Por TARSO GENRO*
Os Estados de direito, “liberais” ou autoritários, perderam a vergonha de esvaziar seus padrões de legitimação do seu tecido constitucional, desgastado pelo descumprimento das suas promessas de igualdade e liberdade
Como os governos conservadores eliminaram, com a destruição do Orçamento Participativo, a co-responsabilidade entre estado e sociedade, para a tomada das grandes decisões públicas na órbita do município, os próprios governantes — pessoalmente — são responsáveis pelas visões e omissões que nos levaram à situação dramática que nos encontramos em Porto Alegre.
No mundo inteiro se mostrava, e ainda se mostra, aquela experiência como o mais edificante processo de renovação e avanço da democracia liberal feita no mundo nesta cidade que hoje é governada para atender os interesses de poucos grandes empresários da área imobiliária, que fizeram da prefeitura sua gerência especial de grandes negócios.
O homem com fome na novela de Knut Hamsun, Fome, vai ao porto e pede ao capitão de um navio que lhe embarque. E lhe diz: “posso fazer qualquer coisa” (…) ”fazer mais se for necessário, posso suportar.” O capitão lhe responde que está bem, mas que se a “coisa não vai bem podemos nos separar na Inglaterra”. A aceitação do empregado precário da época moderna, marca o tipo de subjetividade dos que se despedem das suas vidas passadas e jogam-se na incerteza: “toda a claridade” — diz o personagem que se despede — “brilhava nas janelas de todas aquelas casas, de todos aqueles lares”.
O narrador, no início da novela de Knut Hamsun, diz “que era o tempo que eu vagava, com o estômago vazio” (…) nessa “cidade singular que ninguém pode abandonar sem levar impressa a sua marca…”. É um subúrbio libertário da capital dinamarquesa, que foi ocupado por movimentos alternativos anticapitalistas em 1971, talvez como uma homenagem instintiva às famílias famélicas que, em outras épocas, por ali transitavam buscando uma oportunidade de resistência para as suas vidas bloqueadas pela fome.
2024. Na Argentina, um maluco é eleito democraticamente com a autorização para “destruir“ o Estado, como aconselhou o fantasma do seu cão morto, para levar 51% da população aos níveis mais inferiores de miserabilidade e abandono social. Na Faixa de Gaza, o governo homicida de Benjamin Netanyahu desloca multidões famintas — perseguidas a ferro e fogo no seu território, sem qualquer obstáculo sério dos países e empresas que, fundidas em todas as operações militares, lucram e acumulam reservas paras as próximas guerras já em produção.
Multidões famintas fogem do governo dito “socialista” de Nicolás Maduro, que recebeu recomendações de um passarinho, que incorporou o presidente Hugo Chávez, numa alegre manhã do seu mandato autoritário e desastrado. Lembremos, todavia: Javier Milei não é mais legítimo que Nicolás Maduro, que não é menos legítimo do que Benjamin Netanyahu que, por seu turno, não é menos legítimo do que Donald Trump, que tentou um golpe de Estado nos Estados Unidos, que está solto e que já reafirmou, por seu turno, que gosta muito de Vladimir Putin.
É que os Estados de direito, “liberais” ou autoritários, perderam a vergonha de esvaziar seus padrões de legitimação do seu tecido constitucional, desgastado pelo descumprimento das suas promessas de igualdade e liberdade, que se escoaram pelos ralos dos neoliberalismos e enriqueceram os mais ricos, consagrando no alto da sua pirâmide, suas guerras e privilégios. Segue.
Vladimir Putin, produto da destruição disruptiva da burocracia soviética, tem relação com grupos fascistas internos, que apoiam o seu Governo que — por sua vez — também se opõe aos nazistas e fascistas que controlam o Ministério do Interior de Volodymyr Zelensky. Este, que chegou ao poder através de um golpe de Estado — como aliado aos EUA — construiu sua legitimidade na guerra e na servidão aos seus patronos americanos.
Estes, por seu turno, interessados em acostar-se, provocativamente, nas fronteiras das Rússia para ameaçar a sobrevivência daquele país, fazem crescer sua indústria armamentista, que aumenta o volume do PIB, no seu país cada vez mais desigual.
As instituições democráticas tradicionais vêm perdendo dois elementos centrais, necessários para que a cidadania confie na comunidade (na “vida comum”) a qual pertence, e através da qual o Estado forma a nação. O primeiro elemento em perda é o da legitimidade política das instituições, por dentro das quais se dão as lutas de interesse, identificam-se os dissensos mais estruturais e se negociam pactos de “coesão” política mínima, com as regras do jogo sendo respeitadas pelas maiorias.
O segundo elemento em processo de perda é o da funcionalidade democrática (transparência e eficácia) das instituições fundamentais da República, que estão submetidas a rituais concebidos durante a Segunda Revolução Industrial, época em que o ritmo da vida era dado pelas indústrias, ferrovias, tecelagens, telefones e telégrafos, comunicações não comutativas, longas carta de amor e romances datilografados.
Dois exemplos são suficientes para mostrar o grau de perigo à democracia liberal, até agora reinante, em decadência acelerada. Primeiro exemplo: a brutal separação entre o representado e o representante numa sociedade de massas fragmentadas e classes muito ricas, cada vez mais perversa e excludente. Segundo exemplo: a superfluidade e a provisoriedade das emoções provocadas “de fora” dos meios sociais que as pessoas diariamente vivem, cujas consciências individuais, se não reagem, tornam-se depósitos de detritos culturais sem autenticidade definida.
A exemplo do que ocorre aqui no nosso país e no Rio Grande do Sul, a crise de humanidade, inclusive da socialidade afetiva em momentos de catástrofe; a crise da política democrática, da solidão não pervertida em sociopatia; a crise do “bem” pela igualdade social e da solidariedade humana, pela rejeição das catástrofes, todas se combinam com a explosão da questão climática que bate a nossa porta. A ausência de propostas consensuais mínimas para enfrentá-la nos leva a beira de um abismo sem fim: e se tiver fim, ali encontraremos o ovo da serpente.
Se estas eleições não punirem os responsáveis mais próximos pela potencialização da catástrofe que nos abateu em Porto Alegre — pelos menos — os responsáveis ficarão mais livres para promover suas omissões e manipulações e todos nós ficaremos mais presos nos anéis das serpentes. E já dentro do abismo que eles construíram.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
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