Carta da Itália – II

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Por LUAN REMÍGIO*

Relato de um estudante brasileiro em Lecce, no sul da Itália, sobre o cotidiano local durante a pandemia do coronavírus

“Que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais” (Chico Buarque, Pedaço de mim).

No primeiro relato das minhas impressões sobre o Covid-19 na Itália, postado no site A Terra é Redonda usei o diálogo com meu amigo Alessandro Passarela para dar corpo àquilo que sentia. Me referi a ele somente pelo primeiro nome por achar que poderia estar usando sua dor. Tive certo receio em escrever um relato, não sabia como minha família iria reagir, o que eles iriam pensar, as coisas não estariam “bem” como digo nas mensagens e vídeos-chamadas – eu, felizmente, estou bem, mas o lugar e as pessoas que aqui vivem não, todavia é impossível escapar ileso desta situação.

Não imaginava a relativa proporção tomada pelo texto. Após publicado ele não pertence a quem escreveu. Não domino a forma como ele reverbera nas pessoas, como elas irão digeri-lo. Depois de descarregada a dor não conseguia lê-lo novamente sem chorar, sobretudo a história de Bergamo.

Ao publicar o texto em seu Facebook, o professor Ernani Chaves advertiu sobre sua extensão e necessidade, mesmo assim, pouco tempo depois recebi diversas mensagens de apoio, força, que me deixaram feliz e emocionado. A diferença do fuso me fez perder a hora. Por volta das duas da manhã recebi uma ligação do meu pai e conversamos longamente. Para minha surpresa ele tinha lido e gostado do meu relato. Somente dois dias depois tive coragem e conversei com minha mãe, ela disse ter se emocionado, mas sabia estar tudo bem comigo. Naquela noite, ainda agitado, tive dificuldades para dormir e algo me preocupava e impedia meu descanso: qual será a reação do Alessandro se por ventura ler o texto?

Dormi pouco. A primeira coisa que fiz ao abrir os olhos foi passar a mão sob o travesseiro na busca pelo celular. Tomei coragem e enviei uma mensagem para o Alessandro explicando a situação, pedindo desculpas, caso aquilo fosse invasivo, e se pudesse ler seria importante. Ainda pensei em traduzir a parte referente a ele, mas, antes da minha sugestão, disse que leria com o auxílio do tradutor. Alessandro estuda filosofia medieval, sabe latim, inglês, tem o francês como segunda língua, pois trabalhou e morou por 4 anos na França, namora uma venezuelana e se arrisca no espanhol; tentei ensinar algumas palavras em português não dignas de nota. O conhecimento das línguas latinas certamente ajudou a entender o texto. A resposta dele foi a seguinte:

“Belo artigo!  
belo testemunho  
usa minha história se servir para convencer as pessoas a ficarem em casa.  
é uma história triste   
dolorosa para mim  
para minha família também   perdemos outras pessoas próximas  
moro perto da igreja  
e ontem os sinos tocaram 3 vezes e moro em um vilarejo  
Se conseguir convencer algum brasileiro a ficar em casa e se proteger, fizeste uma grade coisa
para minha família há muita dor. Mas não perco a vontade de rir e brincar.  

Isto me ajuda.   
Sofro muito  
e não estou trabalhando na minha pesquisa porque não tenho vontade.  
No momento espero somente que as pessoas doentes que conheço se recuperem  
rezo por eles  
embora não acredite, rezo  
Quando isto terminar, vamos Susanna, Myrth, tu e eu comer um sorvete gigante  
em seguida te levo para Bergamo  
para comer carne na brasa.  
Vai dar tudo certo  
Vamos falar  
e gritar! 🙂  
Gosto de ti/ te quero bem [ti voglio bene], sou feliz por ter te encontrado
[…]  
Vamos superar”.

As mensagens foram trocadas via WhatsApp e tomei a liberdade de colocá-las aqui. Foram chegando e as sentia como pequenas doses de sinceridade, carinho, ternura, desatando o nó angustiante na garganta, aliviado por não ter magoado o amigo; chorava por recordar a história, dessa vez mais detalhada por ele. Chorei também de felicidade por ver a reação de aprovação dele. Ambos temos características de sermos “extrovertidos” e tiramos sarro um do outro. Claro que ele se sai melhor, pode fazer as piadas de duplo sentido com desenvoltura. É um bom amigo e sempre foi paciente ao me explicar as coisas e o peso das palavras em italiano.

Minha relação com Alessandro extrapolou o pouco tempo de convívio. Percebi isso no “ti voglio bene” [te quero bem/ gosto de ti]. Não que aqueles dias não estivessem marcados em mim, porém ouvimos falar da “frieza europeia”; aquelas palavras a contradizem. Mesmo sendo do norte, é muito afetuoso. Não é só clima do norte que é frio, ao menos esta é a sensação dos brasileiros.

Fui muito bem acolhido quando comecei a frequentar a sala dos doutorandos da Unisalento. Um dia, por volta das 18:00, Alessandro preparava-se para deixar a sala e me perguntou, intercalado com minhas respostas, se iria ficar, onde morava e como iria. Respondi que não demoraria, localizei minha morada, disse que iria andando e saímos juntos da sala. Geralmente ele ia de ônibus, entretanto, naquele dia nos fizemos companhia. Essa foi a primeira de algumas. Saíamos do Studium, passávamos pela porta Napoli, caminhávamos em direção ao Duomo de Lecce, passando pela famosa janela, com grades em forma de flor (na verdade parece um pênis e uma das histórias diz que o local antigamente era um prostibulo e a “flor” o sinal, motivo de ira dos donos da casa que, aproveitando-se da anedota, escreveram um livro com a “verdadeira” história da janela para desfazer o mal-entendido); depois cruzando a Piazza Sant’Oronzo, um dos santos padroeiro da cidade, e uma quadra a frente dobrávamos a direita. No final ele seguia em frente e eu dobrava mais uma vez a direita, retornando alguns metros, “esforço” compensado pela companhia.

Sabendo da minha queda por doces, geralmente me persuadia a ir às “pasticcerias” e “gelaterias”, também uma desculpa para conversarmos sobre a vida, as adversidades enfrentadas e rir, é claro.

Alessandro partiu de Lecce em direção a Bergamo no começo de fevereiro, antes do surto de COVID-19. Em uma de nossas últimas caminhadas, me perguntou “ti mancherò?” [vais sentir minha falta?/sentirá saudade?]. Surpreso, respondi, “dai, certo che me mancherai” [claro que sentirei falta de ti], ainda sentindo o impacto da pergunta. Conversamos sobre como entendia aquela frase, aquelas palavras: não era só falta, ausência, distância, nostalgia, era saudade. A palavra expressa algo além de “falta” [mancanza; mancare, faltar], é saudade; saudade é saudade; palavra para traduzir um sentimento intraduzível; não se diz, sente.

Espero ter ajudado Alessandro a suportar a distância da família e amigos no período em que esteve aqui em Lecce. Da minha parte seria uma retribuição justa. Tais vivências são importantes e ficaram gravadas em mim. Estava à deriva e Alessandro foi um dos portos em que pude me atracar em meio ao mar revolto.

Sim, sinto saudade. Saudade de um tempo que não volta, de uma vida que não retorna. Saudade de poder fazer escolhas.

A Itália não é homogênea, muito menos a Europa.

*Luan Remígio é professor da Seduc-PA, doutorando em filosofia pela Unifesp e intercambista na Universidade del Salento, Lecce, Itália.

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