Aprender com as baratas

Marcelo Guimarães Lima, L´âme des choses, 2022
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Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

A história hoje, como no passado, se mostra como espetáculo das grandes ironias da vida

“Em carta para a sua equipe, o presidente e CEO do McDonald’s, Chris Kempckinski, justificou que o fechamento de restaurantes [na Rússia] é uma medida correta porque a empresa não pode ignorar o sofrimento desnecessário que está sendo causado à população ucraniana”. Conforme notícia recente por Vanesa Rodriguez (El Diario) na página da Rede Brasil Atual (1).

O mundo está mesmo ficando irreconhecível para quem tem alguma experiência de vida. Quem diria que veríamos empresários norte-americanos preocupados com questões morais e valores sociopolíticos, para além dos genéricos e mercantilizados valores socioambientais de praxe recente, colocando acima dos seus interesses pecuniários o bem-estar de uma população distante em um país periférico do território europeu?

A imagem do capitalista sem coração e sem escrúpulos, cantada em prosa e verso desde Charles Dickens, ao que tudo indica não corresponde mais, se alguma vez correspondeu, aos fatos. Seguramente não na matriz do neoliberalismo contemporâneo, os Estados Unidos, e na sua filial na União Europeia.

Grandes empresas com interesses e investimentos comerciais e industriais de modo súbito, e como que coordenado, se recusam a continuar ganhando dinheiro na Rússia! É de desnortear nossas categorias formadas em, pelo menos, dois séculos de estudos críticos, testemunhos, documentação histórica, etc. sobre os fundamentos e os processos do capital, sobre o papel do empresariado na dinâmica capitalista, com os enormes custos desta dinâmica em vidas humanas e, hoje sabemos, em transformações nada auspiciosas do meio natural, ou seja, os riscos crescentes do sistema socioeconômico do capitalismo industrial e comercial moderno para a vida em geral no planeta Terra.

Bleeding-heart liberal” é uma expressão que os conservadores ou reacionários em geral nos Estados Unidos utilizavam para insultar, nos tempos de Ronald Reagan e da ascensão do Partido Republicano, todos aqueles “esquerdistas” (todos que não rezavam pela cartilha conservadora) que ousavam contrapor, mesmo timidamente, interesses de minorias, de grupos excluídos do “sonho americano”, dos pobres e dos desamparados, dos trabalhadores em geral, à visão ufanista, duramente competitiva, meritocrática, da sociedade americana considerada como ideal realizado da prosperidade e da livre iniciativa na Terra. Quem não prospera numa tal sociedade-modelo, segundo a visão conformista, é por pura incompetência e não merece amparo algum, apenas o desprezo dos “vencedores”, a maioria branca, religiosa e conservadora.

O “Bleeding-heart liberal” (na tradução literal: “coração sangrando” pelo sofrimento alheio, na tradução livre ao nosso vernáculo popular: “liberal bunda-mole”) ao preocupar-se com os vencidos e caídos da popularmente denominada “rat race” (corrida ou disputa dos ratos) da sobrevivência cotidiana, apenas demonstrava sua própria fraqueza moral, sua inadaptação aos valores e práticas da evidente e inquestionável meritocracia norte-americana, onde apenas podiam e deviam prosperar gente decidida, forte, os bons, os corajosos e os patriotas. Os valores declarados da empatia e solidariedade são reservados aos iguais, a caridade da gente cristã é exercida formal e publicamente aos domingos de culto. E basta.

A história hoje, como no passado, se mostra como espetáculo das grandes ironias da vida. O gesto contra a Rússia, de recusa das relações comerciais pelo empresariado norte-americano é apresentado, não como afetação dos fracos pela sorte alheia (dos ucranianos), coisa de inadaptados de coração mole e pouco realistas, mas como gesto elevado de grande virtude patriótica e humanitária! Ricos sem ganância! Gente com coração e valores democráticos, ainda que estes sejam demonstrados seletivamente, conforme as circunstâncias, etc.

Nas circunstâncias atuais, me vem à mente o que Guy Debord no final dos anos 1980 apresentava como uma das características marcantes da sociedade contemporânea, o período que se inicia após a contestação generalizada do maio de 1968, e as lutas das classes trabalhadoras na Europa na crise nos anos 1970 da chamada “sociedade do bem-estar” do pós-guerra. Crise que preparou a ofensiva capitalista com o neoliberalismo e a reorganização do mundo do trabalho, da economia e da sociedade como hoje conhecemos. Observava Guy Debord um fenômeno que ele denominava de “fusão de fato da economia e do Estado” sob a máscara ideológica do que se designou por “Estado mínimo”. (2)

O Estado neoliberal hegemônico se mostra hoje como estado superdimensionado nos gastos e na capacidade militar, maximamente dependente da força militar como instrumento de “convencimento” e garantia de última instância de “lebensraum” (espaço vital – para utilizarmos a conhecida expressão da ideologia de guerra do Reich nazista) para a supremacia econômica, ou seja, para a expansão contínua dos negócios “na ponta do canhão” como condição fundamental de sobrevivência do sistema.

A economia e a guerra na crise atual demostram sua mútua dependência de modo paradoxal, pois o risco da guerra total em princípio é algo não deveria ser do interesse dos homens de negócio. As sanções contra a Rússia são armas adicionais do conflito e agravam a já combalida situação da economia mundial. E os grandes lucros realizados pela indústria e o comércio da guerra, pela natureza mesma do empreendimento de alto risco, não podem por si garantir lucros continuados no futuro.

Ou eu aqui me engano, e é precisamente esta a aposta do eficiente empresariado neoliberal e seus representantes na vida política dos países. A guerra total, considerada com o otimismo dos empreendedores, poderia ser ocasião de novas oportunidades de uma futura “indústria e comércio” da sobrevivência nua e crua, no modelo das baratas e de outros organismos milenares que as catástrofes passadas da história natural do planeta não destruíram.

A rapidez com que o jornalismo profissional das grandes corporações da informação dita pública e seus associados se uniu em uma voz única e estridente pelo mundo numa ficção maniqueísta da luta entre o “bem” e o “mal absoluto”, “democracia” versus “tirania”, “ocidente” contra “oriente”, e sandices semelhantes, e, como resultado, a arregimentação de setores vários da opinião pública mundial no ritmo veloz das redes globais, faz ver que vivemos um tempo em que a crise profunda da economia mundial se reflete nas estruturas políticas e na sociabilidade estabelecida.

A Ucrânia, um país internamente dividido, em processo latente de guerra civil prolongada antes da ofensiva russa, onde nazistas armados defendem agora a pátria como membros efetivos do aparelho militar do Estado é apresentada como baluarte da democracia, aliada “natural” do chamado mundo Ocidental. A crise atual leva à repetição e o aprofundamento dos mecanismos locais e internacionais de controle e dos mecanismos de confronto, no momento mesmo em que estes se revelam crescentemente inadequados ou improdutivos, isto é, de custos crescentes e resultados cada vez mais incertos, face aos desequilíbrios estruturais do sistema mundial.

Ao final da Guerra Fria com a “auto-extinção” do regime soviético na Rússia, a primeira redação em 1992 do documento conhecido como Doutrina Wolfowitz (3), de Paul Wolfowitz, Subsecretário de Defesa dos EUA no período, estabelecia de modo transparente como meta da política externa do país manter a hegemonia global, o lugar de “potência única” recém conquistado, detendo o avanço de quaisquer possíveis competidores na ordem internacional, incluindo a própria Rússia. As críticas e as reescritas posteriores do documento atenuaram a redação expressamente imperialista, caracterizada então negativamente pelo senador Edward Kennedy como “plano de imperialismo americano do século XXI, inaceitável para as nações”, mas não mudaram o conteúdo, isto é, as metas e diretivas então proclamadas e que, nos seus aspectos fundamentais, nunca perderam vigência, junto com seus fundamentos ideológicos. Estes, de modo mais do que evidente na crise atual, perpassam a classe dominante, as várias elites empresariais, estatais e mesmo culturais, e toda a estrutura presente da sociedade americana com as todas as suas manifestas contradições.

Uma cisão mundial na opinião e nos posicionamentos se apresenta face à invasão da Ucrânia e a guerra em curso, na qual a geografia parece comandar as perspectivas: o Norte+Oeste alimentando o conflito nas palavras e nos atos, o Sul+Leste tentando evitar as pressões por posicionamento contra as ações da Rússia. Por um lado, é possível dizer que assistimos o termo de um aparente consenso ideológico global, onde a maioria dos poderes nacionais se exprimia em linguagem neoliberal mas talvez entendessem de modo individualizado o jargão comum, ao mesmo tempo em que em diferentes contextos linguagens incompatíveis encobriam práticas comuns. A crise do sistema mundial comandado pelos EUA se mostra hoje em quase toda sua amplitude infra e superestrutural. Dizemos quase pois, seguramente, mais, e não melhor, ainda está por vir.

Num tal contexto, a crise das lideranças é mais do que patente. Seja ao Norte, ao Sul, Leste ou Oeste, os representantes das classes dominantes regionais, nacionais e do poder global, apresentam na sua maioria um espetáculo nada auspicioso de patente ignorância, arrivismo político e extrema irresponsabilidade onde se misturam elementos que diríamos normalmente incompatíveis de autoengano e de má-fé. Aqui pode o leitor recordar os seus personagens políticos preferidos da atualidade das mais diversas latitudes, ideologias, partidos, etc, etc. Mas estes líderes não nascem do vácuo, são fruto de estruturas de poder enraizadas de maneiras complexas e contraditórias nas suas respectivas sociedades, as quais espelham presentemente e são nelas espelhados.

A presença constante direta e indireta dos EUA nos conflitos do nosso tempo, entre outros no Iraque, no Afeganistão, no conflito desigual entre Israel e o povo palestino, na guerra de devastação em curso no Iémen, no golpe sangrento na própria Ucrânia em 2014, nos golpes no Brasil e na América Latina, entre outros exemplos, faz ver que a guerra da Ucrânia é parte de um processo global.

Como caracterizou um editorial recente da revista Monthly Review (4), o conflito atual é a intensificação de uma guerra contínua de “baixa intensidade” que se arrasta na Ucrânia já por oito anos. É, segundo o editorial, um dramático ponto de inflexão da “Nova Guerra Fria” iniciada por Washington logo após o fim da primeira Guerra Fria com a queda do regime soviético e cujos alvos incluíam, além da penetração na Eurásia com a contenção e controle relacionados da Rússia e da China, a intensificação da subordinação militar e do controle da União Europeia.

O mesmo editorial reclama, como condição de paz efetiva, o retorno da Rússia e da Ucrânia ao socialismo. De um lado, a proposta soa como uma espécie de “volta dos que nunca foram”, de outro é verdade que, como afirma a revista, a guerra e o capitalismo são necessariamente complementares, como demonstra, por exemplo, o passado histórico recente das próprias nações europeias.

Na cacofonia geral sobre a guerra, o filósofo Slavoj Zizek, da sua autoridade de pensador progressista e dissidente na passada experiência comunista de seu país, adverte os esquerdistas genéricos sobre Vladimir Putin, em um artigo no site espanhol El Confidencial com o sugestivo título “‘Goodbye Lenin’ en Ucrania: aceptadlo, izquierdistas, Putin es un nacionalista conservador” (5), como se sua caracterização de Putin fosse: (i) desconhecida da maioria dos progressistas, (ii) suficiente para esclarecer as complexidades da guerra na Ucrânia e as ações de Putin que devem, segundo o filósofo, ser condenadas sumariamente.

A Rússia é hoje uma recente economia de mercado com caraterísticas próprias de uma formação capitalista tardia, dirigida por uma burguesia sem lastro histórico, um empresariado nacional cuja origem foi a própria burocracia soviética, a mesma que patrocinou o rápido desmonte da estrutura produtiva e da estrutura social chamada de socialista e a catástrofe nacional advinda do processo de integração selvagem ao capitalismo neoliberal global, catástrofe documentada pelos indicadores sociais e econômicos do período e que se abateu com violência sobre a maioria da população.

Na perspectiva desta experiência histórica é que se manifestam as contradições internas e externas do país e os limites da integração subordinada à ordem econômica do capitalismo global, no qual as promessas de prosperidade universal escondem a dura hierarquia da riqueza para poucos ao preço da miséria crescente para os demais. A economia russa, observam os especialistas, é no geral menor que a brasileira. Já a extensão territorial e o poderio militar superam em muito o Brasil. Assim como o peso histórico da Rússia no cenário mundial.

Se para a classe dominante brasileira, a subordinação e o papel de sócios menores dos poderes externos não lhes tira o sono por um minuto, não lhes envergonha ou suscita dúvidas, mas representa condição da manutenção de seu poder e das estruturas do apartheid social brasileiro, essa opção, dada a experiência histórica recente, não se apresenta para a classe dominante russa tal e qual.

Que Vladimir Putin é um “neoliberal” ao seu modo ou no seu contexto próprio, um conservador nos costumes, um reacionário próximo a ideólogos de direita presentes e passados da Rússia, um nacionalista que invoca também a religião como marca identitária, etc, é um segredo de Polichinelo a respeito do qual as advertências de Zizek se mostram, no geral, como “patronising”, isto é, paternalista, condescendente, algo arrogante, redundantes, desnecessárias. Assim, alguém poderia responder ao filósofo: não se trata de quem Putin “é” ou acredita ser, do que pensa ou pensa que pensa, dos valores e dos interesses que acredita defender, etc., mas sim daquilo que está sendo e será compelido a fazer nas circunstâncias dadas e herdadas que são as da Rússia de hoje.

A capitulação ou o conflito são as escolhas que o Império reserva aos seus “súditos” da periferia. Para os bem-intencionados e os bem-pensantes, cujas intenções variam, a menção de fatos e processos desta ordem soam como meras justificativas da invasão da Ucrânia, como se a trágica situação do país nada devesse aos planos, iniciativas e interesses geopolíticos do Império. Como se a súbita e exaltada simpatia dos EUA e EU pelo destino dos cidadãos ucranianos demonstrasse o bom coração, a capacidade de empatia, mesmo que seletiva, de norte-americanos e europeus e não o fato de que a população ucraniana, duramente afetada pela guerra, faz papel de peão da vez, um entre muitos, mas com o diferencial da sua localização próxima, no xadrez do projeto de hegemonia global e das resistências ao mesmo.

Por outro lado, na crise presente, a húbris imperial da “potência indispensável”, apressa mudanças na ordem mundial, reações que complicam a meta e os processos de hegemonia. O mundo que conhecíamos ontem já não é mais o mesmo, o que é agora e que será no futuro próximo é hoje uma grande incógnita.

Quando vemos as imagens de destruição e morte nas zonas de guerra, os civis ucranianos em fuga dos lugares onde até recentemente viviam suas vidas de todos os dias, é patente que as atuais estruturas verticais de poder em todas as partes condenam a maioria à passividade, à aquiescência, às falsas escolhas, quando muito a uma participação puramente simbólica na vida pública, à impotência de fato e ao sofrimento sem alternativas.

Os que decidem das guerras não são os participantes e vítimas dos combates. Para além da compreensão dos significados dos conflitos atuais, ou melhor, no interior mesmo deste problema, a questão das estruturas existentes de poder, o poder dos poucos que decidem sobre os demais, é uma questão crucial para uma perspectiva de superação da barbárie capitalista do nosso tempo e, com ela, a superação histórica da “pré-história da humanidade”.

*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

 

Notas


(1) https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2022/03/russia-mcdonalds-tio-vania-food-trucks-matrioska/

(2) Debord, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988).

https://cisc.org.br/portal/jdownloads/DEBORD%20Guy/comentariosociespetaculo.pdf

(3) https://es.wikipedia.org/wiki/Doctrina_Wolfowitz

(4) https://monthlyreview.org/2022/03/07/mr-073-11-2022-04_0/

(5) https://blogs.elconfidencial.com/cultura/tribuna/2022-02-24/slavoj-zizek-lenin-donbas-ucrania_3380578/

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