A dialética do dentro-fora na obra de Nancy Fraser

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANGELITA MATOS SOUZA*

O esquema analítico proposto por Nancy Fraser faz emergir as esferas ocultas que ancoram a reprodução do capitalismo nas formações sociais

Na teoria ampliada do capitalismo proposta por Nancy Fraser (Fraser; Jaeggi, 2020), a esfera da expropriação diz respeito àquilo que está oculto na história oficial deste modo de produção. Nesta os trabalhadores são livres para vender a sua força de trabalho no mercado, gozando de direitos formalmente estabelecidos. Por trás dessa evolução está a exploração desvendada por Marx no livro I de O capital. E depois de ter exposto que o mundo das mercadorias escondia a exploração dos trabalhadores livres, o autor descreveu os processos de expropriação da etapa da acumulação primitiva. É como se dissesse: se a exploração é ruim, a expropriação foi pior.

No entanto, para alguns autores, não se trata de passado, a expropriação seria um fenômeno constitutivo da história do capitalismo. Especialmente após a publicação do estudo de David Harvey (2004), sobre o novo imperialismo, obra na qual retoma análises de Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt, essa formulação apareceu em vários autores, aqui nos ocupamos da obra Capitalismo em debate, de Fraser e Jaeggi (2020). O livro está organizado na forma de uma conversa entre Fraser e Jaeggi (2020), mas gira em torno da acepção expandida do capitalismo de Nancy Fraser, por isso nos referimos apenas a ela.

A autora reconhece a influência de Harvey (e de Luxemburgo) ao defender que a expropriação é inerente à história do capitalismo: “Esse tipo de ‘acumulação primitiva’ é um processo contínuo, do qual o capital se beneficia e depende” (Fraser; Jaeggi, 2020, p. 36). Também o acompanha no entendimento de que os mecanismos de expropriação foram inovados e acentuados nas últimas décadas; além de aderir à ideia de que o capitalismo necessita de um exterior para se reproduzir. Conforme Nancy Fraser, o capitalismo seria um sistema que demanda de “corpos externos de riqueza para canibalizar. Precisa do ‘fora’. Esse exterior é, nesse sentido, parte integrante do capitalismo” (Fraser, 2023, p. 12).

O objetivo de Nancy Fraser é ir além da esfera da expropriação, trazendo à luz outras dimensões escondidas na história oficial. A seguir, argumentaremos que o esquema analítico proposto por Nancy Fraser é muito rico, inclusive porque dispensaria a dialética do dentro-fora. Para tanto, resumimos a teoria ampliada da autora, da qual a esfera da expropriação é parte constitutiva, assim como as demais esferas do plano de fundo; por fim sugerimos o que nos parece ser uma boa combinação: Nancy Fraser e Nicos Poulantzas.

Muito resumidamente, Nancy Fraser defende a compreensão do capitalismo como totalidade social complexa, articulada em uma pluralidade de esferas, de maneira que lembra a escola althusseriana. Não obstante, o esquema proposto por Nancy Fraser é mais interessante, pois além de evitar o binarismo base-superestrutura, incorpora questões contemporâneas trazidas por perspectivas novas: feministas, do ecossocialismo, novo imperialismo, decoloniais.

A articulação entre as esferas consiste nas relações de dependência entre dois planos: o principal (da “história oficial”) e o de fundo (ocultado). O primeiro diz respeito às esferas da economia, produção, exploração e natureza humana (sociedade); o plano de fundo se compõe das esferas da política, da expropriação, reprodução social e natureza não humana (meio ambiente). Tudo dentro da concepção alargada do capitalismo. Portanto, parece-nos que carece de sentido falar de um “exterior” como “parte integrante do capitalismo” (Fraser, 2023, p. 12).

De nossa parte, a fim de inserir um exterior nessa acepção, conservaríamos explicitamente os conceitos de modo de produção e de formação social. O modo de produção entendido como um conceito abstrato, e as formações sociais como espaço e tempo determinados da reprodução de um modo de produção ou mais de um, neste caso, em relações de dominação e subordinação (Poulantzas, 2019; Saes, 1985). Ou seja, em uma formação social capitalista prevalece o modo de produção capitalista, podendo ser o único ou conviver com elementos de outros modos de produção.

Há mais autores que, como Poulantzas (2019) e althusserianos de maneira geral, entendem que em uma formação social se combinam elementos de diferentes modos de produção (por exemplo, Wright, 1985). Vale notar que, recentemente, Jabbour e Gabrielle (2021) caracterizaram a China como uma formação social de tipo nova que combinaria elementos dos modos de produção capitalista, não capitalista e socialista.

O que queremos sublinhar é que o esquema analítico proposto faz emergir as esferas ocultas que ancoram a reprodução do capitalismo nas formações sociais. Este modo de produção se reproduz nas formações sociais via relações de dependência entre as esferas dos dois planos de Nancy Fraser. Isso explicaria a variedade de capitalismos, identificáveis a partir de uma definição nuclear (a oferecida por Fraser e Jaeggi, à luz de Marx). A variedade tem a ver com o acontecer deste modo de produção nas formações sociais concretas, a depender dos modos de articulação entre as esferas relacionadas pela autora.

 No que concerne ao “exterior”, para nós, este remete à presença de elementos de outros modos de produção nas formações sociais capitalistas, que tendem a se modificar em contato com o capitalismo. Rechaçamos a tese do dentro-fora justamente porque as esferas “de fundo” estão dentro da teoria ampliada da autora, já o fora não seria capitalismo. É como ajustaríamos a proposta de Nancy Fraser, não havendo razão para se recorrer a fórmulas enigmáticas como “um fora que está dentro”.

Neste terreno, vale ler a crítica de Scholz (2019) ao enfoque da colonização (é como expropriação aparece na tradução portuguesa), considerado anacrônico pela autora, pois preso a uma época histórica passada, ao conceber a expropriação em sentido transhistórico para analisar fenômenos novos, sob o capitalismo neoliberal.

Fraser e Jaeggi (2020, p. 43-44) primeiro oferecem uma definição nuclear de capitalismo (ortodoxa-econômica), a fim de identificar as formações sociais capitalistas, depois Fraser introduz as esferas do plano de fundo, no intuito da “des-ortodoxificação” dessa acepção (econômica) ancorada em quatro elementos: (i) divisão em classes; (ii) mercado de trabalho livre; (iii) dinâmica da acumulação de capital (= movimento sem fim pela valorização do valor); (iv) alocação via mercado dos insumos produtivos e do excedente social.

Por certo, as relações sociais de produção e o nível das forças produtivas estão contemplados nessa definição nuclear, que, para se completar, entendemos que precisaria da estrutura jurídico-política, como concebida por Poulantzas (2019): direito capitalista e a correlata forma moderna de organização do corpo de funcionários do Estado (burocratismo), além do monopólio estatal do uso legítimo da violência. Desse modo, teríamos uma definição nuclear (heterodoxa) de modo de produção capitalista para distinguir as formações sociais capitalistas das não capitalistas, em que pese a variedade das primeiras, a depender das formas de articulação das esferas nas realidades concretas.

Importa anotar que concebemos o modo de produção como a relação de correspondência mútua entre a estrutura econômica (como na definição de Nancy Fraser) e a estrutura jurídico-política (Poulantzas, 2019), e não simplesmente a base (Saes, 1985). São partes unidas, sendo a estrutura jurídico-política condição para a constituição e reprodução da economia capitalista. Assim, evitamos qualquer economicismo (objetivo ressaltado por Fraser), no conceito de modo de produção capitalista e na compreensão do seu acontecer nas formações sociais concretas.

Ademais, ao se analisar como o modo de produção capitalista se reproduz nas formações sociais, é preciso entender como as diferentes esferas se relacionam entre si sem perder de vista as delimitações impostas pelo desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo em escala global.

No nível da intersecção entre as esferas, a título de ilustração, à investigação dos modos de imbricação entre as esferas da economia e da política caberiam questões tais como: qual o modelo político que viabiliza o regime de acumulação neoliberal nas formações sociais, no que ele se diferencia do regime do capitalismo administrado pelo Estado? Aliás, algo pouco desenvolvido na obra de Fraser e Jaeggi (2020) diz respeito aos modos de intersecção entre as esferas, provavelmente porque a conversa está voltada à apresentação do arranjo teórico, que, insistimos, dispensaria um fora que está dentro.

Se fossemos indicar apenas um problema da tese do dentro-fora diríamos que este reside no fato de se considerar que os países ricos são ricos porque expropriam os países pobres, quando, na verdade, os países ricos expropriam os pobres porque são ricos. Quer dizer, primeiro vem o evolver do capitalismo (para os países serem ricos) liderado pela capacidade de inovação científico-tecnológica, o carro-chefe do processo de desenvolvimento das forças produtivas em âmbito nacional. Este dentro engloba fatores econômico-financeiros, como a formação do capital financeiro moderno, e fatores não econômicos, como a formação política e ativismo das classes trabalhadoras.

Um processo caracterizado por enorme ímpeto destrutivo, relacionado à tendência do sistema capitalista de destruir suas condições de existência, como salientado por Fraser. Destruição criativa ou encerrada em si mesma, como parte da destruição de empregos e do meio ambiente.

*Angelita Matos Souza é cientista política e professora no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp. [https://amzn.to/47t2Gfg]

Referências

FRASER, N. Capitalismo racializado e generificado: entrevista com Nancy Fraser. Revista NERA, 26(66), 2023a.

FRASER, N.; JAEGGI, R. (2020). Capitalismo em debate. Uma conversa na Teoria Crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. [https://amzn.to/3HreIeN]

HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004. [https://amzn.to/3S5e0cZ]

JABBOUR, E.; GABRIELE, A. China: o socialismo do século XXI. São Paulo. Boitempo, 2021. [https://amzn.to/3RU7XHc]

POULANTZAS, N. Poder político e classes sociais. Campinas: Unicamp Ed., 2019. [https://amzn.to/3Sgkxlv]

SAES, D. A. M. A Formação do Estado Burguês no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. [https://amzn.to/3REhAti]

SCHOLZ, R. Cristóvão Colombo Forever? Para a crítica das actuais teorias da colonização no contexto do “Colapso da modernização”. Geografares [Online], 28, 2019.

WRIGHT, E. O. Classes. London. Verso, 1985.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES