de tudo, quando, a partir do término da Guerra do Paraguai, a crescente prosperidade da cultura do café na região sudeste do país impelia as oligarquias rurais a se desembaraçar do poder central e a reivindicar maior autonomia de atuação em seus territórios, tanto no domínio econômico, quanto no político. É de se lembrar que os signatários do Manifesto Republicano de 1870 encerraram sua proclamação, no estilo farfalhante da época, “arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo”.

Com efeito, no ocaso do Império os líderes republicanos mais atilados perceberam que o essencial, na defesa dos interesses dos senhores rurais, não era propriamente a república, mas a federação. Em 1881, ao discursar na Câmara dos Deputados, Prudente de Morais, futuro Presidente da República, preferiu, em lugar de defender a introdução do regime republicano, propor a federalização do Império, segundo o modelo alemão da época. Uma adequada distribuição de competências às províncias, argumentou ele, excluiria o perigo, que pressentia iminente, de uma maioria de deputados, eleitos pelas províncias já desembaraçadas de escravos, impor a abolição da escravatura em todo o país.[xxx]

Por força de inércia, continuamos a manter até hoje, em nossas Constituições, a denominação oficial do país como República Federativa. Nos primeiros tempos, o adjetivo teve mais significado que o substantivo. Só que o caminho político aqui percorrido foi o inverso do trilhado pelos norte-americanos, inventores do sistema. Lá, a federação, segundo a exata acepção etimológica, foi o estreitamento da união de Estados independentes, antes ligados por um frouxo pacto confederativo. Daí o nome de União Federal, dado à unidade onde se desenvolve a ação política nacional. Foederatio, em latim, significa aliança ou união. Entre nós, ao contrário, a federação foi o repúdio da tendência centralizadora, prevalecente no Império. Criamos unidades políticas autônomas, em lugar da reunião de Estados que consentiram em reduzir sua margem de independência, como aconteceu na América do Norte.

É claro que esse artificialismo institucional, oposto a toda a nossa tradição histórica, desde as origens ibéricas,[xxxi] não deixou de suscitar, ao longo do século XX, repetidos espasmos de retorno ao centralismo político. Nem se deve esquecer que a nossa forma de governo presidencialista, tal como sucede em todas as outras nações latino-americanas, mesmo em épocas consideradas de normalidade política, representa um incitamento à concentração de poderes na pessoa do chefe de Estado. Constitucionalmente, o Presidente da República Federativa do Brasil sempre teve muito mais atribuições exclusivas que o Presidente dos Estados Unidos.

Por isso mesmo, a partir de 1930, com a ascensão do capitalismo industrial e, ao final do século, do capitalismo financeiro, os quais exigem muito maior centralização de poderes na chefia do Estado, o governo da União suplantou, decisivamente, os governos das demais unidades federativas.

Como, então, defender a supremacia do bem público, isto é, do bem comum do povo, acima de todos os interesses privados, segundo exige o caráter republicano do regime?

A melhor defesa é a autodefesa. Ora, o principal interessado, ou seja, o povo, não tem condições de se defender, porque é tido, segundo a mentalidade dominante e a mais inveterada prática política, como absolutamente incapaz de exercer por si mesmo os seus direitos. Hoje, já se reconhece em toda parte que a única verdadeira salvaguarda do regime republicano é a democracia. Mas para que ela exista, é preciso consagrar – na realidade e não simplesmente no plano da ficção simbólica – a soberania do povo.

Uma democracia sem povo

Incontestavelmente, a mentalidade coletiva e os costumes tradicionais do nosso povo sempre estiveram nas antípodas da vida democrática.

O pressuposto fundamental de funcionamento do sistema democrático, como salientou Aristóteles, é a existência de um mínimo de igualdade social no seio do povo.[xxxii] Entre nós, porém, os longos séculos de escravidão legal fizeram com que, aos olhos de todos, o povo – hoje dito costumeiramente “povão” – apareça como aquele “vulgo vil sem nome” de que falava Camões. Sendo incapaz de qualquer iniciativa útil, ele deve, por isso mesmo, ser posto a serviço da camada supostamente competente e ilustrada da população, aquela que costumamos designar, com evidente abuso de linguagem, pelo nome de “elite”.

Relembremos alguns episódios.

Os protagonistas do movimento que levou à abdicação de Pedro I, em 7 de abril de 1831, declararam realizar a conciliação do liberalismo com a democracia. Mas, pouco tempo depois, os líderes liberais arrepiaram carreira e voltaram a pôr as coisas nos seus devidos lugares. A abjuração de Teófilo Ottoni foi, nesse particular, paradigmática. Justificando-se pelas suas veleidades liberal-democráticas do passado, esclareceu que nunca havia almejado “senão democracia pacífica, a democracia da classe média, a democracia da gravata lavada, a democracia que com o mesmo asco repele o despotismo das turbas ou a tirania de um só”.[xxxiii]

Retomando a mesma ambiguidade semântica, o Manifesto Republicano de 1870 empregou 28 vezes o vocábulo democracia, ou expressões cognatas, como solidariedade democrática, liberdade democrática, princípios democráticos ou garantias democráticas. Um de seus tópicos é intitulado a verdade democrática. Mas, sintomaticamente, nem uma palavra é dita sobre a emancipação dos escravos. É sabido, aliás, que os líderes do partido republicano opuseram-se à Lei do Ventre Livre, e só aceitaram a abolição da escravatura em 1887, quando ela já era um fato quase consumado.

Não obstante, instaurada a República, nossos dirigentes consideraram, pelo mesmo ato, definitivamente implantada a democracia. “Entre nós, em regime de franca democracia e completa ausência de classes sociais…”, pôde afirmar Rodrigues Alves, então Presidente do Estado de São Paulo, em mensagem ao Congresso Legislativo no quadriênio 1912–1916.[xxxiv]

Desde então, e até o presente momento, a empulhação democrática tem consistido em fazer do povo soberano, com as homenagens de estilo, não o protagonista do jogo político, como exige a teoria e determina a Constituição, mas um simples figurante, quando não mero espectador. Ele é convocado periodicamente a votar em eleições. Mas os eleitos se comportam, não como delegados do povo, e sim como mandatários em causa própria. São os novos “donos do poder”, no dizer de Raymundo Faoro.

Ultimamente, chega-se mesmo a afirmar que, em sua pureza originária, o regime democrático supõe a divisão perene do povo em dois segmentos distintos e praticamente incomunicáveis: os cidadãos ativos, que são os que têm a vocação inata de ocupar cargos políticos no Estado – ou seja, os grupos oligárquicos de sempre – e os cidadãos passivos, que são os pertencentes à classe inferior dos governados.

Surge, porém, aí, uma dificuldade hermenêutica. Como interpretar o princípio fundamental, inscrito no art. 1°, parágrafo único da vigente Constituição, de que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”?

A Constituição de 1988 enumera, em seu art. 14, os instrumentos dessa democracia direta, ao declarar que, além do sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Mas a mesma Constituição procurou esvaziar o sentido dessa disposição, ao estabelecer no art. 49, inciso XV da Carta que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar plebiscito e convocar referendo”. Ou seja, instituímos o paradoxo de o representado submeter-se à vontade discricionária do representante. “E quanto à iniciativa popular legislativa, para a qual a Constituição exige a assinatura de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles” (art. 61, § 2º), descobriu-se desde logo um antídoto: a exigência de reconhecimento, pelos funcionários da Câmara dos Deputados (para o caso, sempre em número reduzido), das assinaturas de todos os subscritores. Resultado: até hoje nenhum projeto de lei unicamente de iniciativa popular foi aprovado no Congresso Nacional.

Na verdade, uma mesma ideia diretriz prevaleceu ao longo de nossa história de país independente, com variações devidas à evolução do paradigma político mundial: atribuir à Constituição um papel legitimador do poder político já existente e organizado de fato.

Essa a razão de termos sempre logrado escamotear, na prática, a distinção fundamental entre poder constituinte e poderes constituídos, que Sieyès formulou pela primeira vez em seu célebre opúsculo de fevereiro de 1789 (Qu’est-ce que le Tiers état?):[xxxv]  “Em qualquer de suas partes, a constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar as condições de sua delegação”.

E quem deve assumir, nessas condições, o papel de poder constituinte? Aqui, a resposta de Sieyès foi habilíssima, e deu ensejo, de certa forma, a todos os artifícios retóricos utilizados ulteriormente, mundo afora.

Na organização triádica da sociedade medieval, povo era o estamento inferior, contraposto aos dois outros, dotados de privilégios: o clero e a nobreza. Na explicação tradicional dada por Adálbero, bispo franco de Laon, em documento do início do século XI,[xxxvi] cada um desses grupos tinha uma função social a desempenhar: os clérigos oravam, os nobres combatiam e o povo trabalhava (oratores, bellatores, laboratores).

Às vésperas da Revolução Francesa, porém, a composição do Tiers état era muito imprecisa. No verbete da Encyclopédie dedicado a peuple, Louis Jaucourt principia pelo reconhecimento de que se trata de um “nome coletivo de difícil definição, pois dele se têm ideias diferentes em diversos lugares, em variados tempos, conforme a natureza dos governos”.

Observa, em seguida, que a palavra designava outrora o “estamento geral da nação” (l’état général de la nation), oposto ao estamento dos grandes personagens e dos nobres. Mas que, na época em que escrevia, o termo povo compreendia apenas os operários e os lavradores. Como se vê, a nova classe dos burgueses, aqueles que não exercem trabalho subordinado, não se inseria oficialmente em nenhum dos três estamentos do Reino de França.

Percebe-se, pois, que a ideia, fortemente afirmada por Sieyès no capítulo primeiro de sua obra, de que “o Tiers é uma nação completa” representava mera extensão da fórmula tradicional, lembrada por Jaucourt, de que o povo era “o estamento geral da nação”; ou seja, a esmagadora maioria da população, diante da minoria clerical e aristocrática. Ora, isto permitia elegantemente à burguesia assumir um lugar definido no novo regime político, criado pela Revolução.

Quando Mirabeau, na sessão de 15 de junho da Assemblée Générale des Etats du Royaume, propôs que, após a defecção dos nobres e clérigos, ela passasse a denominar-se Assembleia dos Representantes do Povo Francês, imediatamente dois juristas atilados, representantes legítimos da burguesia, indagaram: em que sentido seria usada aí a palavra povo: no de populus como em Roma, isto é, a reunião do patriciado e da plebe, ou na acepção deprimente de plebs?[xxxvii] Foi nesse exato momento que o movimento revolucionário passou a consagrar a burguesia como classe dominante.

Na América Latina, e no Brasil em particular, não foi preciso recorrer a esse artifício semântico. Proclamou-se a soberania do povo em todas as nossas Constituições, mas a designação desse soberano moderno passou a exercer a mesma função histórica que representava, nos tempos coloniais, a invocação da figura do rei. “As ordenações de Sua Majestade acatam-se, mas não se cumprem”, diziam sem ironia os chefes locais ibero-americanos.

Em suma, nunca tivemos Constituições autênticas, porque o verdadeiro Poder Constituinte nunca foi chamado ao proscênio do teatro político. Permaneceu sempre à margem, como expectador entre cético e intrigado, à semelhança daquele carreteiro no quadro de Pedro Américo do Grito do Ipiranga. A Constituição tende a ser, em grande parte, mero adereço à organização política do país; necessário, sem dúvida, por razões de decoro, mas com função mais ornamental do que efetiva no controle do poder.

À guisa de conclusão

Nossa longa tradição de comportamento social dualista, no qual a aparência dissimula a realidade, não podia deixar de influenciar as camadas mais pobres da população; obviamente, não como mecanismo embuçado de dominação, como sucede no seio da oligarquia, mas como forma de devaneio para fugir à realidade opressora.

Foi o que ilustrou Carolina Maria de Jesus, em certo trecho de Quarto de Despejo: “Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. [sic, no texto original] Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. […] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários”.

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

No

[i] Dialética da Colonização, publicado originalmente em 1992, 4ª edição em 2008 (Companhia das Letras).

[ii] In Papéis Avulsos.

[iii] Raízes do Brasil, edição comemorativa 70 anos, Companhia das Letras, pág. 19.

[iv] Cf. Política e Letras, in Vicente Licínio Cardoso, À Margem da História da República, tomo II, Editora Universidade de Brasília, pág. 48.

[v] La dynamique du capitalisme, Éditions Flammarion, 2008, p. 68.

[vi] Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico-Jurídico-Social, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1866, t. II, pp. 61 e 114.

[vii] Citado por Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), ANNABLUME editora, São Paulo, 2003, p. 63.

[viii] In Relíquias de Casa Velha.

[ix] Citado por Sud Menucci, O Precursor do Abolicionismo no Brasil (Luiz Gama), Companhia Editora Nacional, coleção Brasiliana, vol. 119, p. 171.

[x] Capítulo 123.

[xi] Veja-se a esse respeito o excelente verbete capoeira, no Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, de Clóvis Moura, Editora da Universidade de São Paulo.

[xii] “Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de capoeiragem. O autuado será punido com dois a seis meses de prisão. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira no grau máximo a pena do artigo 400 (recolhimento do infrator, por um a três anos, a colônias penais que se fundarem em ilhas marítimas, ou nas fronteiras do território nacional, podendo para esse fim ser (sic) aproveitados os presídios militares). Se for estrangeiro, será deportado depois de cumprir a pena. Se nesses exercícios da capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o poder público e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade e a segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes”.

[xiii] Incluído em Papeis Avulsos.

[xiv] Cf. Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro, 3ª edição revista, Editora Globo, 2001.

[xv] In Outros Contos.

[xvi] Inserto em Relíquias de Casa Velha.

[xvii] Raízes do Brasil, 5ª edição, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, p. 119.

[xviii] A Política Geral do Brasil, J. Magalhães, São Paulo, 1930, pág. 6.

[xix] In A República Inacabada, 2007, Editora Globo, pp. 25 e ss.

[xx] Op. cit., p. 142.

[xxi] Fallas do Throno, desde o anno de 1823 até o anno de 1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, p. 3.

[xxii] Cf. História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Monárquico, t. 1, O Processo de Emancipação, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1965, p. 186.

[xxiii] O Abolicionismo, São Paulo, Progresso Editorial, 1949. P. 158.

[xxiv] Joaquim Nabuco, Discursos Parlamentares, Rio de Janeiro, 1950, p. 356.

[xxv] Apud Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Monárquico, t. 5 Do Império à República, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1972, p. 347.

[xxvi] História do Brasil 1500-1627, quinta edição comemorativa do 4º centenário do autor, 1965, Edições  Melhoramentos, pág. 59.

[xxvii] Cf. José Murilo de Carvalho, Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, Companhia das Letras, 3ª ed., 1999, págs. 29/31.

[xxviii] 4ª edição, Livraria Martins Editora, pág. 15.

[xxix] A Organização Nacional, 3ª ed., Companhia Editora Nacional, pp. 214 e ss. A 1ª edição é de 1914.

[xxx] Cf. Robert Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 267.

[xxxi] Em Os Donos do Poder, capítulo 1º, Raymundo Faoro acentua a tradição centralizadora, na pessoa do rei, da vida política portuguesa. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (2ª ed., Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo, 1969, pp. 314 e ss.), contrasta a centralização política do processo colonizador no Brasil, com a relativo individualismo da colonização espanhola na América.

[xxxii] Política, 1295 b, 35 e s.

[xxxiii] In Paulo Bonavides e Roberto Amaral, Textos Políticos da História do Brasil, vol. 2, Senado Federal, 1996, pp. 204/205.

[xxxiv] in Galeria dos Presidentes de São Paulo – Período Republicano 1889–1920, organização de Eugenio Egas, São Paulo, Publicação Official do Estado de São Paulo, 1927, p. 424.

[xxxv] Capítulo V.

[xxxvi] Carmen ad Rodbertum, manuscrito não autógrafo, comportando vários retoques, registrado sob nº 14192 na Biblioteca Nacional da França.

[xxxvii] Cf., sobre esse episódio, J. Michelet, Histoire de la Révolution Française, ed. Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), vol. I, pp. 101 e ss.

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