Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de José Carlos Durand
Este livro se distingue de muitos outros trabalhos dedicados à temática semelhante em razão de realizar cerca de 70 entrevistas com pintores, marchands, jornalistas, editores, arquitetos, decoradores, diretores e conservadores de museus e ocupantes de outras posições no “sistema de arte” brasileiro.
A partir de um minucioso levantamento histórico, Durand esmiúça a lógica interna dos campos das artes plásticas e da arquitetura no Brasil, partindo de um longo e bem estruturado capítulo sobre a ordem estética no período monárquico e examinando o papel desempenhado pelos Liceus de Artes e Ofícios e pelas Academias de Belas-Artes na formação de “mão-de-obra” especializada. Estuda, também, a participação da alta burguesia e do Estado como poderosos mecenas em diferentes épocas, dedicando ainda três detalhados capítulos à constituição (e trajetória) no país de um dinâmico mercado de bens de luxo.
Inspirado nos trabalhos do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), Durand rediscute as bases em que se encontram assentadas a história e a sociologia da arte. Citando a tirada bem-humorada de um pintor (“é preciso agitar a história da arte antes de usá-la”), o autor pondera que, a exemplo das receitas médicas e culinárias, “agitar” tem o sentido de “revolver, dar consistência, recuperar a densidade e sabor, misturando elementos que alguma força imperativa separou. Atuando em meio líquido, a gravidade lança ao fundo os materiais mais densos deixando a superfície mais ‘pura’ e cristalina, embora rarefeita das propriedades do meio a que serve de cobertura”.
A história (e a sociologia) da arte, como qualquer repositório de tradição cultural erudita, “distingue épocas, destaca vultos, aproxima autores e obras, baliza movimentos e tendências, continuidades e rupturas. Ainda que uma ou outra pesquisa possa alterar de vez em quando os esquemas classificatórios estabelecidos, boa parte do que se escreve reassegura e reforça os princípios vigentes de periodização e classificação”.
Ambas, história e crítica de arte, através de seus métodos tradicionalmente consagrados, acabam não explorando os mecanismos de financiamento da chamada sociedade dos artistas. Concentrando-se nas “tendências”, descendo às minudências analíticas do produto cultural acabado, realizando circunstanciadas biografias de artistas, os trabalhos dos estetas podem, no entender de Durand, “proliferar e constituir um saber útil à história crítica das cultura, sem que isso necessariamente implique conhecimento da base social das práticas estéticas”. É justamente neste momento que entra em cena a sociologia da cultura, preocupada com a questão dos interesses em meio aos quais ocorrem a produção, a circulação e o desfrute da obra cultural, deslocando-se “o tradicional foco de atenção, que é a obra, para o autor, e passa deste ao meio social da arte, acompanhando as transformações sofridas por este em função do que se passa no conjunto da sociedade”.
A partir da escolha de uma postura que privilegia o “meio artístico” (e não uma análise imanente do produto cultural), Durand procurou estudar as relações entre arte e sociedade buscando compreender “a autonomização do meio artístico como uma manifestação do processo mais amplo de divisão do trabalho de dominação. (…) É esse processo que confere sentido à profissionalização do artista e dos intermediários culturais, permitindo ao mesmo tempo mais completa e generalizada mercantilização de bens e serviços no âmbito da cultura”.
Nesse sentido, o autor desenvolveu o livro em torno de três grandes vertentes. Na primeira, reconstituiu a história de instituições fundamentais do meio artístico (por exemplo, a antiga Academia Imperial de Belas Artes e os Liceus de Artes e Ofícios de São Paulo e Rio de Janeiro) durante o período da Primeira República, rastreando o mercado de retratos e decorações murais em mansões dos aristocratas. Além disso, explorou como foram lidas ou incorporadas as vanguardas europeias (do impressionismo ao surrealismo) no Brasil, bem como examinou as transformações que se operaram no meio artístico, principalmente no que se refere à autonomização do campo das artes plásticas, em virtude das alterações ocorridas na economia do país, no aumento do público leitor e consumidor de bens culturais.
A segunda vertente dá conta da influência que o movimento “modernista” teve sobre as classes cultivadas, através da difusão de sua palavra de ordem, qual seja o retorno ao “autenticamente nacional”. Isso levou à revalorização da arte e da arquitetura colonial, resultando nas primeiras medidas de preservação do patrimônio histórico e artístico, composto pelas igrejas, fortificações e outros edifícios do barroco português dos séculos XVI, XVII e XVIII. Observou-se também, junto ao meio intelectual e às classes de posses, uma escalada comercial ao espólio artístico das pequenas vilas e cidades de Minas Gerais, Bahia, etc., propiciando o estabelecimento de um número razoável de antiquários brasileiros. A partir daí se pode chegar “à raiz das condições de recepção necessárias à operação de um mercado de arte em sentido amplo, incluindo desde o artesanato popular até a mais indecifrável pintura.
Outra vertente leva em conta a ampliação e a diversificação do mercado de bens de luxo a partir do exame do crescimento demográfico da classe média e da expansão acelerada do ensino superior, uma vez que já em meados dos anos 1960 o público feminino ingressa maciçamente nas universidades – de 1965 a 1980 observa-se o aparecimento de uma leva de donas de galeria, que ajudou a alargar subitamente o comércio de pintura. A arquitetura foi a “prima rica” das artes plásticas no Brasil no período que vai de Capanema a Kubitschek. Um pacote de grandes encomendas por parte do governo, “culminando com o programa de Brasília, garantiram realizações notáveis e os arquitetos, então em pequeno número, puderam criar suas faculdades próprias e modelar o ensino de arquitetura seguindo os princípios de Le Corbusier”.
Essa fase idílica encerrou-se bruscamente com o golpe militar de 1964. A política universitária pós-1968 promoveu uma perturbadora inflação de diplomas e o mercado de trabalho não teve capacidade de absorver o novo contingente de graduados. “A dinamização da construção residencial sob a égide do BNH ajudou a estruturar um setor de habitações de luxo no qual a lógica mercantil das grandes construtoras apontava antes para o ecletismo arquitetural e para a suntuosidade agressiva da arquitetura dos engenheiros e dos decoradores do que para a graça ‘despojada’ da arquitetura dos arquitetos, ela também ao seu modo suntuosa e cara”.
Arte, privilégio e distinção pode soar, aqui e ali, de forma incômoda e perturbadora para os que pensam que a arte se constitui no último espaço ainda a salvo da divisão de trabalho e das coerções típicas do capitalismo. Durand mostra que as coisas não são bem assim, que as relações de classe penetram no meio artístico e, transfiguradas em privilégios sutis, desempenham papel decisivo nas trajetórias de carreira dos artistas. Aliás, é por isso que, em O mercado de bens simbólicos, Bourdieu escreveu que “não há qualquer razão para que a ciência conceda à sociedade dos eruditos, dos escritores e dos artistas, o estatuto de exceção que tal sociedade outorga a si mesma com tanta facilidade”.
*Afrânio Catani, professor aposentado na USP e professor visitante na UFF, é um dos organizadores do Vocabulário Bourdieu (Autêntica).
Versão com pequenas alterações de artigo publicado no extinto “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde em 01.04. 1989.
Referência
José Carlos Durand. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva / EDUSP, 1989, 308 págs.