Por Walnice Nogueira Galvão*
Afora a batida do violão, o modo de cantar de João Gilberto, com voz pequena, acabou também por se impor: contraponteando o ritmo, sobrevoando as fronteiras do compasso, sempre alando à frente dele ou se atrasando
Incomparável artista, João Gilberto foi o criador da batida de violão que impregnaria a invenção da bossa nova por Tom Jobim, secundado por uma plêiade de talentosos jovens da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, o samba, negro e do morro (que assim continuaria), engendrou um rebento, que passou a ser branco, de classe média, fecundado pelo jazz, o que garantiu a alçada internacional da bossa nova, hoje considerada lá fora como “ a verdadeira música popular brasileira”. Sem esquecer seu forte componente erudito, devido ao pianista clássico Tom Jobim e ao poeta da segunda geração modernista Vinicius de Morais.
Afora a batida do violão, o modo de cantar de João Gilberto, com voz pequena, acabou também por se impor: contraponteando o ritmo, sobrevoando as fronteiras do compasso, sempre alando à frente dele ou se atrasando (nisso, Miltinho era um virtuose). Todos sabemos que essa voz é impostada, porque ao natural, ouvida em rara gravação, soa como o vozeirão de Orlando Silva. Tinha antecedentes ilustres, como o cantor fora de série (meio diseur), de dicção quase falada, que foi Mário Reis – e os do samba-canção, como Dick Farney e Lúcio Alves. Pertence à mesma escola Noel Rosa, quando canta com um fio de voz quase desfalecente mas com afinação, ginga e humor extraordinários. E fora daqui certamente Chet Baker, que soa tão parecido que quase dá para confundir. João Gilberto e toda a sua geração dedicaram-se a essa depuração do canto do samba.
Entretanto, uma explicação mais pedestre é fornecida pelos criadores da bossa nova, entre eles Roberto Menescal, hoje patriarca indisputável dos primórdios. Dizem que a maneira intimista e em surdina foi determinada pelo fato de todos morarem em apartamento. Tinham que tocar e cantar baixinho, senão os vizinhos reclamavam. De acordo com esse integrante da primeira turma, aquela que frequentava o apartamento do pai de Nara e Danuza Leão em Copacabana, foi assim que se definiu a maneira, que viria a se tornar propriamente um estilo.
Ele buscava a perfeição. A integridade de João Gilberto, que se protegia da massificação, do culto à celebridade, da exploração midiática mediante uma cuidadosa cortina de fumaça, alimentaria todo um lendário. Contava-se que era capaz de abandonar um show antes de começá-lo, descontente com os instrumentos ou os microfones. Ou então que, conversando ao telefone com um amigo (que foi correndo contar a história), batia distraidamente o lápis no aparelho até começar a fazê-lo ritmicamente, já enlevado numa possível gravação vindoura e esquecendo que havia um interlocutor do outro lado. As anedotas se multiplicam. Sabia-se que era avesso ao intercâmbio social – não ia a bares, não ia a festas, não comparecia a eventos, não apreciava badalação nem multidões – e não gostava de receber pessoas.
Ir a um show de João Gilberto era aventurar-se por terra ignota. Os fãs indagavam uns aos outros se ele apareceria mesmo; ou, caso aparecesse, se daria o show ou iria embora antes do início, como era useiro e vezeiro em fazer; ou se interromperia na metade.
Assisti um deles no Tom Brasil, em São Paulo, que se anunciava com duração de uma hora, nem mais nem menos um minuto, a partir das 21 horas. Para começar, o interregno de meia hora que ele levou para levantar a cortina a bem dizer nem chegava a configurar um atraso – tratando-se de quem se tratava. João, com seu banquinho e seu violão, cumpriu rigorosamente a obrigação, levantando-se ao fim de uma hora para agradecer os aplausos e retirar-se. Chamado várias vezes à cena pela plateia em delírio, acabaria por resignar-se a conceder um bis. A plateia silenciou e ele deu início a um bis… que duraria duas horas! Encadeando uma canção na outra, como palavra puxa palavra, só parou ao fim de duas horas. Cantou até o hino nacional, o que é de não se acreditar. Os fãs, em êxtase, só foram embora no dia seguinte, pois passava da meia-noite na cidade deserta, trauteando com João: “Madrugada já rompeu…” Foi uma ocasião digna de ficar na memória, marcada por uma estrelinha de ouro.
*Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP.