A vingança do bom selvagem

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Por RENATO JANINE RIBEIRO*

Posfácio do livro recém-lançado de Gérard Lebrun.

Lembranças de Gérard Lebrun

Conheci Gérard Lebrun em Paris, na Casa do Brasil, no apartamento de minha amiga Olgária Matos, por volta de 1975. Nunca tinha estado com ele, mas conversamos todos longamente, já não lembro sobre o quê. Acredito que ele já tivesse vindo à USP para sua segunda temporada entre nós, como professor convidado. Dois ou três anos após esse encontro, quando me tornei professor no Departamento de Filosofia, nos encontramos na Universidade e ele me convidou a almoçar. Foi o primeiro de muitos almoços e de uma boa amizade, a que se somou mais tarde o papel de tradutor de seus artigos para o Jornal da Tarde, de dois de seus livros, O que é poder, com Silvia Lara, e mais tarde Passeios ao léu, e, agora, deste A vingança do bom selvagem.

Pensando bem, na verdade, a primeira vez que o vi foi alguns anos antes, por volta de 1971, quando passou por São Paulo a caminho de Santiago do Chile, onde ia lecionar, creio que por algumas semanas. Estava indo em tempos da Unidade Popular, do governo de Salvador Allende. Em sua breve escala brasileira, deu-nos uma palestra, a convite do Departamento. Não lembro nada do que disse – aliás, tinha esquecido desse dia, que só me veio à memória na terceira ou quarta versão deste texto – mas sei que me impressionou. Principalmente sua postura: a gestualidade, exuberante, significava. Mexia a cabeça e os braços, e isso passava, a quem o via, um sentido. Deu a mim e a alguns amigos a ideia de uma postura muito livre e de uma forma de filosofar bastante independente.

Em tempos idos, ele simpatizara com a esquerda. Mais do que isso, fora membro do Partido Comunista Francês. Era agora um homem de direita. Mas não mostrava nenhuma simpatia pela ditadura que então ainda vivíamos. A partir de 1977, frequentaria os Mesquita, a família dona do Estadão, que era um jornal conservador que apoiara o golpe de 1964, mas que tinha algumas grandes qualidades.

A primeira é que o Estadão rompia com quem estivesse no governo – mesmo que no início correspondesse a seus valores. Não sei se por dignidade ou, simplesmente, porque os governantes haviam se mostrado incapazes de fazer jus, no plano dos fatos, à ideologia do “bravo matutino”. A segunda é que o jornal separava seus editoriais das reportagens. As opiniões conservadoras dos Mesquita não interferiam na cobertura dos fatos. Esse é um traço essencial, aliás, da boa imprensa – e eu diria mais: também do mundo acadêmico e da própria decência dos indivíduos privados. Precisamos ser capazes de respeitar a realidade, mesmo – e talvez sobretudo – quando queremos transformá-la. Gérard Lebrun era, antes de mais nada, esse espírito crítico, um democrata liberal que, com certeza, tinha algo das duas coisas.

Também era uma pessoa muito independente. Sua homossexualidade, num tempo em que esse assunto ainda constituía tabu, era algo que ele não disfarçava.

Em relação ao marxismo, que à época constituía um referencial constante dos professores e pesquisadores – uma escola com a qual podíamos não concordar, mas que nos desafiava a tomar posição – Gérard Lebrun se situava como um daqueles, dentre muitos, que viam na utopia a semente da distopia. Ele gostava de François Furet, e penso que o título de um dos livros desse grande historiador, O passado de uma ilusão – uma brincadeira com O futuro de uma ilusão, de Freud –, resumiria muitas de suas convicções. Para ele, o marxismo, longe de mostrar um futuro, apontava para o passado.

Era uma época em que Margaret Thatcher e Ronald Reagan estavam desmontando as políticas sociais e o Estado de bem-estar social, criados pela social-democracia, sobretudo europeia, que pareciam ter se tornado desnecessários para o capitalismo à medida que este vencia o comunismo e o marxismo parecia ter sofrido a triste sina de ter feito uma bela teoria redundar numa prática odiosa.

Não sei se Gérard Lebrun concordaria com o que direi agora: uma diferença entre comunismo e fascismo é que, se as práticas de ambos, uma vez no poder, foram detestáveis, aquele tinha uma teoria boa, o que lhe permitia – quando na oposição – constituir uma força democrática; este, porém, tinha uma doutrina (não lhe darei a nobreza de uma teoria) e uma prática, ambas, detestáveis. (Se eu lhe dissesse isso, penso que ele descartaria com um abano de mão: provavelmente me responderia que eu concedia aos comunistas o dom de crer em sua boa-fé, em sua honestidade.)

Gérard Lebrun, que criticava o comunismo e admirava os doutrinários já então ditos “neoliberais”, não tinha, porém, como foi dito, complacência alguma pela ditadura que então vivíamos. Lembro uma vez que, ao traduzir um artigo seu em que criticava o establishment psicanalítico, o consultei se poderia chamar este último de Sistema; ele respondeu que não: “Sistema” era o nome que a imprensa dava ao aparato da ditadura brasileira; a psicanálise, conquanto criticável, nada tinha em comum com ele.

Talvez interesse contar algo de sua relação com Michel Foucault. Eram amigos; um dia lhe perguntei o que o autor de Vigiar e punir propunha para as prisões. Suas obras tinham-se tornado fonte de inspiração para toda crítica a quaisquer formas de disciplina; mas o que pensava ele de concreto para os criminosos, para os presos? Gérard Lebrun riu, moveu a cabeça e a mão num de seus gestos típicos, como que marcas registradas suas, e contou que perguntara isso ao amigo – e que Michel Foucault lhe respondeu: “queria apenas que as prisões fossem mais humanas”.

Sua irmã, Danièle Lebrun, mais nova que ele, é uma grande atriz da Comédie Française; terá seus 87 anos quando sair este livro. Quando François Mitterrand venceu as eleições em 1981, por coincidência ele me levou a visitá-la; Gérard Lebrun disse na casa dela que a festa da vitória socialista reunira la pègre, a ralé; sua sobrinha riu e disse-lhe: eu estava lá, faço parte da ralé, je suis la pègre! Penso que a teatralidade era um dom dele, como da irmã; e de Foucault também.

A teatralidade, que me chamou a atenção desde sua conferência dos anos 70 em São Paulo, era uma forma de distanciar-se dos enunciados, uma espécie de teatro brechtiano, de fazer as pessoas marcarem um afastamento em relação ao que lhes parecesse óbvio. O afastamento – como veríamos em seu Pascal, publicado na coleção Encanto Radical – nos tours, détours et retours – era uma forma de fazer pensar. Talvez, apesar da distância política entre ele e Foucault, fosse esse o ponto comum de ambos: levar até o esgarçamento os laços do pensamento preguiçoso, provocar o outro (ou a si próprio) a se separar de suas convicções indolentes; em suma, convidar a filosofar.

Quando Gérard Lebrun reuniu artigos seus no livro que se chamou Passeios ao léu, sua intenção era dar-lhe o título de Passeios paulistas; mas seu editor, Caio Graco Prado, da Brasiliense, objetou que tal título não seria vendido fora do estado de São Paulo. Por isso aceitou chamá-lo de uma forma que evocasse as flâneries, quase um sinônimo do caminhar por Paris, mas que evocasse os tempos passados na cidade de São Paulo, que ele adorava e onde os artigos seriam publicados.

Havia também sua relação com nossa língua: um sotaque fortíssimo, irrenunciável; alguma confusão com uma ou outra palavra.

Sobre a experiência de traduzi-lo: eram artigos cheios de vida, que demandavam uma conversão em nossa língua que mantivesse o vigor, a contundência. Foi o que procurei fazer. Deu-me muito prazer. Ainda hoje, relê-lo me causa muita satisfação.

Impossível falar de Gérard Lebrun sem lembrar do final de sua presença no Brasil. Em algum momento de 1995, ele estava radiante. Tinha ido ao Museu da Imagem e do Som, quando viu parar, na calçada, um carro oficial, que devia ser preto; dele, desceu o Presidente da República. Ao vê-lo, Fernando Henrique Cardoso, seu amigo de trinta anos, o cumprimentou efusivamente; todos sabemos que nosso intelectual-presidente é uma pessoa educada e charmosa; ficou felicíssimo. Foi a última vez que o vi, e a última em que nos falamos.

Infelizmente, essa alegria pouco durou; não eram passados meses, e surgiu na imprensa uma acusação a ele, que o deixou profundamente abalado. Lembro que numa entrevista ele disse, à Folha de S. Paulo, que seu possível isolamento não o perturbava tanto, pois não tinha vida social, “não tinha amigos”. Nosso amigo Luiz Carlos Bresser-Pereira então me ligou; disse que queria enviar ao jornal uma carta, dizendo que ele, eu, mais Lourdes Sola e José Arthur Giannotti, éramos seus amigos. Assim o fizemos. Mas ele estava mesmo magoado – pelo menos assim me pareceu, pelo que ouvi depois.

Soube que Maria Lúcia Cacciola, de passagem por Paris, lhe telefonou, e marcaram um encontro; ele só lhe falou em francês; ela se emocionou, isso o desarmou. É a última lembrança que tenho dele, e penso que seja boa: numa hora de tanta hostilidade, sentiu que alguém aqui gostava dele. Alguéns, eu diria.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade). https://amzn.to/3L9TFiK

Referência

Gérard Lebrun. A vingança do bom selvagem e outros ensaios. Tradução: Renato Janine Ribeiro. São Paulo, Unesp, 2024, 332 págs. [https://amzn.to/484hVx7]


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