Por FELIPE COTRIM & GUSTAVO VELLOSO*
Desde 2016, emergiu nas redes sociais uma onda de revitalização da figura de Josef Stálin
Um estranho fenômeno ronda o YouTube e as redes sociais. É o negacionismo histórico dito “de esquerda”. Tudo (ou quase) começou em 2016, quando, logo após o golpe de Estado que resultou na destituição de Dilma Rousseff da Presidência da República, uma dúzia de gatos pingados começou a compartilhar em seus perfis de Facebook imagens de Josef Stálin acompanhadas de frases do tipo: “Stálin matou foi pouco”. Talvez quisessem com isso dizer que diante das atrocidades e injustiças que o capital é capaz de realizar, somente um governo forte e orientado por objetivos inegociáveis seria capaz de oferecer a perspectiva de uma realidade social alternativa. Mas se quiseram, não o disseram.
Naquele momento, houve repercussões negativas na mídia de esquerda e os autores da barbaridade se esquivaram alegando se tratar de uma mera brincadeira. Alguns se desculparam, enquanto outros simplesmente fingiram que o assunto não era com eles. O assunto passou. Ou melhor, achávamos que havia passado. Desde então, uma verdadeira onda de revitalização da figura de Stálin começou a ganhar fôlego entre alguns setores da esquerda, com especial destaque para os mais jovens, apressados por assumir uma postura pretensamente “radical” frente ao tenebroso quadro de retrocesso político que até o momento só tem se aprofundado. Uma radicalidade, porém, que nenhuma relação guarda com a célebre formulação marxiana segundo a qual a crítica radical é aquela que se dirige à esferas mais profundas dos problemas humanos.
O resgate do georgiano, que havia anos vinha sendo colocado no banco de reservas das referências políticas por se associá-lo aos crimes de Estado que foram realizados durante a sua gestão da União Soviética, tem curiosamente se nutrido de uma relativização da ideia de que esses crimes foram efetivamente praticados. As relativizações aparecem, em alguns casos, de maneira mais envergonhada. Em outros casos, menos. E quando não há vergonha nenhuma, ela se transforma em negação explícita e direta.
Começa-se a especular que talvez os anos de Stálin não tenham sido tão ruins como se diz… que as críticas ao stalinismo não passam de um pobre moralismo liberal… que as circunstâncias históricas ajudam a explicar as decisões tomadas… que as mesmas atrocidades realizadas sob o stalinismo foram realizadas também por outras nações, pelos países ocidentais (“manhê! foi ele que começou!”)… que sem o stalinismo o nazismo poderia não ter sido derrotado… e, na versão mais hard dessas piruetas intelectuais: que o antistalinismo não pode ser outra coisa que uma forma de anticomunismo (!!!)…
Os adeptos desse conjunto de ideias desconexas quase não tiveram dificuldades de encontrar um referencial teórico que lhes parecesse minimamente sólido (uma vez que, depois de muito procurar, não o encontraram nos textos do próprio Stálin). Depararam-se com Domenico Losurdo, filósofo italiano falecido em 2018, cujos trabalhos já vinham sendo traduzidos e publicados no Brasil pelo menos desde o começo dos anos 2000. De Losurdo, duas obras têm recebido ampla projeção no nosso país (ao que parece, muito mais nos blogs e vídeos de YouTube do que propriamente nos espaços universitários): Stálin: história crítica de uma lenda negra e O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer.
A tradição socialista e marxista é rica em polêmicas teóricas e políticas. Que se recorde desde a crítica de Karl Marx a Pierre-Joseph Proudhon em Miséria da filosofia (1847), passando pela crítica de Friedrich Engels a Eugen Dühring em Anti-Dühring (1878), Vladímir Ilítch Lênin a Karl Kautsky em A revolução proletária e o renegado Kautsky (1918), Carlos Nelson Coutinho contra o estruturalismo em O estruturalismo e a miséria da razão (1972), Edward Palmer Thompson a Louis Althusser em A miséria da teoria (1978), entre muitas outras.
O historiador e militante comunista ítalo-brasileiro Mário Maestri, incansável pesquisador e debatedor da historiografia marxista, fez juz a esta tradição em seu mais recente livro, Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios (Porto Alegre: FCM Editora), lançado em agosto de 2020. (O ao vivo do encontro de lançamento encontra-se disponível no pelamanha allamattina @ YouTube.)
De um lado, Maestri se debruça sobre o curioso (e excêntrico) fenômeno de recepção da obra de Losurdo pelo ainda mais curioso (e excêntrico) “neostalinismo” que parece estar se desenvolvendo no nosso país, fenômeno recente, caracterizado por Maestri como “ideologia justificadora da contrarrevolução capitalista” dentro do movimento e dos partidos socialistas e comunistas contemporâneos (p. 13). De outro, o livro visa atender às necessidades práticas e teóricas do movimento socialista e comunista brasileiro e criticar a obra de um de seus mais recentes ídolos de estimação importados: o filósofo italiano Domenico Losurdo (1941-2018).
Os motivos apresentados por Maestri para justificar a escrita e publicação do livro decorre do crescimento tanto de um certo stalinismo “nostálgico” (definido pelo autor como um subproduto da des-stalinização burocrática de Nikita Khrushchov) quanto de uma nova forma de neostalinismo surgido entre militantes e simpatizantes do socialismo e comunismo no Brasil.
Maestri menciona duas experiências pessoais concretas como exemplos.
A primeira faz referência ao breve período em que foi militante de uma célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Estado do Rio Grande do Sul entre 2017 a 2018. Frequentemente nas reuniões e outras ocasiões de encontro, uma camarada veterana referia-se em tons elogiosos e apologéticos a Josef Stálin. Quando questionada, costumava responder: “– Já leste Losurdo? – Lê Losurdo!” (p. 14, 43).
O segundo caso lhe foi relatado por um jovem militante da União da Juventude Comunista (UJC), que lhe relatou sobre a literatura manualesca que circulava entre os militantes e o apreço que seus jovens camaradas tinham por Stálin e Losurdo. Segundo ele, uma das principais fontes de informação e formação política da militância eram as publicações de Jones Manoel da Silva – mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (2018), blogueiro, youtuber e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), é reconhecido por muitos como especialista da obra de Domenico Losurdo e um de seus principais divulgadores no Brasil.
Maestri identificou um forte impulso militante entre os jovens brasileiros desde as Jornadas de Junho de 2013. Contudo, o voluntarismo militante não garante e não substitui outras valiosas virtudes comunistas. Para Maestri, a atual juventude militante brasileira é caracterizada pela “escassa formação política”, científica e pela bibliofobia – afinal, uma grama de ação vale mais que uma tonelada de teoria, não? –, o que a faz suscetível aos modismos intelectuais importados e a leitura anacrônica e acrítica de livros, manuais e documentos políticos em geral (p. 14).
A ampla divulgação e promoção de conteúdo político de baixa sustância científica e teórica entre a militância nos mais diversos formatos e plataformas – materiais impressos, digitais, audiovisuais etc. – é considerada por Maestri como uma das responsáveis pela renovação do stalinismo entre a militância socialista e comunista brasileira. Enfim, a marcante presença – e em não poucos casos, a marcante idolatria – a Losurdo entre estudantes, militantes, professores e intelectuais no Brasil surpreendeu Maestri.
Em suas frequentes viagens à Itália, relatou Maestri, ele raramente escutava ou lia algo referente a Losurdo. Segundo palavras do próprio Maestri, Losurdo foi autor de “limitadíssima audiência” na Itália (p. 15). Sendo assim, por que Losurdo seria tão valorizado no Brasil? Entre muitos motivos, um dos indicados por Maestri foi o ethos de psittacidae, ou o comportamento de papagaio de muitos brasileiros – o famoso: “Não li, mas gostei, já que todos gostaram” (p. 15). O argumento não é dos mais fortes e soa excessivamente subjetivo. Há, porém, um argumento mais substancial e de fundamento histórico.
Uma das teses defendidas por Maestri é que vivemos em uma fase histórica contrarrevolucionária. Seus marcos foram a restauração capitalista na China em 1978 sob a liderança do reformador Deng Xiaoping e a dissolução da União Soviética em 1992 – acontecimentos que consolidaram a mundialização do capitalismo. Nesse solo histórico, defendeu Maestri, teriam brotado as distorções contemporâneas do marxismo e dos partidos e movimentos socialistas e comunistas, a tal ponto que o presidente russo, Vladímir Pútin, e o presidente chinês, Xi Jinping, ganharam status de rivais ativos e alternativa ao imperialismo estadunidense (p. 13-14, 21, 25-26).
Acompanhado desses fenômenos materiais na economia e na política, argumentou Maestri, viriam os fenômenos culturais e intelectuais, entre eles, o revisionismo histórico de Losurdo, muito ecoado no Brasil por blogueiros, youtubers e pelos interesses do mercado editorial e livreiro – afinal, um livro é um livro. Entretanto, sob determinadas condições, ele se torna mais um item da “enorme coleção de mercadorias” (Karl Marx, O capital: livro I, seção 1, cap. 1; seção 8, cap. 25).
O livro organiza-se em três partes. Na primeira, destacam-se as resenhas críticas de dois livros de Losurdo, Stálin: história crítica de uma lenda negra (Rio de Janeiro: Revan, 2010 [1. ed., 2008]) (Stalin: storia e critica di una leggenda nera, Roma: Carocci, 2008) e O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer (São Paulo: Boitempo, 2018) (Il marxismo occidentale: como nacque, come morì, como può rinascere, Bari & Roma: Laterza, 2017) – ambas publicadas anteriormente no portal Esquerda Online.
Na segunda parte, encontram-se alguns breves textos de depoimentos e considerações pessoais do autor sobre o neostalinismo – também publicados anteriormente nas redes. Destes, destacam-se os relatos de conversas com Dimitris Anagnostopoulos – pintor e poeta grego radicado no Brasil e combatente comunista na Guerra Civil Grega (1943-1949) – e Jacob Gorender, historiador brasileiro, combatente na Segunda Guerra Mundial pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) entre 1943-1945 e militante comunista.
Na terceira e última parte do livro, encontra-se uma tradução inédita em português de documento sobre os prisioneiros de Vekhneuralsk, perseguidos e presos políticos “hereges” dos anos 1930 na União Soviética. A tradução – assim como o texto de apresentação – foram feitas por Maestri em parceria com sua companheira, Florence Carbonari, linguista italiana e professora da Universidade Católica de Louvain (UCLouvain).
Para os fins deste breve texto de intervenção pública, os dois primeiros capítulos do livro de Maestri são de maior interesse. Neles Maestri apresenta-nos um exame crítico de dois livros de Losurdo: Stálin e O marxismo ocidental.
Em seu exame de Stálin, Maestri expõe todas as deficiências de Losurdo com historiador. Segundo Maestri, as obras de Losurdo examinadas pecam pelo baixíssimo rigor metodológico e científico, desrespeito a objetividade das fontes, anacronismos e confusões cronológicas sobre a história russa, soviética e europeia, além de reciclar antigos preconceitos do antitrotskismo.
Nas palavras do próprio Maestri, Losurdo “amálgama fenômenos históricos e cronologias. Empreende saltos lógicos, subjetivos, idealistas, quando deveria se escorar em material fatual. Em tempos da globalização desenfreada, apoia-se em digressões de F. Hegel, o filósofo da era da gênese-consolidação dos Estados-nações. Faz das tripas coração para propor que o estalinismo e o “Grande Terror” [1934-8] nasceram dos ataques golpistas e terroristas dos trotskystas, que sabotavam a defesa da URSS da “escravização” nazista, o principal coelho que saca da cartola. Vai buscar não se sabe onde uma “Terceira Guerra Civil” soviética, iniciada no interior do PCUS, vencida heroicamente por J. Stalin e seus sabujos, à custa de alguns milhões de mortos, sobretudo contra os bandidos trotsquistas! O que propõe como inevitável” (p. 26).
Em parte, os erros de Losurdo advêm, argumentou Maestri, tanto de sua frágil e questionável bibliografia de apoio quanto da falta justamente da matéria prima indispensável a todo historiador: as fontes – disponíveis ao pesquisador em arquivos históricos, muitos deles públicos e de livre acesso. Para aqueles arquivos distantes, muitos deles hoje oferecem acesso a seu acervo no formato digital por meio da internet. Porém, Losurdo não é historiador – nem de formação, nem prático –, pois “não gosta de arquivos ou de dar-se ao trabalho de usá-los” (p. 34).
Grande parte da bibliografia de referência e de apoio utilizada por Losurdo consistem em autores e/ou pesquisadores revisionistas, negacionistas e abertamente conservadores e anticomunistas, entre eles O livro negro do comunismo (Stéphane Courtois (org.), Le livre noir du communisme: crimes, terreur, répression, Paris: Éditions Robert Laffont, 1997), de reputação questionável, e o livro Tecnica del colpo di Stato (Technique du coup d’Etat, 1931), de Curzio Malaparte, fascista italiano que marchou com Benito Mussolini sobre Roma em 1922. Mesmo quando faz referência a historiadores e pesquisadores minimamente sérios e respeitáveis, Losurdo fez uso de trabalhos e de autores que foram desatualizados pelo tempo, tal como Isaac Deutscher. As biografias clássicas de Deutscher sobre Stálin (publicada em 1949) e Trótski (publicadas nos anos 1950 e 1960) ficaram desatualizadas com a abertura dos arquivos soviéticos no início dos anos 1990. Porém, Losurdo, argumentou Maestri, ignora toda a bibliografia científica e historiográfica produzida com base nos arquivos russos, não só porque Losurdo não lê russo – requisito obrigatório para qualquer pesquisador que se aventure seriamente na história russa e soviética – como também para não contradizer suas hipóteses sustentadas em seu particular “método dedutivo” – que abstrai dos fatos e das fontes empíricas em favor de suas “hipóteses”. Assim, obras de historiadores contemporâneos especializados em história russa e soviética e sustentados nas fontes abertas após 1992, tais como, Pierre Broué, Jean-Jacques Marie, Richard Day, Bernhard Bayerlein, entre muitos outros mais, foram ignoradas por Losurdo. Segundo Maestri, toda essa literatura historiográfica se encontrava disponível na sua própria Itália. Losurdo, porém, a ignorou. Losurdo também ignorou toda a miríade de relatos primários de perseguidos políticos soviéticos – provavelmente, por não lhe serem convenientes (p. 31-37).
Assim Maestri sintetizou os equívocos técnicos de Losurdo: “No livro, há frequente amálgama de fatos históricos, não raro, anacrônicos, ou seja, com datas em contradição com a cronologia real dos sucessos” (p. 37). E mais adiante: “A ‘reabilitação’ de Stalin e do estalinismo constitui revisão bibliográfica contorcionista, superficial e a-crítica, apoiada em invenção de fatos; em fontes contaminadas; em suposições, deduções e ilações subjetivas, etc., tudo para avançar as proposições arbitrárias defendidas. O autor não comprova suas propostas nos fatos: literalmente, talha-os à dimensão de suas elucubrações. Trata-se de ensaio grotesco, a-científico, difamatório, de objetivos claramente ideológicos” (p. 39).
Mas, afinal, o que Losurdo e os demais neostalinistas querem com tudo isso?
A pergunta acima é respondida por Maestri em seu exame de O marxismo ocidental, de Losurdo. Nesse livro, argumentou Maestri, Losurdo cria uma falsa cisão e uma falsa polêmica entre o que batizou de “marxismo ocidental” (fracassado) em oposição ao “marxismo oriental” (florescente). Do lado ocidental, Losurdo escalou – arbitrariamente – Marx, Engels, Lênin, Luxemburg, Lukács, a Escola de Frankfurt, os existencialistas e estruturalistas etc. O defeito de nascença desses “marxistas ocidentais” encontra-se nas raízes judaico-cristãs, messiânicas, utópicas e internacionalistas de seu pensamento – acreditavam na emancipação humana universal etc. (?!) (p. 50). Do lado dos orientais escalou – novamente, arbitrariamente – Mao Zedong, Ho Chi Minh, Deng Xiaoping, Kim Il-Sung e Josef Stálin, os caracterizando como pragmáticos, realistas, desenvolvimentistas e construtores dos seus respectivos Estados e nações (p. 55.)
A nação possui lugar central no livro de Losurdo. Segundo Maestri, Losurdo substitui o internacionalismo proletário e as lutas de classes dos “marxistas ocidentais” pela nação unificada – isto é, burguesia e proletários unidos – em nome do desenvolvimentismo nacional – como se o desenvolvimento, assim como a ciência e a técnica, fossem ideologicamente neutras e não ditadas pelos interesses das classes dominantes contra as dominadas. “O importante é desenvolver, desenvolver, desenvolver” (p. 56). Ademais, Losurdo celebrou a reabertura capitalista e a incorporação da China, Vietnã, Rússia etc. no mercado capitalista mundializado (p. 57).
Uma observação interessante feita por Maestri foi que, apesar da grande recepção de sua obra no Brasil, Losurdo pouca atenção – se não, atenção nenhuma – deu ao marxismo latino-americano. Não há em suas páginas nenhuma análise – crítica ou elogiosa – aos marxistas latino-americanos (p. 58-59). Ernesto “Che” Guevara é citado uma única vez por Losurdo em O marxismo ocidental (p. 62). Por sua vez, José Carlos Mariátegui e Caio Prado Júnior foram ignorados. Surpreende, pois Losurdo atacou com frequência os “marxistas ocidentais” de terem abandonado a luta anticolonial na América Latina e de terem se aliado ao imperialismo, contudo, ele próprio não demonstrou qualquer aproximação intelectual com os teóricos e militantes anticoloniais e anti-imperialistas das Américas.
Assim como em Stálin, em O marxismo ocidental, Losurdo, observou Maestri, torceu frequentemente os fatos e os dados a fim de sustentar suas especulações historiográficas e filosóficas sobre a realidade concreta e a materialidade da história.
Mas, para que tudo isso? Segundo Maestri, Losurdo visava apresentar uma apologia do capitalismo do Partido Comunista Chinês e de seus muitos projetos empresariais na Ásia, África e América Latina – e até mesmo na Europa… ocidental –, estabelecendo os tais “negócios da china” como única alternativa para seu desenvolvimento econômico e o único caminho para a emancipação do imperialismo europeu e estadunidense. Assim, Losurdo defendeu, segundo Maestri, que as classes trabalhadoras dos países da periferia do capital – Ásia, África e América Latina – abram mão de sua independência política e se aliem pragmaticamente ao capitalismo do PC chinês. (Mas isso é somente a opinião de um “marxista ocidental” que não sabe que o chicote que o PC chinês usa nas costas das classes trabalhadoras é feito de silk (seda), e não de couro.)
Em suma, estaríamos diante de um verdadeiro recuo estratégico e programático de socialistas e comunistas nos anos recentes, resultado da perda de um horizonte histórico pela efetiva superação do capitalismo (cf. p. 41-42). Por trás da tentativa de recuperação da (hoje já não mais tão) imponente figura do corpulento bigodudo, estaria escondido um profundo conformismo determinista dos neostalinistas em relação à conversão da China comunista (e outras nações orientais) em uma poderosa máquina de exploração do trabalho humano em benefícios dos capitais “nacionais” chineses. A autonomia política das classes trabalhadoras perde espaço. Ganha o fetiche pelo Estado nacional de passado comunista tal qual se manifesta no Oriente.
Assim como os livros de Losurdo, o livro de Maestri não é perfeito. Têm lá suas “goteiras”. Dentre as de caráter formal, o livro pecou no processo de editoração e diagramação, deixando passar alguns deslizes: espaços duplos aqui e acolá; falta de unidade de estilo – em algumas passagens se escreve “YouTuber”, em outros “youtuber” etc. Ninharias, é verdade, e que não devem interferir no fluxo da leitura. Há um grande desequilíbrio de tamanho e profundidade dos capítulos, o que se explica por se tratar de uma coletânea de textos independentes de circunstância já previamente publicados em diferentes canais de comunicação. Há capítulos, inclusive, originados de postagens de Facebook. Não parece ter havido em todos eles um processo de reescrita e/ou adaptações mais profundas. Consequentemente, faltou unidade e fio condutor ao conjunto da obra.
No encontro de lançamento transmitido em um ao vivo no pelamanha allamattina @ YouTube, um dos debatedores – Gilson Dantas, médico e sociólogo e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) – afirmou algumas vezes que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) é stalinista e que Losurdo é um autor que não mereceria nenhuma atenção.
Sobre a primeira afirmação, não podemos deixar de apresentar divergências. Ora, apesar de existir uma justa reivindicação da velha sigla e da tradição do partido fundado em 1922, pode-se considerar que o PCB de hoje é também fruto da autocrítica e da superação da experiência stalinista que dentro dele se realizou após 1956 e, principalmente, 1962, quando o setor que se recusou a fazê-las resolveu se desligar da sigla e fundar o PCdoB. Se este acomodou-se à ordem institucional burguesa nas últimas décadas, fazendo com que os simpáticos ao velho georgiano tentem cavar espaço no partido cujo programa segue fiel aos princípios comunistas, que não se coloque isso na conta da organização!
Em nota política de 21 de novembro de 2019, quando a polêmica virtual em torno do problema do stalinismo esteve novamente em alta, o PCB se posicionou de maneira inequívoca: “Não participamos de nenhuma revisão histórica que tenha como centralidade política e teórica recuperar o que se convencionou chamar de stalinismo. Estamos em desacordo com os métodos, desvios e comportamento autocrático na gestão do Estado, na liderança do Partido e da sociedade, do qual Stálin era a expressão pública desse processo”.
E antes que os negacionistas ditos “de esquerda” se alterassem sobre as suas confortáveis cadeiras adquiridas (do capital chinês?) com o rendimento monetário obtido das curtidas de seus canais, abismados com o teor burguês, liberal e antirrevolucionário da declaração pecebista, o partido esclarece: “Contudo, não aceitamos que a crítica a este período guarde qualquer relação e identidade com a narrativa anticomunista que hoje busca colocar o comunismo no mesmo patamar do nazismo, em termos de crimes de lesa humanidade, para justificar a proibição da existência de Partidos Comunistas, conforme já foi decretado em alguns países”. Deixemos o assunto por aqui, não havendo espaço aqui para acertos de contas intrapartidários…
Quanto à segunda afirmação de Dantas, bibliófilos que somos, caso aceitemos como inteiramente válida a leitura maestriana de Losurdo, poderíamos alegar que mesmo os livros ruins – ou, nos termos de George Orwell: os bons livros ruins (“Bons livros ruins” [Tribune, novembro de 1945], in Dentro da baleia e outros ensaios, São Paulo: Companhia das Letras, 2005) – merecem seu lugar neste mundo, como também merecem ter leitores. Assim, por confrontação, os bons livros bons poderão brilhar ainda mais.
Retornando de Losurdo e Maestri para os novos negacionistas de esquerda, gostaríamos de fazer algumas ponderações finais.
Por vezes se alega, como forma de mudar de assunto e preservar as amizades, que a classe trabalhadora não está nem aí para a antiga querela entre Trótski e Stálin e que, portanto, a discussão hoje é parnasiana e não tem qualquer relevância para o mundo concreto. É verdade. Nós mesmos não gostaríamos de estar desperdiçando, neste momento, tempo e trabalho com a crítica do neostalinismo negacionista dito “de esquerda” enquanto o trator do capital e sua face neofascista avançam impiedosamente sobre sonhos, vidas e direitos, sem que tenhamos à vista qualquer horizonte de saída a curto ou médio prazo.
Mas se o fazemos é porque o fenômeno criticado tem sim consequências práticas para a luta política. Quem negaria que entre as principais dificuldades que encontramos hoje para barrar o crescimento da extrema-direita é a falta da tal da unidade de esquerda? Não é por ela que nos dedicamos tanto à construção de frentes e alianças? Com pouco sucesso até agora, é fato. Mas não é negando a realidade histórica com elucubrações abstratas nem relativizando a dor e o sofrimento de tantos camaradas de ontem, que vamos conseguir reunir as forças que nos faltam para hoje. Ressalte-se: falamos de “camaradas”. Não estamos tratando aqui de soldados fascistas mortos no campo de batalha, mas sim de uma grande quantidade de comunistas convictos e outras pessoas progressistas que perderam a vida muita vezes sem saber sequer a culpa que lhes era imputada.
As circunstâncias históricas explicam? Pois bem. Suponhamos que daqui a alguns anos chegássemos a uma nova situação revolucionária comparável à de 1917. As forças do capital jamais entregariam o poder de mão beijada (como nunca o fizeram), disso sabemos. Elas moveriam armas, enviariam espiões, assassinos e sabotadores para atuarem contra nós. Mas isso bastaria para justificar que as forças revolucionárias construíssem uma ordem social assentada no medo, na violência e na obediência cega ao poder do Estado, tal qual vigente nos anos de 1930 e 1940 na União Soviética? Seria então esse o destino natural e manifesto de qualquer revolução socialista? A nosso ver, essa consequência lógica do pensamento neostalinista se assemelha muito mais ao anticomunismo liberal do que as críticas radicais e à esquerda (nem sempre trotskistas) da experiência stalinista.
O que está por trás de tudo isso, como nos parece cada vez mais evidente, é que o negacionismo dito “de esquerda” se soma (voluntariamente ou não, pouco importa) com o negacionismo “de direita” em sua ameaça aos princípios científicos de construção do conhecimento humano. Os negacionistas ditos “de esquerda” se orgulham da sua condição de figuras “públicas” (em que medida a internet é verdadeiramente pública?) e apresentam suas opiniões pessoais como se fossem análises concretas de situações históricas concretas. Lênin se revira em seu túmulo… ou, melhor dizendo, do seu mausoléu…
É claro que a atuação de pessoas de esquerda no YouTube e nas redes sociais é bem-vinda à medida que elas desafiam (ou, pelo menos, tentam) a hegemonia dos ideólogos da direita nesses espaços. Algumas dessas pessoas são, inclusive, pesquisadores sérios e se apropriam das redes para divulgar os resultados de trabalho próprios e dos demais pesquisadores. Outros, infelizmente, apesar de já terem também feito pesquisa científica (por vezes de qualidade duvidosa, mas fizeram), nunca apresentaram-na em seus vídeos e preferem expor noções aleatórias e “polêmicas” (suas ou de autores do tipo de Losurdo) que talvez lhes resultem em um maior número de joinhas.
Nos negacionistas ditos “de esquerda”, a lógica dedutiva opera no lugar da análise concreta do real. Assim como os mais conhecidos autores de best-sellers de direita, apresentam um discurso de matriz semi-sensacionalista e inflam-se para acusar cientistas, universitários e acadêmicos de censores, elitistas ou mesmo de produzirem materiais inúteis para a sociedade. Para os atores interessados do neoliberalismo hegemônico, famintos por desacreditar a razão social das instituições públicas de pesquisa e educação, tais depreciações aparecem como um prato cheio!
A esquerda tende a considerar que a verdade está a seu favor. Podemos entender essa verdade como o conhecimento histórico do real. A História que interessa conhecer (ou que, no mínimo, deveria interessar) é aquela que pode ser objetivamente pensada e teorizada tendo com base em evidências materiais concretas. Quem tem convicção sincera da justiça e da viabilidade do projeto de futuro que defende, não precisa mutilar e nem ter medo do passado tal como ele se nos apresenta.
Deixemos as negações do mundo real e o obscurantismo para os nossos adversários. Fiquemos com a arma do saber humano sistemático e sincero. Talvez essa seja a última que ainda nos resta.
Dito isso, é preciso reconhecer com toda clareza e segurança, em concordância com o oportuno nome deste website: a Terra é redonda, o nazismo é de direita, as vacinas são medicamentos benéficos para o corpo humano e o stalinismo aniquilou física e intelectualmente uma geração de verdadeiros comunistas.
*Felipe Cotrim é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo.
*Gustavo Velloso é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (PPGHS-USP) e autor de Ociosos e sedicionários: populações indígenas e os tempos do trabalho nos Campos de Piratininga (século XVII) (São Paulo: Intermeios & USP/Capes, 2018).
Ambos são militantes da Célula István Mészáros, a base dos trabalhadores da educação do Partido Comunista Brasileiro em São Paulo (PCB-SP).
Artigo dedicado a Davíd Riazánov, historiador, filósofo, arquivista e militante comunista. Primeiro diretor do Instituto Marx-Engels e primeiro editor-chefe da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). Foi perseguido pela polícia política czarista e também pela polícia política soviética. Viveu e trabalhou muitos anos no exílio. Nasceu Davíd Borísovitch Goldendach, em Odessa (Império Russo), em 10 de março de 1870. Morreu fuzilado, em Saratov (União Soviética), vítima do Grande Expurgo, em 21 de janeiro de 1938, aos 67 anos de idade.