As lições de Gramsci e Weber

Carlos Zilio, ESTUDO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5 (1)
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Por TARSO GENRO*

A crise avança e Bolsonaro vence: com a Globo, com FHC e com tudo

Dedico este artigo a Lula, Ciro, Boulos, Haddad, Carlos Siqueira, Marina, Freixo, Flávio Dino e Requião. Para que, com as suas diferenças, nos liderem na reversão da tragédia.

Num dos seus textos de reflexão sobre hegemonia política, Gramsci se reporta aos líderes do liberalismo democrático italiano (Croce e Fortunato), para abordar a concepção de “Partido”. E o faz designando o Partido “como ideologia geral”, superior aos vários agrupamentos mais imediatos, ordem esparsa de frações e de grupos nacionais e regionais, frações do liberalismo”. Gramsci diz que Croce – que ele admirava pela sua grandeza e autenticidade intelectual – “foi o teórico de tudo que estes grupos e grupelhos, camarilhas e maltas, tinham em comum” (…) e que ele (Croce) falava como “líder nacional dos movimentos de cultura, que nasciam para renovar as velhas formas políticas”. Obviamente a crítica de Gramsci tinha em vista a defesa de um partido orgânico, proletário, nacional-popular, para a construção de uma nova ordem social na conjuntura doentia da Itália em transe.

Atualizando as observações de Gramsci para esta fase da crise da democracia liberal – assediada pela escória fascista estimulada pelo ultraliberalismo rentista – podemos verificar no cenário nacional pelo menos três “partidos” relativamente definidos, compostos por “partes não orgânicas”, mas combinadas politicamente, que apresentam uma identidade geral própria, nas suas diferentes perspectivas para enfrentar a crise. Todos os três “Partidos” – naquele acepção referida por Gramsci – são formados, com diferentes pesos internos, por grupos informais de partidos tradicionais, frações de dirigentes “classistas”, líderes intelectuais de diversas origens corporativas, dirigentes políticos de envergadura regional e nacional, apoiados por redes virtuais de comunicação, empresas nacionais ou regionais de comunicação tradicionais.

Um primeiro “Partido”, coordenado pelo oligopólio da mídia que faz a voz pública dominante do liberalismo rentista, pretende uma saída formal democrática, para a crise, “domesticando” Bolsonaro e aceitando a sua continuidade no Governo, desde que ele prossiga com as reformas ultraliberais: partido disposto a perdoá-lo de todas as suas relações milicianas e genocidas em troca dos resultados reformistas. Um segundo “Partido” – de oposição democrática de viés reformista-democrático – que pretende uma saída para a crise derrotando o fascismo e expurgando Bolsonaro do Governo, bloco formalmente disposto a sustar o projeto ultraliberal e abrir a democracia para novas experiências de Governos populares. Suas lideranças mais visíveis se opõem – tanto ao fascismo como ao neoliberalismo – mas o bloco tem escassa unidade interna sobre as formas de luta, as propostas econômicas e as oportunidades adequadas para os enfrentamentos mais duros com o bolsonarismo, como a proposta de “impeachment”.

O terceiro “Partido” é o do bolsonarismo no poder. Extremista, fundamentalista e religioso, sustentado nos quadros doEstado, nas religiões do dinheiro e no crime organizado, que se abre e se fecha para os grupos que pretendem domesticá-lo, de acordo com a viabilização da sua permanência no poder. Este “Partido” se aproveita do apoio da mídia às reformas, tornando-se mais – ou menos – conivente com a corrupção e o fisiologismo, segundo as necessidades da sua arquitetura de poder e dos movimentos internos da sua malta central instalada no Estado, com um reduzido número de quadros com capacidade dirigente, principalmente originários de uma parte da reserva militar. Não incluo nesta indicação de “Partidos-parte” o Movimento “Juntos”, na verdade é uma articulação democrática da sociedade civil, na qual é possível apontar quadros que integram tanto a primeira como a segunda alternativa dos “Partidos”, aqui referidos.

O Partido orgânico – estrutura formal e regrada para objetivos de poder e aplicação de programas – ascende progressivamente com a democracia liberal-representativa e com ela declina. E tende a se tornar descartável, se não se adequar à era das redes e das novas formas culturais que incidem sobre as mentes do povo, processadas através dos oligopólios da comunicação e dos grupos clandestinos de difusão de “fakes” e ideias, que invadem o cotidiano das “massas”. Quem se opõe às formas fascistas de construção das novas hegemonias – movidas por cálculos algorítmicos que visam adequar as individualidades ao gosto do mercado – só pode produzir algo de novo conhecendo como opera este jogo, que estamos conhecendo agora.

Para se organizar de forma superior em disciplina e camaradagem, com propósitos superiores e na base de compromissos programáticos em torno da emancipação, é preciso conceber que a “organização” de partido “deles”, é mais fácil e previsível: a sua lógica de organização é, predominantemente, a lógica do dinheiro. As nossas formas de organização são mais difíceis e imprevisíveis, pois o nosso “lastro” organizativo é somente a consciência. Já estamos sentindo na carne que as novas formas de produção no capitalismo rentista info-digital desfiguraram as lutas emancipatórias em torno de uma classe estruturada predominantemente na fábrica moderna. Este fato histórico vem esvaziando, tanto a social democracia clássica como as propostas tradicionais do socialismo, que redundaram no socialismo real.

Os trabalhadores de todas as ordens e tipos – intelectuais, operários, prestadores de serviços na cultura e na TI – autônomos dependentes, servidores de baixo escalão do setor público, jovens excluídos como supérfluos, mulheres e lutadores anti racistas de todas as classes, por direitos próprios e alheios – formam hoje os grupos socialmente dispersos que, pela sua vida objetiva de opressão e suas demandas reprimidas, podem compor uma constelação política libertária “novo tipo”: nela, as identidades de classe tradicionais e o socialismo – como ideias reguladoras – são apenas (e é muito) o ponto de partida da unidade moral e política, em defesa da Democracia e da República, para um novo patamar civilizatório. Se não deixarmos o resto em “aberto” vamos permanecer no presente, que será um presente de longo tempo – bolsonarista e ultraliberal – que poderá dominar por um longo e tenebroso ciclo.

Weber falando sobre os grandes “Partidos” da aristocracia no Século XVIII, tratando-os como etiquetas de grupos políticos dirigentes, que não eram mais do que “séquitos de poderosas famílias aristocráticas”, diz que cada vez que “umLord, por qualquer motivo mudava de Partido, tudo o que dele dependia, passava, na mesma hora, para o partido oposto.” A análise de Weber nos faz compreender como foi importante para as classes dominantes brasileiras, parasitárias do financismo global, a tentativa de destruição dos partidos da ordem – tradicionais ou não – para colocar no seu lugar dispositivos “móveis” de dominação, cuja plástica institucional se amolda com facilidade às alianças necessárias, rapidamente, para dirigir e implementar as reformas destrutivas do Estado Social.

O primeiro “Partido”, que tem como auditor ideológico e programador político, o oligopólio da mídia, articulado com o sistema de poder do capitalismo financeiro e com os quadros dos diversos partidos reacionários ou conservadores (com expressão pública dentro e fora do Governo) – este primeiro partido, de Maia, Fernando Henrique, Globo, Fiesp e dos militares da reserva, diferentes mas unidos – está vencendo. Seus últimos movimentos, preparando-se para fim do ano crítico, que será de destruição do nosso tecido produtivo, desemprego em massa, exclusão de dimensões imprevisíveis, crise ambiental e falta de recursos mínimos para financiar o funcionamento do Estado, estão em andamento, de forma simulada ou real.

Quais são estes movimentos? A organização de um “centro” paralelo de Governo, com o Vice-Presidente Mourão à testa, deixando Bolsonaro solto para as suas patacoadas fascistas tradicionais, começa operar algumas políticas essenciais para dar uma certa racionalidade ao projeto liberal-rentista, atuando em diversas direções. A intervenção do Exército na Amazônia consolidando e legalizando as áreas já ocupadas, às expensas das proclamações de Bozo no início do seu Governo, deve bloquear o avanço da grilagem mais evidente e recuperar o diálogo, interno e externo, sobre as questões ambientais com suas consequências econômicas.

O mérito da manutenção dos programas de distribuição de recursos aos mais pobres e aos setores da indústria e do comércio, que foram duramente disputados pela oposição, estão sendo capitalizados – no seus resultados positivos – por Bolsonaro pessoalmente, não pela seu grupo mais sociopático, pois aos setores beneficiados – por interesse político ou simples ignorância – não interessa quem os “conquistou”, mas quem “pagou”. Isso ocorre independentemente das falhas técnicas no alcance destes valores, que aliás são extremamente necessários para que a hecatombe econômica não se aprofunde ainda mais.

Ao mesmo tempo que a continuidade das reformas ultraliberais avança e Maia bloqueia a possibilidade de “impeachment”, a pandemia se naturaliza, com a ausência de ações do Ministério Público contra os propagadores do negacionismo, que são corresponsáveis pela morte de milhares de brasileiros. Neste contexto, o Governo apresenta uma carta exponencial para viabilizar o financiamento do Estado “depois do vendaval”, no fim do ano: uma espécie de CPMF Século 21, combinado, certamente de forma demagógica, com a turbinagem do Bolsa-família, reciclado com um rótulo bolsonarista.

Na Educação, para a alegria da maioria dos comentaristas políticos do “partido” da mídia oligopólica, saem os olavistas imbecilizados, puramente destrutivos e entra um evangélico pedante, que recomenda o uso da violência contra as crianças, mas já disfarçado de republicano laico. Em síntese, Bolsonaro avança para responder ao “fim de ano” e firmar-se, dentro do desastre que é o seu Governo, como o fiador do reformismo liberal, onde todos podem ter a ilusão empreendedora e poucos poderão ter empregos decentes para sobreviverem à crise.

Por estas e outras razões tenho sustentado que, se chegarmos ao fim do ano sem apresentar ao país – não um programa de “um partido”, para governar, mas um programa de salvação da democracia e da república, para ser implementado por uma coalizão reformista, democrática e popular – poderemos sucumbir. Renda mínima universal e complementação de renda para os trabalhadores “autônomos” mais pobres, consolidação e ampliação do Bolsa Família e novas proteções para o novo mundo do trabalho, reais e factíveis, estarão na ordem do dia, para depois do vendaval. Tomara que esta análise esteja errada, mas se não estiver, todos – depois das tormentas que se avizinham – estaremos sujeitos a alguns invernos de infortúnio, com poucas possibilidades de disputar o futuro imediato.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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