Por LUIZ WERNECK VIANNA*
A democracia tem sido permanentemente testada, não apenas no Brasil, mas no mundo
A democracia tem e sempre teve pitadas de autoritarismo. É na democracia de massas que essa tentação autoritária encontra seu habitat. Sua emergência sempre tem ameaçado a democracia representativa. Na década de 1930, por exemplo, a emergência das massas subverteu o regime representativo oligárquico, em vários lugares do mundo. Democracias representativas, que funcionem minimamente e com estabilidade, temos apenas nos países anglo-saxônicos. A democracia de massas, as demandas do consumo, o esgarçamento da sociedade, todos esses fatores, que estão presentes na cena contemporânea, colocam um grande desafio para o sistema representativo.
A democracia representativa tem demonstrado ser capaz de barrar as aventuras autoritárias nos diversos países em que ela está organizada de forma sólida. No Brasil, a Constituição de 1988 criou um sistema robusto de defesa do sistema representativo, que tem se mostrado resistente. A pergunta que não quer calar é outra: de onde vem esse Executivo que aspira e trabalha para reforçar o autoritarismo? Ele não vem das massas?
O presidente foi eleito num pleito de massas bastante significativo. O sistema representativo já não estava funcionado direito antes de Bolsonaro. O PT não percebeu a necessidade de se enraizar na sociedade: preferiu manobrar a sociedade por cima, em aparelhos e agências, em vez de favorecer a auto-organização da vida popular. Em uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, o PT ignorou a vida associativa das favelas. Embora houvesse condições altamente favoráveis para organizar a sociedade de baixo para cima, o PT preferiu fazer política de cima para baixo.
Qual é o projeto? Essa “república bolsonarista” é a perda total da experiência nacional, substituída pelo fanático e pelo irracional. Há uma notória dificuldade desse governo no trato com a política e com as relações institucionais. Procura-se uma geringonça brasileira – ou seja, uma versão do heterodoxo agrupamento de partidos, no caso de esquerda, que jamais haviam caminhado juntos, de repente se uniram e governam Portugal há quase cinco anos. Esse arranjo parecia improvável. Por que não podemos ter também um ajuntamento de forças similares, que não está posto no horizonte neste momento?
Não sei se teremos capacidade para construir essa geringonça brasileira agora, de imediato, mas é sempre uma perspectiva interessante. Que não seja agora, que seja depois. As eleições vão ajudar nessa arquitetura da geringonça. Que há de ser uma geringonça, isto é, uma coisa mais rústica, mas que agrupe. Veja o caso da reação àquela tentativa sinistra do ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, mimetizando Goebbels. Foi muito forte. Mostrou que há um limite na sociedade. É um exemplo de que essa democracia das massas não vai passar como um trator por sobre o sistema representativo. Os mecanismos de resistência estão postos, são resilientes e nos darão o tempo necessário para encontrar essa geringonça, esse novo agrupamento de forças políticas.
A democracia tem sido permanentemente ofendida, testada, não apenas no Brasil, mas no mundo. Pesquisas de entidades respeitáveis mostram que a parcela da população global insatisfeita com a democracia cresce ano após ano. Mas ela não corre risco, aqui. Não estamos diante de uma realidade monolítica, como agora se mostrou na Itália (a derrota da extrema-direita nas eleições regionais da Emilia-Romagna) e na Espanha (a aliança entre PSOE e Podemos). O mundo da política é muito complexo. O fato de a população estar insatisfeita com a democracia não quer dizer que ela esteja necessariamente procurando alternativas. É diferente. Inclusive essas alternativas estão aí, mais na Polônia, na Hungria, mas eu pergunto: e daí? Como é que elas vão encontrar campo de difusão?
A política do Trump, ainda que de razoável ressonância, é apenas um episódio nesse processo. Vamos ver agora nas próximas eleições. Uma prova da resistência da democracia é o surgimento, não necessariamente na política, mas na economia, de reações de grupos muito fortes, como o da defesa do meio ambiente. A bandeira da proteção ambiental é antípoda do regime capitalista da forma como existe atualmente. Ela tem necessidade de recuar do avanço da economia para defender seu bem, ou seja, o meio ambiente. E essa é uma plataforma universal. Não para mais.
Assim como há uma agenda de contenção do neoliberalismo no campo econômico, existe também um movimento de contenção do autoritarismo na esfera política, seja por meio dos partidos, seja pelas instituições estabelecidas. Menos do que uma caminhada para o autoritarismo, o que existe é uma busca por alguém que apresente uma alternativa. O que se discute nos Estados Unidos, com relação a isso, se discute no terreno da economia. Ninguém lá está pensando em criar um partido de massa, que atropele o Partido Republicano e o Partido Democrata.
Hoje em dia se tem falado muita bobagem a respeito do fim da democracia. As questões existem e são aflitivas, mas há também, e enfatizo, um movimento no sentido de valorização do ambiente, da igualdade etc. A complexidade do mundo – deste mundo de comunicações livres e franqueadas – está esbofeteando a cara da gente. Pode ser que a sociedade tenha menos altruísmo e seja mais egoísta, mas o mundo das favelas cariocas, por exemplo, tem muita vida associativa. O que nos falta e o que nos tem faltado é política. O que nos faltou no período do PT, porque não tinha política nenhuma! É uma coisa pragmática: o mundo está girando. Para onde? Para forças desumanizadoras? Não. Já esteve assim nos anos 1920, 1930, mas encontrou-se um limite para isso. Acabou, embora sempre existam vocações nostálgicas.
É claro que não estamos em um mar de rosas, mas algumas coisas aconteceram e são irreversíveis. A perda da hegemonia americana na economia é irreversível. O avanço da chama da igualdade, irreversível. A capacidade de coordenação de algumas dimensões da vida, não apenas nacional, mas internacional, irreversível. São burocracias imensas, muito bem treinadas, que estão se tentando a coordenação possível desse mundo, aparentemente tão caótico, mas passível de regulação. Pouca ou muita, depende das circunstâncias, do talento das pessoas envolvidas.
Tem um campo aberto para a inovação. Vejam Portugal. Quem diria que naquele país perdido fosse aparecer uma solução tão inovadora, tão criativa? Eu estive em Portugal recentemente, é impressionante! Tão rico e confiante. Enfim, é possível. Há sempre um espaço para uma ação virtuosa, que não tenha muito efeito agora, mas pode ter mais à frente. Além do mais, o Ocidente tem uma tradição de valores democráticos. Está aí nas cabeças, em todas as gerações de uma forma ou de outra. Chama-se de guerra cultural exatamente a tentativa de deslocar essa tradição.
O nosso mundo ainda não é o de catástrofe, e eu acho que não será. Há muitas coisas em jogo. É claro que a democracia de massas enfraquece, debilita os partidos, mas não os cancela. Ainda não se encontrou uma forma de substituição dos partidos políticos. E aqui não há motivo para desespero: há motivo de preocupação. Porque a política autoritária desse governo ainda não foi capaz de anunciar uma agenda positiva para a sociedade como um todo, apenas para as porções que o apoiam.
Qual tem sido a intenção do animal autoritário presente? Remover essas instituições. Ocorre que ali tem uma linha de resistência. Claro que está havendo uma guerra de posições em torno dessa “linha Maginot”, estabelecida pela Constituição de 1988. Este governo força no sentido de abalar o seu terreno, mas há instituições capazes de manter as suas posições, sem ceder muito terreno. Há um limite para esse avanço. A imprensa continua livre e crítica.
Parte da mídia se encontra com o governo em função da sua orientação econômica e do futuro que ele pretende realizar: fazer tábula rasa de todos os planos de defesa que existem para frear o avanço do capitalismo na terra, na questão indígena, na questão ambiental. Remover todos os obstáculos. Embora haja muito espaço para o capitalismo se realizar no país sem cancelar direitos, o neoliberalismo vigente vê na economia a única razão existente no mundo. Uma razão desamparada de sociedade e de política. Ela tem encontrado resistência e pode, mais adiante, encontrar resistências maiores.
Não dá para profetizar, mas há na história brasileira uma incompatibilidade entre suas tradições e visões puramente economicistas. Na década de 1930, embora Getúlio Vargas desejasse favorecer o capitalismo, não o desvinculava da preocupação social e da política. As elites dirigentes sempre tiveram certa astúcia ao lidar com a natureza da nossa sociedade. Havia um elemento neoliberal em 1964, mas a ditadura acabou por introduzir um elemento nacional. Agora o elemento nacional está absolutamente ausente. Quanto tempo isso vai durar? É possível que a tradição reclame em breve seus direitos, e retornemos ao seu leito, nacional, social e político. Aguardemos, preocupados, mas não desesperados.
*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros livros, de A revolução passiva. Iberismo e americanismo no Brasil (Revan).
Artigo estabelecido a partir de entrevista concedida em 2019, publicado originalmente na revista Insight Inteligência.
[https://insightinteligencia.com.br/falta-uma-geringonca-a-brasileira/]