Por VALERIO ARCARY*
Por que foi possível a recuperação dos direitos políticos de Lula?
“Estratégia sem tática é o caminho mais lento para a vitória. Tática sem estratégia é o ruído antes da derrota” (Sun Tsu).
Existem três avaliações diferentes na esquerda sobre as decisões do STF sobre a anulação das condenações de Lula. O tema tem importância grande, porque é central na interpretação do novo momento na conjuntura. Lula encabeça a preferência em todas as pesquisas de opinião disponíveis. Mantidas as atuais condições, o que é, evidentemente, imprevisível, Lula estaria em um segundo turno contra Bolsonaro.
É imprevisível porque ninguém pode saber qual será a conjuntura em meados de 2022. Qual será o desenlace da CPI da pandemia no Senado? Qual será a evolução do governo Bolsonaro e, talvez, até o seu destino? Qual será o contexto da pandemia daqui a um ano? Qual será a situação econômica? Como vão evoluir as taxas de desemprego? Qual será a taxa de inflação? Qual será a evolução do salário médio? Quais serão os impactos sociais das privatizações da Eletrobrás, Correios, Cedae/RJ previstas para o segundo semestre de 2021, se não forem detidas? E o mais importante, qual será a relação social e política de forças?
Estas e muitas outras variáveis, hoje, impensáveis, porque “merdas acontecem” exigem máxima prudência. Mas não diminuem a necessidade de retirar lições da campanha Lula Livre, porque foi a maior vitória democrática dos últimos cinco anos, e quem diminuir seu significado está, totalmente, equivocado.
A primeira é ingênua e circular: vencemos porque a causa era justa e justiça foi feita. Muitas causas justas não são reconhecidas pela justiça. Não devemos ter nem ilusões, nem muitas expectativas na justiça. Lembremos que o impeachment de Dilma Rousseff foi referendado pela justiça. Julgamentos políticos se decidem em função de interesses políticos, ou seja, a luta pelo poder.
Esta interpretação remete, portanto, o desenlace da votação da incompetência da 13ª Vara de Curitiba e a suspeição de Moro à força da campanha nacional e internacional. Ao talento da defesa jurídica pelos advogados de Lula. À unidade conseguida na maioria da esquerda para a organização dos Encontros e, sobretudo, da Vigília em frente ao prédio da Polícia Federal. Á atividade incansável da rede de juristas organizados na ABJD, à adesão de grandes artistas populares que influenciaram o mundo da cultura, à solidariedade da ala mais à esquerda da Igreja Católica, que abriu as portas do Vaticano, além de outros religiosos.
Remete, também, à estabilidade na formação do Comitê Lula Livre Nacional e sua capilaridade em muitas cidades, a regularidade dos boletins de informação, a qualidade dos materiais de agitação e propaganda, a iniciativa dos Festivais, a persistência dos mutirões, as atividades de rua e, também, a força do compromisso do próprio Lula que perseverou, destemidamente. Há muitos grãos de verdade neste balanço, mas ele é unilateral. Em sua versão mais extrema desconsidera a divisão entre as forças sociais hostis ou até inimigas, uma versão ilusória de voluntarismo.
A segunda é aquela que argumenta que uma fração da classe dominante passou a defender a liberdade de Lula, como resposta a uma nova situação política precipitada pela crise sanitária, econômica, social e política ao longo do último ano, em função dos desastres do governo de extrema-direita. O isolamento de Bolsonaro acabou favorecendo Lula. A pressão burguesa sobre o STF responderia, preventivamente, à preocupação diante do perigo de uma explosão social, ou à necessidade de contar com Lula e com o PT para preservar a estabilidade institucional em caso de um impeachment.
Nas correntes mais sectárias florescem ideias perigosas e até, curiosamente, contraditórias, senão de inspiração paranoica. Alguns sugerem que a fração mais poderosa da burguesia pressionou pela liberdade de Lula para enfraquecer Bolsonaro, outros que Lula teria interesse em preservar Bolsonaro, porque perderia favoritismo nas eleições de 2022, se Bolsonaro fosse deslocado. Há, também, um grão de verdade aqui, mas não mais do que isso. Na sua versão mais extrema esta visão flerta com teorias de conspiração.
A terceira é muito mais complexa. A campanha Lula Livre começou em condições muito adversas. Quando Lula foi preso, em abril de 2018, era impossível prever que em novembro de 2019 estaria solto e, muito menos, que em março de 2020 teria recuperado seus direitos políticos. A evolução foi muito rápida. Campanhas similares, como a luta pela liberdade de Mandela foram, incomparavelmente, mais longas e difíceis. Processos assim só podem ser explicados considerando muitos fatores.
Claro que é educativo começar a avaliação sublinhando a importância da campanha unitária da esquerda pela sua libertação. Deixou uma lição inspiradora para os perigos do futuro. Na hora das derrotas, conseguir manter a cabeça erguida é essencial. Nada substitui a firmeza e a dignidade. E ficaram muito mal diante da fotografia da história aquelas correntes e grupos de esquerda que se recusaram a defender Lula Livre.
Sem o engajamento incansável do MST na construção da campanha tudo teria sido muito mais difícil. Sem a aposta que prevaleceu no PT de que a influência de Lula permitia que a campanha tivesse uma audiência de massas não teria sido possível. Mas a unidade dos dois maiores partidos da esquerda brasileira além do PT, PSol e PCdB foi fundamental, também. Nunca foi uma luta somente do PT. A luta pela liberdade de Lula engajou, em maior ou menor proporção, a imensa maioria da esquerda brasileira, felizmente.
Mas seria ingênuo atribuir o desenlace das votações no STF à força da campanha. Não foi possível organizar atos de massas pelo Lula Livre. Todos os atos foram, em maior ou menor medida, atos de vanguarda. Sejamos honestos: atos da militância. Ou seja, agruparam o ativismo mais consciente ou, ideologicamente, politizado, em especial, os “inoxidáveis”, a “velha guarda” da esquerda brasileira que veio dos anos oitenta e noventa.
Outros fatores pesaram muito no desenlace das votações do STF. O julgamento de Lula foi sempre, desde o início, um processo político, indivisível do golpe institucional de 2016 que deslocou Dilma Rousseff da presidência. Esse era o calcanhar de Aquiles da operação que culminou na prisão de Lula: nenhum setor importante da burguesia se posicionou contra o golpe. Um golpe semelhante ao que aconteceu em Honduras e no Paraguai. Um golpe que abriu o caminho para Bolsonaro chegar á presidência.
A perseguição política mascarada pela judicialização era uma operação muito perigosa, porque estabelecia precedente grave, a legitimação do lawfare. Quando Sergio Moro aceitou, desenvergonhadamente, o cargo de ministro da Justiça no governo de extrema-direita liderado por um neofascista como Bolsonaro, a turbulência começou, sobretudo, no exterior.
A divisão do mundo jurídico entre os denominados “garantistas” e “lavajatistas” existiu, portanto, durante todo o processo. O modelo de denúncias construídas sobre delações premiadas sem outras provas além dos testemunhos de réus interessados em anistia era um escândalo.
Mas tudo se acelerou na medida em que a manipulação realizada pela Lava-Jato foi desmascarada pela publicação pelo The Intercept da troca de mensagens entre Sergio Moro e os procuradores, e confirmada pelos arquivos da operação spoofing, Quando o centrão deixou de ser somente base de sustentação parlamentar e se incorporou, plenamente, no governo os conflitos com a operação Lava-Jato passaram a se expressar dentro do governo. Não são poucos os parlamentares do centrão, mas, também, do MDB, Democratas e até do PSDB, ninguém menos que Aécio Neves, candidato presidencial derrotado em 2014, partidos históricos da representação burguesa desde o fim da ditadura, que estavam sob investigação.
Não menos importante foi a mudança lenta da conjuntura em função da hecatombe sanitária da pandemia. O obtuso negacionismo de Bolsonaro diante da tragédia humana do contágio em massa e do colapso do SUS, desconsiderando a emergência da contratação de vacinas, defendendo remédios imaginários, denunciando a necessidade de quarentenas e, constantemente, ameaçando com o autogolpe resultou em enfraquecimento social e político. A derrota de Trump mudou o lugar do governo Bolsonaro no mundo de forma qualitativa.
Ainda que Bolsonaro mantenha apoio majoritário na “massa da burguesia”, quando consideramos os seis milhões de empresários de conjunto, o desastre em curso produziu fissuras no núcleo duro da classe dominante. Nenhum setor defende o impeachment, mas o manifesto dos 500 foi um alerta amarelo. A maioria da grande burguesia, alguns poucos milhares de bilionários, ainda aposta na preservação do regime democrático-eleitoral. As ameaças bonapartistas de Bolsonaro fraturam a classe dominante. E um regime democrático-liberal não é possível sem a esquerda na legalidade.
Vencemos, porque lutamos, mas, também, porque nossos inimigos se dividiram.
E a luta de classes nunca é em vão.
Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).