A disputa dos recursos públicos

Imagem: Eslouflai
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Por LUCIANO FEDOZZI*

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo

O contexto de reconstrução nacional do Estado e das políticas públicas no Brasil, após a catástrofe autoritária e ultraliberal desencadeada desde 2016, exige a combinação do fortalecimento das instituições representativas da democracia e a reconstrução das instâncias da democracia participativa, criadas após a Constituição Federal de 1988.

A partir da vitória de Lula, o Governo Federal vem encaminhando, juntamente com atores da sociedade civil e as comunity politics, a reconstrução das esferas socioestatais de participação social que foram destruídas ou enfraquecidas desde 2016, e principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro. Foram retomados conselhos nacionais e conferências, e institucionalizada a articulação interconselhos, todas instâncias importantes para a democratização da gestão governamental e a efetivação de políticas ligadas aos direitos da cidadania.

A instauração do Conselho de Participação Social (CPS), vinculado ao Gabinete de Transição, que funcionou como órgão de assessoria ao presidente eleito, indicou linhas gerais para a relação entre o novo governo e a sociedade civil, assim como as respectivas políticas de participação a serem efetivadas em nível federal.

No âmbito da estratégia de participação social, após a vitória democrática, o Orçamento Participativo Nacional (OPN) surgiu como uma possibilidade real, apesar da complexidade de funcionamento dessa modalidade na escala federal. O Observatório das Metrópoles e a Rede Brasileira dos Orçamentos Participativos (RBOP)[i] apresentaram uma proposta, no início de 2023,[ii] para implementá-lo, e veem promovendo atividades para a retomada dos Orçamentos Participativos na agenda política das cidades, já que é decrescente o número de municípios que adotam essa prática no país, um paradoxo em relação à expansão internacional, conforme aponta o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos.[iii]

O tema do Orçamento Participativo Nacional foi abordado na campanha eleitoral de 2022, quando Lula o apresentou em contraponto ao “orçamento secreto. A prática intransparente de congressistas deveria ser substituída pela abertura democrática de participação e controle da sociedade. Em 2023, sob o impacto da vitória democrática, a realização do Plano Plurianual Participativo (2024-2027), pelo Governo Federal, demonstrou que a escala nacional não impediu a participação social na elaboração da proposta orçamentária.

Foram 4 milhões de acessos no Brasil Participativo, na internet, sendo 34.310 participantes nas plenárias presenciais das 27 capitais, 1,4 milhão de inscritos na plataforma digital, 8.254 propostas e 1,5 milhão de votos.[iv] O Brasil deu mais uma demonstração de ousadia na invenção democrática, sendo o único país de grande escala geográfica a realizar esse tipo de prática para definir prioridades de políticas, em parceria com organizações e movimentos sociais e de governo estaduais.

Portanto, a negativa do Governo Federal em seguir adiante, a partir de 2024, no processo de elaboração participativa do Projeto de Lei Orçamentária (PLO) em nada tem a ver com as possíveis dificuldades do salto de escala (scaling-up) nas práticas dos Orçamentos Participativos. Ressalte-se, ainda, contra o argumento das dificuldades da big escala, as iniciativas inovadoras de Orçamentos Participativos que já ocorreram e vem ocorrendo hoje em estados da Região Nordeste, com destaque para o caso consolidado da Paraíba, desde 2011, sob direção e protagonismo do PSB, a partir da experiência de João Pessoa.

Essa iniciativa foi seguida pelos estados do Maranhão e do Piauí (ambos governados pelo PT), além do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, que agora decidiram iniciar o processo. Todavia, não conta com o governo do Ceará, apesar da experiência do atual governador na coordenação do Orçamento Participativo de Fortaleza, há alguns anos. São modelos participativos distintos, em que a incidência popular nas decisões é ainda restrita a uma pequena parcela dos recursos, mas que demonstram o quanto a democracia participativa, seja presencial ou virtual (ou híbrida), é possível mesmo em escalas que vão além dos municípios, a exemplo do que já fez pioneiramente o Rio Grande do Sul durante o governo de Olívio Dutra (PT, 1999-2002).

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo. Em primeiro lugar, porque a disputa dos recursos públicos vem ocorrendo de forma restrita à institucionalidade dos poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, campo em que o governo federal não tem relação de forças favoráveis.

Nessa situação, é claro que os setores dominantes do mercado, da mídia empresarial corporativa e no Congresso Nacional tem maior poder de influência. O campo popular está fora desse jogo de cartas marcadas. Trata-se de uma estratégia do governo Lula que repete o primeiro ciclo dos governos liderados pela esquerda, nos quais se optou pela inexistência de qualquer programa mobilizador da população e dos segmentos mais atuantes da sociedade civil. É necessário lembrar que apesar do Orçamento Participativo Nacional também constar do programa eleitoral na campanha de 2002, o ensaio participativo realizado em 2003 também foi abortado, baseado no falso argumento de que ele poderia incentivar o excesso de demandas populares que seriam frustradas pelas limitações orçamentárias.

Agora, mais uma vez, o projeto de governo da esquerda repete a estratégia que supõe a passividade dos setores subalternos. Ocorre que diferentemente do ciclo da década de 2000, quando o crescimento econômico garantiu apoio popular, o modelo tradicional de democracia aparece hoje aos olhos dos cidadãos/as fortemente desgastado e pouco confiável, legado também da década de crise econômica iniciada em 2014, dos episódios reais de corrupção, da demonização da política a partir de 2016, além da destruição das políticas provocada pelo neoliberalismo do qual se alimenta a extrema-direita.

É visível o crescimento dos sentimentos antipolítica e antissistema na sociedade brasileira. Nesse contexto, o Brasil caminha para o parlamentarismo, com passividade de atores progressistas da sociedade civil e dos movimentos sociais, que parecem alheios aos fatos.

Considerando a vasta experiência dos Orçamentos Participativos em centenas de metrópoles e cidades no país, durante as últimas três décadas, é possível afirmar que, se efetivada e bem conduzida, de forma transparente e em conjunto com atores da sociedade civil, a gestão orçamentária participativa poderá se constituir em importante contranarrativa no enfrentamento do retrocesso representado pela captura dos recursos públicos, pelas forças fisiológicas e patrimonialistas no Congresso Nacional, articuladas localmente.

Os cerca de R$ 50 bilhões das emendas impositivas já se fizeram sentir nas eleições municipais desse ano, provocando desequilíbrio na competição devido aos recursos disponibilizados às prefeituras, elos das redes conservadoras do Congresso Nacional.

Nesse contexto de retrocessos, um Orçamento Participativo bem conduzido poderá contribuir para a criação de uma arena pública de discussão sobre a geração e o uso dos recursos públicos, onde atores da sociedade civil possam se posicionar e participar ativamente da disputa concentrada nessa parte fundamental do coração do Estado. O Orçamento Participativo Nacional poderá ajudar uma parte da sociedade constituída por organizações e movimentos sociais a entrar nesse jogo de garroteamento e cerco do Governo Lula.

Veja-se que a ação justa e correta do STF – ao entrar nessa disputa estratégica das emendas – forneceu justificativas para ações no Congresso Nacional que pretendem retirar poder dessa instância da república, caminho utilizado pela extrema-direita nos processos de desdemocratização que estão em curso em vários lugares do mundo. Os Orçamentos Participativos não são panaceia para os males da democracia representativa, mas inegavelmente eles contêm enormes potenciais democratizantes na relação entre o Estado e a sociedade.

Como mostram pesquisas acadêmicas, nas últimas décadas, nenhum procedimento de inovação democrática no mundo contém maior potencial de inclusividade política e social do que os Orçamentos Participativos, quando eles são para valer, algo que também se aplica ao seu potencial redistributivo em bem-estar urbano. Eles permitem incluir os setores populares de modo ativo na decisão de políticas, reconfigurando as bases em que se dá o exercício do poder e a hegemonia de classes na sociedade.

Também permitem politizar questões que são aparentemente técnicas, como a política fiscal e as formas justas de financiamento das políticas públicas, tema de alto relevo para a eficácia da democracia na provisão de bem-estar, que em geral fica restrita aos meios técnicos governamentais e às elites de especialistas dos mercados, além dos parlamentares.

Uma segunda contribuição democratizante do Orçamento Participativo Nacional diz respeito ao seu provável efeito estimulante junto aos governos subnacionais, em especial os municípios, articulando o uso dos recursos federais repassados e induzindo o aumento da participação, da transparência e do controle social nas cidades, inclusive sobre as emendas impositivas, que se generalizaram nas casas legislativas do país.

Como mostrou o ciclo de expansão dos Orçamentos Participativos, nos anos 1990/2000, muitas prefeituras do campo progressista e mesmo liberal-conservador, assim como a atuação de atores civis locais, são incentivadas a adotar práticas mais democráticas e participativas quando outras instituições também o fazem. Sem dúvida, o Orçamento Participativo Nacional poderá exercer um efeito-demonstração de apoio à resistência democrática por meio do estímulo à disseminação de Orçamentos Participativos locais e estaduais, que precisam de apoio quando a própria democracia liberal se encontra ameaçada.

O possível temor de um Orçamento Participativo de “confronto” com o Congresso Nacional não se sustenta, haja vista a aprovação do PPA participativo, em 2023. Além do mais, renunciar de antemão às divergências naturais sobre as melhores formas de elaboração dos orçamentos pelos governos é renunciar à disputa de hegemonia dos projetos políticos. É capitular diante dos projetos autoritários, elitistas e neoliberais.

Por outro lado, no contexto em que se aprofunda o sequestro dos recursos para fins eleitorais e de poder, o quadro é de passividade dos movimentos sociais e atores civis do campo democrático e progressista, diminuindo sobremaneira a margem de manobra do governo federal. Esse quadro de fragilidade contrasta com o ativismo e a mobilização dos setores sociais e políticos da extrema-direita, que detém a iniciativa pública apesar da derrota eleitoral em 2022 e do fracasso do golpe em janeiro de 2023.

Nenhum ator civil relevante dos movimentos sociais apresentou até agora alguma iniciativa de mobilização em defesa dos recursos públicos em bases transparentes, constitucionais e republicanas. O golpe da captura dos recursos do Executivo parece ser apenas uma briga entre os poderes. Sem dúvida, a crise social, a precarização do trabalho e a fragmentação da sociedade de consumo reforçada pelo hiper individualismo digital está impactando a capacidade de ação coletiva dos movimentos e organizações sociais do campo progressista, mas isso não explica por si só a passividade observada diante do sequestro dos recursos que faltam às políticas públicas e que estão modificando o sistema político para o parlamentarismo, sem mudar a Constituição Federal.

Esse quadro exige que os atores civis do campo progressista e de esquerda reajam, sob pena de os retrocessos da democracia serem irreversíveis, amarrando estrategicamente o país na aliança do atraso fisiológico de direita – nas redes que unem prefeituras e congressistas – com o projeto neoliberal das elites sob a hegemonia ideológica da extrema-direita. Acreditamos que uma das formas possíveis dessa reação – sem panaceia – é o aprofundamento da democracia, utilizando o que o Brasil criou e exportou ao mundo, o Orçamento Participativo.

*Luciano Fedozzi é professor titular de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor do livro Orçamento Participativo de Porto Alegre: 35 anos. Do modelo contra-hegemônico à desdemocratização (disponível em [email protected]).

Notas


[i] Rede defende participação social no planejamento e execução do orçamento público federal.

https://www.viomundo.com.br/politica/rede-defende-participacao-social-no-planejamento-e-execucao-do-orcamento-publico-federal-soberania-popular-nota.html

[ii] Ver em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/orcamento-participativo-op-alia-democracia-cidadania-ativa-e-justica-urbana/

[iii] Cf. levantamento realizado em 2019 cerca de 10 mil cidades em 70 países no mundo realizam práticas autodenominadas de Orçamento Participativo. Ver Dias, N., et al. (2021). Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos 2020 – 2021. Portugal: Epopeia e Oficina. Recuperado de http://www.oficina.org.pt/atlas-mundial-orcamentos-participativos-2020.html

[iv] https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/ppa-participativo


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