Por ARMANDO BOITO*
É sintomático que boa parte da esquerda tenha caído na armadilha que consiste em discutir nomes
Boa parte da esquerda tem se perguntado se interessa uma aliança com Geraldo Alckmin. Essa pergunta, como tem sido posta, é impossível de ser respondida. E é impossível porque a pergunta está errada da perspectiva democrática e popular. Ela desloca a discussão política, programática, para o mérito das pessoas de Lula e de Alckmin, quando o que interessa saber é qual será o programa político no qual está sendo construída essa aliança.
É sintomático que boa parte da esquerda, tanto defensores da referida aliança quanto seus críticos, tenha caído nessa verdadeira armadilha que consiste em discutir nomes. Perdem-se em considerações, a maioria delas meramente conjecturais, sobre os ganhos ou perdas eleitorais de tal aliança; perdem-se também na discussão sobre as pessoas dos candidatos e a sua história política passada e recente. É claro que a história política conta, mas o problema é que os políticos podem mudar de posição. Muitos socialistas tornaram-se políticos burgueses e importantes políticos burgueses conservadores tornaram-se políticos progressistas. Logo, a história política deste ou daquele político, salvo situações extremas, não é um critério decisivo. No Brasil, o debate político está muito personalizado e, infelizmente, parte da esquerda perde-se nessa fulanização.
A primeira coisa que interessa é qual programa Lula e o PT proporão para uma aliança que englobe a candidatura Alckmin na vice-presidência de Lula. Numa aliança, cada parte deve apresentar o programa mínimo comum que entende que deva servir de base para a aliança. É o início da negociação. Concessões terão de vir de parte a parte. No caso do PT, irá propor quais “desrreformas” para iniciar a negociação em torno de um eventual governo Lula-Alckmin?
Vamos conjecturar improvisadamente e apenas para ilustrar uma lista. O PT poderia propor várias “desrreformas”: (a) trabalhista; (b) previdenciária; (c) retomada da valorização do salário mínimo; (d) do teto de gasto; (e) independência do Banco Central; (f) retorno ao sistema de partilha no pré-sal; (g) suspensão dos processos de privatização da Eletrobrás, dos Correios, das refinarias da Petrobrás; (h) volta do imposto sobre exportação, como fez com árdua luta o peronismo na Argentina, etc, etc.
Como medidas políticas: (a) desmilitarização do governo e das instituições do Estado (STF, TSE) e volta dos militares aos quartéis; (b) fim da cláusula de barreira para os partidos políticos; (c) fim das mordomias de parlamentares que os colocam acima dos seus partidos; (d) apuração dos crimes cometidos contra a saúde pública e assim por diante.
Suponhamos, agora, que Alckmin aceite algumas dessas “desrreformas” e dessas medidas políticas e recuse outras. A aliança entra em processo de avaliação nas organizações partidárias progressistas interessadas, mas uma avaliação política, programática. Um debate como esse, além de orientar politicamente a esquerda, educa politicamente as massas populares. E nós vimos o quanto a organização e a educação política fez falta na hora de resistir ao golpe de 2016.
Num processo como esse, estaria colocada de modo correto, isto é, que interessa ao movimento democrático e popular, a questão seguinte: interessa à esquerda apoiar o programa comum proposto pela aliança Lula/Alckmin? Como resposta, eu diria que não vejo porque a esquerda não deveria apoiar tal aliança se ela contemplasse significativas “desrreformas” e medidas políticas democráticas. Porém, nesse caso, repito, tudo estaria baseado no programa político da aliança, e não nos nomes, nas pessoas que o encarnam.
Muitos poderão argumentar que tal posição é idealista, pois no Brasil não é assim que se faz ou que se tem feito política. Pois é, a esquerda não tem como tarefa fazer política como tem sido feita, mas, sim, fazê-la do modo que interessa ao movimento democrático e popular. De resto, na verdade, a discussão se dá em torno de nomes apenas na superfície ou na aparência do processo político. Por trás das cortinas, as cúpulas partidárias e as pessoas diretamente envolvidas – Lula e Alckmin – terão um programa mínimo construído na base de cochichos entre as cúpulas partidárias, longe dos militantes dos partidos. Teremos um programa oculto enquanto as massas e parte da esquerda perdem-se na discussão de nomes.
*Armando Boito é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp).