Por DANIEL BRAZIL*
O que é Bolsonaro senão um Dick Vigarista que anda de moto e que tem muitos “seguidores”
Houve um tempo em que o teatro ocupava o imaginário das pessoas com fantasias, ídolos e exemplos de bem e de mal. Não só os arquétipos gregos, até hoje lembrados, mas os personagens de Shakespeare, Moliére ou Rostand, no século XVII, também criaram modelos de comportamento que se refletem até nossos dias. Era comum nos séculos seguintes as pessoas serem classificadas, de acordo com seu comportamento, aparência ou algum feito inusitado, como Romeus, Julietas, Tartufos, Dons Juans ou Cyranos de Bergerac (este um personagem real, celebrizado pela peça de Rostand).
A literatura tornou-se o veículo ideal para a disseminação de personagens que acabam tornando-se modelos comparativos de comportamento. Figuras como o sonhador Quixote, a insatisfeita Emma Bovary, o ciumento Bentinho ou o dividido Raskolnikov ainda são lembradas pelos mais cultos ao se depararem com figuras reais que emulam aqueles comportamentos.
O cinema, arte do século XX, introduziu novos parâmetros culturais, absorvendo e adaptando os exemplos teatrais e literários, mas também criando novos personagens paradigmáticos. Muitos homens tentaram imitar Humphrey Bogart, Errol Flynn ou John Wayne, em seus papéis mais famosos, enquanto as mulheres queriam ser Olivia de Havilland, Vivian Leigh ou Rita Hayworth. Ou melhor, as personagens que viveram nas telas.
O cinema falado é o grande culpado de promover esta sutil alteração na construção de modelos. Introduz personagens sem passado. Não têm história, não têm vivência, surgem feitos e morrem – quando morrem – como surgiram, sem alterar suas características. Personagens-síntese, modelos, arquétipos, que têm seu epítome nos heróis de histórias em quadrinhos e desenhos animados.
E o grande público foi se acostumando – ou sendo acostumado – a isso: a não precisar de história, de construção psicológica e histórica, contentando-se com ações e aparências. É uma espécie de regressão intelectual, se compararmos com o público do teatro grego ou elisabetano, com as românticas leitoras de folhetim do século XIX, com os leitores do século XX. A televisão, como mais poderoso meio de comunicação de nosso tempo, exerce papel fundamental nesse status quo. Não é à toa que os roteiristas mais espertos de cinema e quadrinhos perceberam isso, procurando construir um passado psicologicamente mais elaborado para alguns personagens, como Batman, Coringa ou Homem-Aranha.
Já os desenhos animados, teoricamente destinados a um público infantil, dispensam este aprofundamento. A criança quer ver ação e conhecer as qualidades e defeitos presenciais de seus heróis e vilões, dispensando seu passado. É comum, e natural, vermos crianças assumir gestos e comportamentos de personagens de animação. O preocupante é ver cada vez mais jovens e adultos fazerem o mesmo.
Um forte sintoma de que a humanidade se adaptou bem a essa infantilização cultural é o fato de que os protagonistas do cenário político mundial cada vez mais se assemelham a personagens de desenho animado. Pinochet, Ulstra, Boris Johnson, Trump, Bozo, são caricaturas do mal. Seres de biografia obscura, que se firmam no imaginário popular mais pelo aspecto grotesco que por algum conteúdo humano.
Alguns dirão que o Papa, Mandela ou Lula também são caricaturáveis. Bem, todos nós somos, mas nem todos somos caricaturas. A diferença é que o ex-presidente tem uma biografia conhecida, construída em termos sociais e humanísticos, desde que era um líder operário, assim como Bergoglio ou Madiba. Quem conhece de fato a biografia de Trump? Ou de Dória, Musk ou Moro? O que é Bolsonaro senão um Dick Vigarista que anda de moto e cujos golpes acabam dando errado, e que mesmo assim tem muitos “seguidores”?
Mas embora esse retrato raso (e também caricatural) se encaixe bem em ambições eleitorais e outras atividades escusas, é preciso frisar sempre que representam mais que isso. São fantoches, mas manipulados por interesses maquiavélicos e totalitários, que sufocam cada vez mais a cultura, o conhecimento e a história, buscando um novo período de trevas. Para estes, o ideal é um mundo onde a política seja reduzida a um filme de má qualidade, para ser assistido no sofá, comendo pipoca, enquanto devastam o planeta.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.