Por DENNIS DE OLIVEIRA*
O bolsonarismo é a nova racionalidade governamental do neoliberalismo.
Muitos ainda devem estar se perguntando como uma pessoa que abertamente foi contra as medidas recomendadas para combater a pandemia, causando, assim, a morte de quase 700 mil pessoas; que gerou uma crise social imensa a ponto de pessoas entrarem na fila para comprar ossos; e que faz um discurso violento, racista, LGBTfóbico e em defesa do armamento, ter chances reais de vencer uma eleição presidencial. E ainda que perca, seus partidos apoiadores elegeram 250 deputados federais, formando a maior bancada parlamentar e ainda elegeram vários governadores.
Alguns aspectos que precisam ser considerados neste cenário.
O primeiro é de natureza sócio-econômica. O neoliberalismo implica mais que um paradigma de reprodução de riquezas. Como bem dizem os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo), o neoliberalismo é uma nova razão do mundo, ou emprestando um conceito foucaultiano, uma nova governamentabilidade. A governamentabilidade é o encontro de um paradigma de estrutura de poder (Estado e instituições) com uma sociabilidade imposta pelo capital.
Esta sociabilidade imposta pelo capital é marcada pelo paradigma da concorrência em todas as dimensões da vida. Desde os sonhos pessoais até as agendas pretensamente coletivas se inserem no paradigma da concorrência. Por isto que a categoria “capital” que, originariamente, se inseria dentro de um marco econômico (o capital como categoria inerente ao capitalismo, ao controle dos meios de produção que possibilitam a extração da mais-valia) se dissolve e se transforma em capital humano, capital social, capital político, capital simbólico; como se todo e qualquer ser humano possuísse um “tipo” de capital que se transformaria em recurso para a concorrência. Em outras palavras, é a total supremacia da ideologia do “mercado” como locus privilegiado para dirimir todos os conflitos.
É fato que isto não ocorreu do nada. A fragmentação e precarização do trabalho enfraqueceu a identidade de classe proletária (o que Marx chama de “classe em si”) e, por conseguinte, a luta de classes, para o que se chama imprecisamente de identitarismo e “opressões múltiplas”. Embora se fale muito de “racismo estrutural”, “machismo estrutural”, entre outras coisas, nunca a agenda antirracista e antimachista foi hegemonizada por propostas pós-estruturalistas. Consciência negra, emancipação, equidade se deslocaram para empoderamento e uma visão de representatividade muito mais articulada a “visualidade” que análises críticas dos sistemas de poder.
Robert Samuelson disse nos anos 1990 que “a guerra contra a pobreza acabou, os pobres perderam.” Revoltante. Hoje há grupos que dizem: “a favela venceu”. Tranquilizador. Mas entre revolta e tranquilidade, existe um ponto de encontro – a lógica de competição entre setores dissociada das dimensões relacionais. Sim, porque “pobreza” e “favela” são produtos de uma totalidade em que há relações de conflito. A vitória contra a pobreza ou de quem mora na favela implica na resolução deste conflito social que gera pobreza e favelas. Em outras palavras, pobres vencerem significa acabar com a pobreza e favela vencer implica em deixar de existir favelas. Nem uma coisa, nem outra aconteceu simplesmente porque esta totalidade que gera pobrezas e favelas continua existindo. O seu nome: capitalismo.
O mesmo se aplica ao conceito extremamente banalizado de “racismo estrutural”. Falar em racismo estrutural significa que há um processo reprodutor do racismo que se insere na lógica da estrutura social. Por isto não se derrota racismo estrutural com “emponderamento” e “representatividade” (= visualidade). Racismo estrutural se enfrenta com o questionamento das estruturas que se alimentam desta lógica. No livro Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Ed. Dandara) apontei que esta lógica é a da superexploração do trabalho como mecanismo de reprodução de riquezas do capitalismo dependente.
Enquanto se mantiver este modelo de reprodução de riquezas, o racismo estrutural permanece e ele se manifesta não apenas porque uma pessoa negra que tem uma posição importante é barrada na entrada de uma instituição, mas também pela naturalização de paisagens como crianças negras pedindo esmolas ou trabalhando como flanelinhas nos cruzamentos das grandes avenidas das cidades.
Mas existe um segundo componente que dá base ao fascismo. Foram os gargalos não equacionados na transição da ditadura militar para a democracia no final dos anos 1980. Quando foi lançado em 1978 nas escadarias do Teatro Municipal, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU-CDR) denunciava já a violência policial praticada por aparatos repressivos inflados para manter a ditadura militar. Em outras palavras, os aparatos repressivos serviam não só para reprimir os opositores à ditadura como também a população preta em geral, moradora das periferias.
O assassinato de Robson Silveira da Luz, em 4 de maio de 1978, na delegacia do bairro de Guaianases, em S. Paulo foi um dos fatos que levaram à manifestação que criou o MNU-CDR. A transição de acordos teve como uma das consequências não só o ajuste de contas com os crimes praticados pelo Estado ditatorial mas a manutenção de pessoal e toda a tecnologia de repressão nos sistemas de segurança pública que levou o país, mesmo com mais de 30 anos de vigência da Constituição democrática ostentar dados de ter um jovem negro morto a cada 21 minutos.
A manutenção do sistema repressivo atende de certa forma a demanda por resposta a uma consequência direta do neoliberalismo: a intensificação da concentração de renda. Aumentando a miserabilidade, os conflitos sociais tendem a se acirrar. Um sistema repressivo, portanto, é a garantia de “controlar” estes cinturões de miséria. Da mesma forma que durante o período do escravismo colonial no Brasil, o Estado mantinha um sistema de vigilância sofisticado para reprimir os que “ousassem” rebelar-se e/ou fugir das senzalas. Hoje, as senzalas são as periferias – por isto, elas precisam, na ótica do capital, serem controladas.
Em uma sociabilidade da competição, o Estado tem o papel de controlar eventuais rebeldias dos que “perderam” ou sequer foram chamados a jogar, assim como garantir que esta competição ocorra sem qualquer tipo de controle ou norma. Por isto, que na leitura dos facistas impor restrições a circulação de pessoas por conta da pandemia do Covid-19 é “autoritarismo”.
Assim como impedir que atos racistas, machistas ou LGBTfóbicos é tolher a liberdade de expressão. Na sociabilidade da competição tudo vale. Desregulamentação e aumento da repressão são as duas faces da moeda do fascismo contemporâneo no Brasil. É o arranjo institucional da governamentabilidade que o bolsonarismo expressa e por isto o seu apoio. Compreender isto é fundamental para que se pense as melhores estratégias de como enfrentá-lo.
*Dennis de Oliveira é professor no curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros, livros de Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara).