A frente política e o programa

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Por Ricardo Gebrim*

Nos dois últimos meses, a polêmica entre uma frente ampla, contemplando e atraindo frações burguesas ou uma frente popular conformada por organizações de esquerda tem sido a expressão de divergências estratégicas que não são enfrentadas diretamente

Quase sempre, os grandes debates estratégicos se mostram em polêmicas aparentemente menores, que podem levar os incautos a considerarem que são apenas falsas divergências.

Nos dois últimos meses, a polêmica entre uma frente ampla, contemplando e atraindo frações burguesas ou uma frente popular conformada por organizações de esquerda tem sido a expressão de divergências estratégicas que não são enfrentadas diretamente.

Tanto os defensores da Frente Ampla, quanto os que sustentam a Frente Popular evocam a campanha das diretas já (1984/1985), extraindo conclusões distintas das posturas divergentes adotadas pela esquerda naqueles anos, demonstrando a profundidade da divergência e como ela segue presente tantos anos depois.

O interessante é que tal debate, de extrema importância na luta contra Bolsonaro, apesar de gerar inúmeras lives, envolvendo o conjunto da militância popular, praticamente não passa pelas experiencias concretas de unidade das forças da esquerda, vale dizer, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo.

As importantes iniciativas de construção de unidade das forças populares sempre evitaram as discussões teóricas entre as organizações componentes. Há um senso comum de que a ação conjunta só é possível em torno do praticismo, rejeitando ou secundarizando todos os esforços para teorizar sobre a realidade. Tal caminho pode ser válido em determinadas conjunturas, mas representa um grave limite no atual momento. Afinal, sem uma análise teórica-histórica acerca da realidade, as polêmicas acabam girando em torno de projetos de candidaturas ou leituras subjetivistas que confundem os desejos com a realidade.

É certo que o método de limitar-se ao ativismo conjunto, fugindo dos debates, cumpriu um importante papel em diversas iniciativas que buscavam recompor forças após o impacto na correlação de forças mundiais, determinado pelo fim da URSS e das demais experiencias de transição socialista no leste europeu, bem como ante a consequente ofensiva neoliberal que enfrentamos na década de 90.

Porém, ele já não responde ao atual momento, desde a derrota estratégica que teve seu ápice com o golpe de 2016.

Uma aliança entre várias organizações somente se converte numa frente política quando se constrói um programa que traduz uma estratégia mínima. Atualmente isso não avançará se não enfrentarmos o debate estratégico. Cada eleição desmonta todo o acúmulo de construção organizativa da unidade, convertendo a disputa pelas candidaturas num debate imediatista, determinado pelas pesquisas de preferência eleitoral ou atendimento às imposições da legislação.

O preço da manutenção da tênue unidade é não enfrentar tais debates e manter-se apenas em calendários de lutas conjuntas.

Só uma Frente Popular pode assumir o programa necessário.

Tenho sustentado que devemos apostar numa frente popular ou de esquerda como alguns preferem denominar. Evidente que é necessária uma coalizão ampla em torno da luta pontual pelo afastamento de Bolsonaro. Mas, isso não deve ser considerado como uma frente política. Trata-se de combater junto com setores da burguesia descontente em torno do afastamento de Bolsonaro e a defesa dos direitos democráticos. Sem que as lutas incorporem tais pontos nenhuma aliança deve ser feita, sob pena de recairmos numa aliança subordinada.

Não é apenas uma questão de nomenclatura. A natureza da aliança com setores da burguesia não é a mesma da aliança na frente popular. A primeira é circunstancial, a segunda é estratégica.

A decisão tem um fundamento tático e estratégico fundamental. Desde os anos 80, quando a luta contra a ditadura ganha força social, a esquerda brasileira representou as classes trabalhadoras. O enfrentamento coerente da ditadura, a postura firme na defesa das Diretas Já e um programa que traduzia essa representação sãos as causas que quase levaram Lula à vitória na primeira eleição presidencial após a ditadura em 1989 e se mantiveram nas décadas seguintes.

O cenário se alterou desde antes do golpe de 2016.

Hoje, recompor a capacidade de representação política das classes trabalhadoras deve estar no centro da tática das forças de esquerda, sob o risco de permanecermos fora do jogo político. Muitas iniciativas estão em curso, mas há uma que é pressuposto essencial: a questão do programa.

Não se trata de um mero programa de medidas emergenciais que além de cumprir um papel importante é sempre um necessário ponto de partida.

É preciso um programa de clara ruptura com o neoliberalismo, com medidas antimonopolistas, antilatifundiárias e antimperialistas. Que se traduza numa reforma tributária ampla, profunda, que onere o capital e taxe as grandes fortunas. Que proponha de forma clara a estatização dos grandes bancos privados, o ensino público e gratuito e uma efetiva reforma agrária.

Evidente que esse programa não será tolerado por nenhuma fração burguesa, limitando as margens de manobra para qualquer aliança que não seja pontual, como o afastamento de Bolsonaro.

A unidade das forças populares é fundamental para propagar e construir esse programa. Isso exige muita capacidade para enfrentarmos os debates teóricos necessários e não nos refugiarmos no ativismo imediatista, sempre necessário, mas impotente para superar as derrotas profundas.

*Ricardo Gebrim é advogado e membro da Direção Nacional da Consulta Popular

Publicado originalmente em Brasil de Fato

 

 

 

 

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