A festa não pode parar

Escultura José Resende / Mooca, São Paulo/ foto: Christiana Carvalho
image_pdf

Por VLADIMIR SAFATLE*

Mesmo com os mortos na sala

Quem conhece a história da formação do Estado moderno sabe como seus principais teóricos justificavam sua emergência a partir de promessas de proteção das populações. Caberia ao estado a mobilização de força e recursos da sociedade para a proteção contra a morte violenta, contra a despossessão da propriedade e a sujeição a outros povos. Mesmo que tal cláusula de proteção obedecesse a restrições de classe, mesmo que em estados de formação colonial, como o Brasil, ela valesse apenas para a parcela não oriunda dos submetidos ao extermínio e escravidão, o estado criava adesão a partir do desejo em relação a tal promessa.

Valeria a pena começar por este ponto porque estamos, no Brasil, a assistir uma mutação estrutural de paradigma a respeito do binômio estado/proteção. Como se, sem perceber, tivéssemos nos tornado um laboratório, como se fossemos empurrados a ser parte de um experimento de gestão social do qual só há pouco começamos a perceber a extensão. Esse laboratório toca, de forma profunda, a relação, estado, corpo social e morte.

Alguns podem se espantar com esse esforço sistemático de aprendizado da indiferença em relação à morte em massa, que anima o governo brasileiro diante dos efeitos da pandemia. Mas alguém deveria lembrar que a história das tecnologias de governo está associada à história de epidemias, pandemias e guerras. A concepção moderna de intervenção psiquiátrica, de ordenamento urbano, de planejamento econômico, entre outros, nasce, em larga medida, no bojo de esforços contra catástrofes sanitárias. Sem que percebamos, é isto que está mais uma vez acontecendo.

As cenas macabras de um presidente da República nadando, a fim de produzir aglomerações em meio ao pico de uma pandemia que parou o mundo, as falas reiteradas de que não deveríamos nos importar com os 200 mil mortos, pois devemos “tocar a vida”, a recusa a expressões oficiais de luto, a recusa em ter um plano minimamente estruturado de vacinação: tudo isso pode parecer loucura, mas, infelizmente, tem método.

O sociólogo alemão Wolfgang Streck havia identificado, anos atrás, a consolidação de um horizonte de degradação final de macroestruturas de proteção (devido à estabilização do trinômio: baixo crescimento, endividamento crônico e concentração brutal de renda) e de fortalecimento de microestruturas territoriais e comunitárias. Seu diagnóstico visava mostrar o tipo de mundo que o esgotamento das promessas do capitalismo produzira.

Se aceitarmos tal diagnóstico, seremos obrigados a afirmar que uma das saídas possíveis a tal degradação de macroestruturas é a diminuição do horizonte de expectativas em relação à proteção. Infelizmente, o Brasil descobriu como fazer isso preservando a popularidade de seus governantes. Basta alimentar diariamente a indiferença como afeto social central, minar todo esforço de solidariedade genérica e fazer da liberdade como propriedade de si algo acima da mera sobrevivência. Uma versão macabra do “liberdade ou morte” que funda o país como nação “independente”.

Um processo dessa natureza só poderia começar de maneira sistemática em um país como o Brasil, com sua história de maior experimento necropolítico da história moderna. Como lembra Celso Furtado, o Brasil foi uma criação econômica antes de ser uma consolidação social. Ele nasce como o maior experimento de latifúndio escravista primário exportador de que se tem notícia, sendo responsável pela recepção de 35% de toda a população escravizada e enviada às Américas. Essa população e seus descendentes – assim como os povos originários que foram dizimados para que tal empreendimento econômico servisse como o marco zero desse país – conhece apenas a face predadora do estado brasileiro. A face que lembra que tais sujeitos são matáveis sem luto, são objetos de desparecimento, extermínio e máxima espoliação econômica. Que melhor lugar no mundo para começar um experimento de anulação estrutural da limitada dimensão protetora do estado moderno?

A pandemia permitiu que o estado brasileiro generalizasse essa lógica para toda a população, mesmo que tal generalização conheça intensidades diferentes devido ao acesso privilegiado à saúde privada que os setores abastados e rentistas preservam. Mas o saldo final da pandemia, ao menos para nós, será o desrecalque de um estado que diz a toda a população: “Não contem comigo para a proteção. Esse é o preço da liberdade”. Ele expõe o fato de que nunca saímos de um estágio pré-social. Uma sociedade que tem tal grau de indiferença em relação à morte de 200 mil pessoas não pode ser chamada de sociedade.

Nos anos 1970, Paul Virilio cunhou o termo “estado suicidário” para se contrapor à tendência, alimentada por Hannah Arendt, de fazer comparações indevidas entre nazismo e stalinismo. Virilio estava a dizer: “Olhe para a forma como o estado mata e entenderemos a especificidade radical do nazismo”. Pois não se tratava de matar setores da população ou grupos de opositores. Tratava-se de levar a sociedade a se acostumar com um horizonte sacrificial no qual os sujeitos parecem celebrar sua própria morte e seu próprio sacrifício. Até chegar o fim através deste último telegrama de Hitler a seus generais, o famoso Telegrama 71, no qual se lia: “Se a guerra está perdida, que a Alemanha pereça”.

Bem, se alguém duvida da natureza fascista desse governo, que leve em conta a maneira como ele deixa morrer sua própria população em uma celebração festiva de um ritual de autoimolação. Pois é só nos acostumando com tais imolações sacrificiais que o capitalismo continuará.

*Vladimir Safatle, membro da Comissão Arns, é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos – Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Publicado originalmente no blog da Comissão Arns.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES