A lula e a baleia

Wassily Kandinsky, Sem título, 1934.
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Por VANDERLEI TENÓRIO*

Comentário sobre o filme dirigido por Noah Baumbach

De acordo com o Instituto de Crescimento Infanto-juvenil (ICIJ), quando um casal decide se separar, frequentemente a maior preocupação é com os filhos: Será que vão ficar bem? Como dar a notícia a eles? A apreensão é justificada, especialmente quando se trata de crianças, que não têm entendimento total da situação e podem sofrer grandes prejuízos com o divórcio, inclusive em seu desenvolvimento a longo prazo. No entanto, os especialistas são unânimes em afirmar que é melhor ter pais separados do que um lar de brigas constantes e desarmonia.

Normalmente, o casal que já passou por um processo de divórcio tenta ao máximo evitar que o fim do relacionamento afete seus filhos. Infelizmente, isso é impossível porque não é realista dizer às crianças que nada vai mudar. Mesmo que os pais ajam com cautela e assumam a responsabilidade emocional, certas coisas mudarão. Por exemplo, é impossível para uma família continuar morando na mesma casa após a separação, então os hábitos de vida dos filhos mudarão muito.

Ainda segundo o Instituto de Crescimento Infanto-juvenil (ICIJ), a rotina, aliás, é um ponto importante. Saber o que vai acontecer ao longo do dia, ou como será a semana, é importante para o equilíbrio psíquico de qualquer criança. No caso de um divórcio, quanto mais rápido a nova rotina for implantada e explicada para a criança, melhor será sua adaptação. Facilita muito se a criança puder fazer pequenas escolhas nesse novo dia a dia, com a criação de regras e combinados em conjunto com os pais.

Partindo desta premissa, o longa-metragem A lula e a baleia expõe excepcionalmente essa questão: como esse processo impacta na relação pais x filhos. Na narrativa textual, há diálogos densos e bem escritos, que focam em apresentar as preocupações com os detalhes do dia a dia, a dinâmica do pós-divórcio e o impacto do processo extrajudicial na vida de cada membro da família.

A lula e a baleia  é o quarto longa-metragem de Noah Baumbach, mesmo diretor, produtor e roteirista do sucesso de crítica História de um casamento. Filho do escritor, acadêmico, ensaísta e crítico de cinema Jonathan Baumbach (1933-2019) e da crítica de cinema Georgia Brown, Baumbach tenta reproduzir com intimidade, veracidade e visceralidade o ambiente de narcisismo e hipercompetividade intelectual em que cresceu.

O longa é uma adaptação semi-autobiográfica e parcialmente ficcional que foca em detalhar de forma meramente fictícia o conturbado processo de divórcio dos pais de Baumbach, pelo roteiro Noah foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original (2006). O título do filme faz alusão direta a um conto de terror infantil do ‘pai do verso livre’, o poeta, ensaísta e jornalista estadunidense Walt Whitman (1819-1892). Em si, metaforicamente representa a luta entre um cacholote (Physetermacrocephalus) e uma lula gigante (Architeuthis) no famoso Museu de História Natural de Nova York – paradoxalmente, Baumbach reproduz esse arrasamento em seu roteiro, ao analisar metodicamente a relação conflituosa e a luta de egos de seus pais intelectuais.

No artigo científico “Casamento contemporâneo: O difícil convívio da individualidade com a conjugalidade”, Terezinha Feres-Carneiro analisa: “Quem se separa é o par amoroso, o casal conjugal. O casal parental continuará para sempre com as funções de cuidar, de proteger e de prover as necessidades materiais e afetivas dos filhos. […] Costumo afirmar que o pior conflito que os filhos podem vivenciar, na situação da separação dos pais, é o conflito de lealdade exclusiva, quando exigida por um ou por ambos os pais”.

A pesquisadora relata uma situação rotineira, quando os pais têm dificuldade de se distanciar da própria dor para olhar para a dor do filho. Quando fazer esse movimento de distinguir a conjugalidade da parentalidade é difícil para os pais (um deles ou ambos), o ideal é buscar a ajuda de um psicólogo, de modo a elaborar a situação para si mesmos e conseguirem evitar transferir suas dificuldades em relação ao ex-parceiro para a criança, ou de contaminar a percepção do pequeno com as próprias opiniões sobre o pai ou a mãe dele.

O longa-metragem inicia com uma partida de tênis em família. No jogo, Bernard Berkman (o ganhador do Emmy de Melhor Ator em Série Dramática, Jeff Daniels) e seu filho mais velho, Walt (o indicado ao Oscar de Melhor Ator, Jesse Eisenberg), estão de um lado da quadra, enquanto sua esposa, Joan (a indicada ao Oscar de Melhor Atriz, Laura Linney) e o caçula, Frank (Owen Kline, filho do ganhador do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, Kevin Kline), estão do lado oposto – ironicamente o jogo representa a futura disputa conjugal que o professor Bernard e sua esposa, a escritora Joan irão travar um contra outro.

“Mamãe e eu contra você e papai”, diz Frank antes de iniciar o jogo. A frase serve, em grande parte, para caracterizar a relação entre os membros da família e, também é um prelúdio do posicionamento de cada um ao longo do desenrolar desta ruptura conjugal. O jogo termina com uma briga do casal, o que revela o desgaste da relação. É com esse início que Baumbach apresenta a excêntrica família Berkman. O enredo tem como pano de fundo a cidade de Nova York (Brooklyn) da segunda metade da década de 80 (1986) e, como já comentado acima trata de questões pessoais vivenciadas pelo próprio Baumbach no decorrer de sua adolescência.

Bernard é um professor de literatura que outrora fora um escritor de sucesso. No momento, ele encara o declínio de sua exitosa carreira, as sucessivas negações de editoras em lançar seu novo romance comprovam o fato, o que ironicamente coincide com a ascensão profissional de sua esposa Joan, que desponta como revelação no mundo literário, ela que emplacou um artigo na revista The New Yorker e assinou um contrato para publicar um livro. O sucesso de Joan, especialmente na área de fracasso de Bernard, serve como um balde água fria num casamento falido e já marcado pelos inúmeros casos extraconjugais de Joan, dos quais Bernard tem ciência.

Nos minutos iniciais do longa, Bernard e Joan se separam, o pedido de separação parte de Joan. Podemos notar que embora a briga que culmina com o pedido de separação tenha se iniciado com a discussão sobre os casos extraconjugais de Joan. Fica claro que Bernard não deseja deixá-la, mas também não é capaz de externar esse sentimento. Assim como foi em todo o período estiveram casados, ele encara a situação com arrogância e, ao invés de expressar seus sentimentos, trata o momento como mais uma de suas reflexões banais.

Após comunicarem aos filhos o término do casamento, Bernard aluga uma casa e exige de Joan que seus filhos fiquem com ele em dias alternados (ou seja, Frank e Walt devem ficar um dia na casa dele e outro na casa dela). Essa organização confunde os filhos, que não conseguem se estabelecer em nenhuma das casas. Uma atenuante é que Frank tem ligação afetiva mais forte com sua mãe, relutando em dormir na casa do pai, chegando mesmo a fugir de lá algumas noites; Walt, por sua vez, revoltado ao saber das infidelidades de sua mãe, recusa-se a frequentar sua casa e mora exclusivamente com Bernard.

Além dele e seus filhos, em sua nova casa Bernard hospeda Lili (a ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, Anna Paquin). Lili é uma estudante de literatura, muda-se para a casa de seu professor e passa a ser desejada por pai e filho, embora eles não percebam o interesse do outro. O conhecimento só vem à tona quando Joan critica Bernard por estar tendo um caso com ela, que tem apenas 20 anos, e avisa que Walt gosta dela. Walt, por sua vez, descobre o caso do pai com a aluna quando flagra os dois no quarto de Lili.

O flagrante causa ruptura entre pai e filho. Antes dessa ruptura, porém, é necessário entender a relação entre os dois. A primeira cena de jantar em família, quando todos ainda vivem na mesma casa, assim como o jogo de tênis supracitado, já antecipa uma questão que é central na narrativa: a relação entre Bernard e Walt, que, a princípio aparenta ser uma relação de cumplicidade, de aprovação e de admiração do filho em relação ao pai; aos poucos se revela uma relação de dependência do pai à atenção de seu filho, que depois de sua ruína e decadência profissional passa a ser sua única plateia.

Nesse jantar, Walt relata que lerá Um conto de duas cidades (1859), do romancista inglês Charles Dickens na escola e pergunta a opinião de seu pai sobre a obra. Diante do pouco entusiasmo do pai, Walt decide não “perder tempo” lendo esse clássico da literatura inglesa, mesmo sua mãe tendo argumentado que é necessário que ele leia e tire suas próprias conclusões. Isso reafirma a predileção Walt por seu pomposo pai, quase em tom de devoção.

Em diversos outros momentos, Walt exterioriza comentários sobre livros e filmes que se baseiam no que ouviu seu pai dizer, embora não tenha reais conhecimentos sobre os mesmos. Sua imitação do pai não se resume a comentários pseudo intelectualizados, mas também em relação aos seus relacionamentos afetivos.

Walt conhece e passa a se relacionar com Sophie (Halley Feiffer), sua colega de escola. O relacionamento entre os dois deixa clara a imaturidade do menino. Uma imaturidade sexual, haja vista sua ejaculação imediata após um rápido toque íntimo de sua namorada, e, principalmente, uma imaturidade emocional, visto que Walt fica todo o tempo em dúvida se deve continuar com Sophie, mesmo gostando dela, porque na visão dele “pode conseguir coisa melhor”. Essa sua imaturidade, fomentada pela prepotência e arrogância que copia do comportamento de seu pai, acaba por magoar Sophie e causa o fim do relacionamento.

Observe o seguinte, o tratamento de Bernard em relação ao namoro de Walt pode explicar, em parte, a impossibilidade de relacionamento entre ele e Joan. Ao conversar com seu filho sobre o relacionamento com Sophie, ele sempre deixa claro para o filho que ele deve se ver superior a ela, que a mulher pode ser um obstáculo na vida de um homem genial (como ele se considera) e que é preciso cautela ao assumir o compromisso com alguém. Puramente escroto da parte dele enquanto pai.

Em sua ânsia de ser igual ao pai, que ele considera genial, Walt chega ao ponto de cantar no festival da escola a música “Hey You” (1980), do Pink Floyd, como se fosse sua. Ele ganha o festival. No entanto, quando a verdade é descoberta, é obrigado a devolver o prêmio e seus pais são chamados à escola.

A atitude do pai, diante dessa descoberta, é mais uma vez uma prova de sua soberba e arrogância. Ele não critica o menino, pois, como já foi dito, Bernard se considera e também a seu filho, acima de qualquer regra e convenção social. A lei e a verdade se aplicam aos outros, meros mortais, não a eles. O único problema que o pai aponta para o filho é o fato de que, por norma da escola, Walt terá de frequentar um terapeuta. Já de início, Bernard afirma para o filho que provavelmente ele será atendido por alguém sem qualificação.

Frank, o filho mais novo de Bernard, é completamente desligado de Bernard. Nisso, busca uma identificação com seu professor de tênis Ivan (William Baldwin), que é o atual namorado de Joan. Frank busca, a todo custo, um desligamento total de Bernard, seja afirmando que seus traços físicos são os mesmos de sua mãe, seja se autoproclamando um “filisteu”, que é a expressão que seu pai usa contra Ivan, para acusá-lo por não se interessar por livros e filmes. Ser um filisteu significa, para Frank, ser diferente de seu pai e é isso que ele almeja, diferente de Walt que idolatra seu pai.

A separação dos pais e a obrigação de ficar um dia em cada casa trazem consequências graves para o menino, que passa a beber cerveja e outras bebidas alcoólicas em casa, sem que os pais percebam, e a se masturbar em locais públicos e espalhar o sêmen pela escola. A cena em que os pais são chamados na escola mostra o descaso destes em relação a Frank. Eles não fazem ideia do que está acontecendo com a criança e já chegaram ao ponto de deixá-lo só em casa por várias horas, enquanto a mãe viajava com o namorado e o pai estava no jantar com Walt e Sophie. Sem se identificar com o pai e sem encontrar na mãe a força e a presença que necessita no momento, Frank segue sozinho na trama, protagonizando cenas solitárias e recebendo alguma atenção apenas de seu irmão.

Segundo Luiz Castilho do site Cinematologia, Baumbach utiliza a câmera na mão, criando proximidade da audiência com a situação, transformando-a em um espectador onipresente, amplificando ainda mais o drama retratado naquele momento.

Ainda segundo ele, não obstante, a fotografia possui um trabalho essencial para configurar a ambientação do longa-metragem, utilizando uma paleta de cores com tons pastéis a fim de criar a atmosfera de algo passado, como uma lembrança ou um relato, tanto que a história se passa nos anos 1980, o que, além de ser o esperado, se sobressai com essa camada, agregando ainda mais valor ao filme.

As atuações são excepcionais. Difícil não sentir ranço de Jeff Daniels; não se compadecer de Laura Linney; não se ver na dor dos filhos que buscam uma referência para si. A trilha literalmente é um show a parte, o figurino retrata com fidelidade os anos 80 e a cenografia é muito intimista e verdadeira.

*Vanderlei Tenório é editor da página Cinema e geografia.

Referência


A lula e a baleia (The Squid and the Whale)
Estados Unidos, 1986, 81 minutos.
Direção: Noah Baumbach
Produção: Wes Anderson
Elenco: Jeff Daniels, Laura Linney, Anna Paquin, Jesse Eisenberg, Owen Kline.

Referências:


BELMIRO, Marcia. “Quando os pais se separam, como auxiliar os filhos”. Instituto de Crescimento Infanto-juvenil. Rio de Janeiro, 23 de março de 2021.  Disponível em: <https://institutoinfantojuvenil.com.br/quando-os-pais-se-separam-como-auxiliar-os-filhos/>.

WELLEN, Hérica. “A lula e a baleia: sobre separações humanas e distanciamento social”. Blog da Revista Espaço Acadêmico. Maringá, 23 de mar. de 2021. Disponível em: <https://espacoacademico.wordpress.com/2013/05/15/a-lula-e-a-baleia-sobre-separacoes-humanas-e-distanciamento-social/>.

CASTILHO, Luiz. Crítica de A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale) [2005]. Cinematologia. São Paulo, 23 de mar. de 2021. Disponível em: < https://cinematologia.com.br/cine/critica-a-lula-e-a-baleia-the-squid-and-the-whale-2005/ >.

FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, vol. 11, no.2, p. 06-07, 1998.

 

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