Bolívia: o retorno da esquerda

Dora Longo Bahia, Farsa - Delacroix (O MST guiando o povo), 2014 Acrílica e esmalte sobre lona de caminhão reciclada 300 x 400 cm
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Por ATILIO A. BORON*

As eleições bolivianas demonstraram que o MAS é a única força social existente em toda Bolívia

A vitória ressonante do MAS nas eleições presidenciais bolivianas ratificou a densidade social da organização política dos povos bolivianos. Os algarismos pegaram de surpresa inclusive os analistas mais rigorosos: as pesquisas realizadas por quatro das cinco consultorias mais renomadas da Bolívia antecipavam para a dupla do MAS uma votação que variava em torno de 45% dos votos e cerca de 34% para seu adversário mais próximo, Carlos Mesa. Isto é, os votantes do evismo ocultaram sua intenção de voto ao mesmo tempo em que se superestimou a base real de apoio da Comunidade Cidadã.

A vitória foi muito mais ampla do que o esperado, tal como atestam as duas pesquisas certificadas pelo governo para realizar a “boca de urna”: CIESMORI e Fundação Jubileo. Ambas atribuem à fórmula Arce-Choquehuanca uma proporção que oscila em torno de 52% dos votos, e para Mesa-Pedraza apenas 31%. Alguns observadores se aventuram a dizer que o número final se situará em cerca de 55%. Nas primeiras horas da madrugada, um tuíte da ditadora Jeannine Añez dizia que “pelos dados de que dispomos, o Sr. Arce e o Sr. Choquehuanca ganharam a eleição. Felicito os ganhadores e peço-lhes que governem pensando na Bolívia e na democracia”. (Ou seja, governar como ela não fez). Ao meio-dia, Carlos Mesa reconheceu o triunfo do MAS.

Ainda não foram publicados os resultados oficiais das 35.000 seções eleitorais e seria uma inocência pensar que o inimigo imperialista e seus aliados da direita racista se inclinarão respeitosamente diante do veredito das urnas. É difícil (mas não impossível) que possam haver surpresas e manobras de último minuto para frustrar a vontade do povo boliviano. Se a diferença tivesse sido menor, digamos de uns 12 ou 13 pontos, seguramente que os bandidos às ordens de Luis Almagro teriam repetido o feito de apenas um ano atrás e roubado a eleição; mas, com uma diferença de vinte pontos ou mais, a manobra se desmoronaria por sua intolerável obscenidade. De todo modo, os números oficiais não serão divulgados até quarta-feira e então saberemos qual é o próximo passo da direita.

As eleições demonstraram que o MAS é a única força social existente em toda Bolívia. Carlos Mesa demonstrou que é um selo eleitoral, um contubérnio de grupos que tinham em comum apenas seu ódio a Evo e ao que ele representa. E Luis Fernando Camacho é o líder de uma importante força social cujo baluarte é Santa Cruz de la Sierra. Mas, fora desse departamento – que equivale a um terço do território nacional –, sua gravitação é muito baixa. Construir uma direita com bases sólidas em nível nacional é uma tarefa árdua, que na Bolívia, ainda mais com a violência terrorista de sua ditadura, a cumplicidade de juízes e promotores e o apoio da cloaca midiática a serviço do império, demonstrou ser uma missão destinada ao fracasso. A profunda crise política em que os Estados Unidos se debatem nas vésperas de uma eleição presidencial complicada reduziu o protagonismo da “embaixada” e limitou sua margem de ação. E a direita local – tanto na Bolívia quanto na Argentina e em toda América Latina – sem a orientação, o dinheiro e os impulsionadores midiáticos e jurídicos que Washington manobra, é pouco o que pode fazer.

As fábricas estratégicas da direita possuem um projeto de alcance mundial (comparar-se, por exemplo, as manifestações e slogans dos “antiquarenta” e “anti-infectadura” nos mais diversos países) e trabalham para impedir a estabilização de governos progressistas ou o surgimento de algo com esse signo político. Claro que a história é caprichosa e amiga das surpresas. Quem se animaria a descartar a ideia de que nesse coração da América do Sul que é a Bolívia acaba de surgir o sol cujos raios iluminarão as próximas eleições no Chile, Brasil, Paraguai, Venezuela e as presidenciais no Equador, em fevereiro de 2021? Talvez, sem dar-nos conta, sejamos testemunhas de um giro histórico impensado até há poucas semanas.

*Atilio A. Boron é professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de A coruja de Minerva (Vozes).

Tradução: Fernando Lima das Neves

Publicado originalmente no jornal Página 12.

 

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