As festas do livro

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Por JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO*

Das bienais às feiras modestas, o livro resiste como ato de rebeldia: em meio à censura, ao elitismo e aos desafios do mercado, festas literárias mantêm viva a chama da leitura no Brasil

1.

Após 53 anos como visitante e profissional, adentro as feiras, festas e bienais dos livros preparado para rever e para as surpresas. É um sentimento de doce ansiedade com uma certeza que se afirma a cada evento — a de que encontrarei bons livros e amigos velhos ou novos que terão o mesmo brilho nos olhos simplesmente por estarem ali. As festas literárias sempre são lugares onde o entusiasmo e a alegria estão presentes, mesmo quando os dissabores de uma atividade apaixonante, mas pouco lucrativa para a maioria dos autores, editores e livreiros, tomam conta das conversas.

Não importa se os eventos são portentosos, como as bienais, ou pequenas e modestas feiras, o que importa é que “os deuses dos livros” fazem parte dessas festas, se expressando pelos profissionais, pelos autores e autoras autografando e debatendo suas obras e, principalmente, pelos passeios desordenados que os leitores e leitoras apaixonados pelas literaturas fazem pelos estandes.

Até a correria dos estudantes mirins ou adolescentes que entram como furacões pelos corredores carrega essa energia porque, de repente, se fixam num título, te fazem uma pergunta desconcertante e, quando o poder público local faz sua parte, compram algo com seu vale livro. Quem sabe se aquele pequeno gesto não acabará por despertar um leitor?

As festas do livro carregam o imponderável para todos que delas participam. Os editores e livreiros que lá expõem nunca têm a certeza de que faturarão o suficiente para os gastos ou para um lucro satisfatório; o público também nunca sabe o que encontrará de novo ou se o livro que procura há muito estará finalmente disponível; igualmente nunca se sabe exatamente como os debates terminarão ou se haverá assistência suficiente para toda a programação cultural.

As inaugurações são capítulos à parte e gosto de observar com cuidado as nuances dos discursos dos políticos presentes que sempre dizem do valor do livro e da leitura, mesmo que passem mandatos e mandatos sem um único projeto a favor dessa estratégica e difícil indústria em um país que apontou em 2024 que 53% da população não lê livros, conforme demonstrado na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2024.

O que sei é que somados 47 anos como profissional do livro e atuando em todos os elos dessa cadeia de maneira direta ou indireta, sinto ainda a mesma energia que vem dessa quase balbúrdia insolente das feiras e festas do livro que ousam existir no país que vê diminuir drasticamente o número de livrarias, e que presenciou o fechamento de cerca de 1.500 bibliotecas públicas no governo do ex-presidente que extinguiu o MinC.

2.

Tendo chegado há pouco da vibrante Bienal do Livro do Ceará, fui me lembrando do sem número de eventos feriais do livro de que já participei desde os anos 1970, aqui e em muitos países. E ao lembrar dessas incontáveis festas literárias, anoto que elas também são uma parte importante da história do livro, do aprofundamento do acesso à leitura e das idas e vindas da política pública voltada ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas no Brasil. Longe de mim fazer algo além de alguns apontamentos dessa trajetória, mas compartilho com vocês algumas observações nos caminhos que percorri.

Nos anos 1970, anos de chumbo em que me mudei para São Paulo e descobri as dores e os prazeres da vida, a grande festa do livro acontecia na Bienal Internacional do Livro, realizada pela Câmara Brasileira do Livro no Parque Ibirapuera. A segunda bienal internacional aconteceu justamente no ano que ingressei na USP, 1972, e me lembro da sensação de caminhar pelos corredores com o olhar circunspecto, tímido, de garoto ainda recém-chegado a uma das mais importantes universidades brasileiras, ansioso para tentar compreender que país era o Brasil. Aquela primeira festa ainda não se traduzia em alegria, mas chegava quase a intimidar pelo contraste dos livros expostos frente a um país censurado e sob o arbítrio.

Naquela década as feiras de livros eram marcadas ainda por um elitismo derivado da convicção política da elite brasileira de que a leitura literária era para poucos. A ausência de programas de acesso e de formação literária dos brasileiros/as, problema que ainda persiste, embora em menor intensidade, era a tônica daquele tempo.

Nem poderia ser diferente se analisarmos pela ótica da dominação política, já que de 1930 até a queda da ditadura militar de 1964, em 1985, o país viveu a maior parte do tempo sob o comando de militares e da elite autoritária civil, com pequenos respiros democráticos. As políticas públicas federais, desde o primeiro governo Vargas de 1930, concentraram programas de distribuição do livro para bibliotecas e escolas a partir do Instituto Nacional do Livro/INL e de instituições posteriores, com o objetivo de atender principalmente materiais para uso escolar. Por outro lado, a distribuição de obras literárias sempre se subordinou à rígida censura que atendia a preservação dos valores dos mandatários de plantão.

Sendo assim, quando caminhei pela minha primeira bienal do livro em São Paulo, no ano de 1972, estava também presente a opressão da censura cultural e a educação manietada pelos generais, apesar da resistência de algumas editoras. Aquele Brasil ostentava o discriminador índice de uma população com 33,6% de analfabetos (IBGE).

Nesse contexto de um país sob autoritarismo e ainda acanhado como indústria e mercado editorial, é interessante observar que nos anos 1970, e até os 1990, as feiras de livro regionais dificilmente eram consideradas com a devida importância por estarem fora do sudeste, mesmo aquelas que exerciam papel cultural relevante e êxito de público, como a tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, fundada em 1955. Também, pouco a pouco, essa postura discriminadora foi se modificando com a consagração das literaturas regionais e o surgimento de muitas editoras em todos os pontos do país afirmando suas identidades e importância cultural e educacional.

3.

Essas lembranças me levaram a refletir sobre os escritos de autores como Marisa Lajolo, Regina Zilberman, Eliana Yunes e Rildo Cosson, entre outros que se debruçaram sobre a centralidade da formação de leitores literários e da literatura na construção de políticas públicas de formação de leitores/as. É preciso relacionar o crescimento das feiras de livro não apenas à redemocratização do país, mas também ao lugar crescente que os livros de literatura e os novos autores/as literários passaram a ter em programas públicos no Brasil redemocratizado.

Não é simples coincidência o surgimento de programas de valorização da literatura e de maior acesso ao livro começar a acontecer a partir do declínio da ditadura de 1964. A “descolarização da leitura” e o incentivo à leitura literária, hoje reconhecidas na Lei da Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, começaram as suas ainda tímidas trajetórias a partir de 1984. Cronologicamente temos a criação de programas federais que apontam para essa conclusão: PNSL (1984); PNLD (1985); Pró-Leitura (1990); Proler (1992), este no âmbito da cultura — FBN/MinC; PNBE (1997), extinto no governo Temer e substituído parcialmente pelo PNLD Literário; PNLL (2006) e PNLE (2018), esses últimos em ação conjunta do MinC e MEC.

As feiras e bienais acompanharam essa tendência e penso que o salto delas para algo maior ocorreu em 1996 com a mudança da Bienal de São Paulo para os pavilhões do Expo Center Norte. Ficava para trás os insuficientes corredores da Bienal de São Paulo no Parque Ibirapuera e se inaugurava a era das megaexposições. E logo, em 2003, surgiram os festivais literários de âmbito nacional com a primeira Flip, em Paraty, onde a literatura é a estrela da festa.

Foi nesse contexto que, pouco a pouco, novas festas do livro foram surgindo e se transformando em vibrantes encontros literários. Hoje estão presentes em todo o Brasil, não ainda sem dificuldades, mas agora carregadas daquela energia que anima os amantes da leitura e da democracia a seguir em frente e lutar por um país que respeite o direito à leitura para todos e todas.

*José Castilho Marques Neto é professor aposentado de filosofia na FCL-Unesp. Foi presidente da Editora Unesp e da Biblioteca Mário de Andrade e Secretário Executivo do PNLL (MinC e MEC). Autor, entre outros livros, de Solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil (WMF). [https://amzn.to/3XNwXEi]

Publicado originalmente no jornal Rascunho.


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