Por CRISTIANE FREITAS GUTFREIND e por BRUNO LEITES*
“Prefácio” e “Apresentação” do livro recém-lançado
Prefácio [Cristiane Freitas Gutfreind]
Em Cinema, Naturalismo, Degradação: ensaios sobre o cinema brasileiro dos anos 2000, Bruno Leites nos apresenta um tema inquietante que está presente na ontologia das imagens fílmicas, propondo diversas interpretações e diferentes reflexões filosóficas e artísticas. É uma temática desafiadora, daquelas que atormentam o espírito, promovem desconforto e experiências estéticas arrebatadoras. O autor encara o desafio fixado na sua pulsão de vida e se dedica a aprofundar o tema a partir da cinematografia brasileira da década de 2000.
Para isso, ele recorre a reflexões empreendidas na sua trajetória acadêmica, utilizando-se de um estilo de escrita impecável, no qual o pensamento parte da imagem para construir ideias e conceitos. Estes tensionam a objetividade do mundo e a subjetividade do olhar em direção ao corpo, ao tempo e à política.
O naturalismo se estende da realidade existente na natureza humana à realidade psíquica e social, ou seja, coloca o sujeito diante do difícil entendimento de estabelecer limites entre o humano e o artífice, arriscando a se esvaziar em uma designação de que é tudo o que existe e suas variantes possíveis. Além disso, no cinema o realismo é tecnicamente naturalizado, pois o objeto filmado é entendido como uma totalidade da estrutura do real. No entanto, nos ensaios de Bruno Leites, escapamos dos esvaziamentos e das afirmações generalistas sobre o tema cinema-naturalismo. O que temos, então, é a consistência do domínio teórico dos múltiplos entendimentos da noção de naturalismo dissertados com maestria, percorrendo um caminho preciso, amparado, principalmente, pelas reflexões de Gilles Deleuze. O naturalismo é apresentado ao leitor não apenas como um tema que caracteriza um gênero fílmico, mas como uma característica de filmes que se mostram ao mundo de maneira singular por meio de imagens que fazem os indivíduos resistirem em torno da presença da degradação.
Os filmes aqui pensados – Cronicamente inviável, Baixio das bestas, Cheiro do ralo, entre outros –, contam a nós sobre o Brasil do início do século XXI e mostram a coesão e a ressonância da violência, da ambiência dos costumes e dos valores que envolvem o país. A imagem-pulsão de Deleuze, norteadora para o entendimento desses aspectos, é indagada de forma a levar o leitor a apreender a força da morte pela redução das tensões.
O pensamento naturalista, alinhado com os filmes que pensam a impotência da vida, revelam o pulsional, o sórdido, a miséria, em suma, nas palavras do autor, “as doenças do mundo”. Desse modo, chega-se ao final do percurso com o primoroso ensaio, desvelando a alienação social e psíquica que indicam os sintomas da imagem que incomoda, por meio dos filmes de Cláudio Assis. Nesses alinhamentos, o autor nos mostra o domínio dos objetos pesquisados e a ordem de relação entre eles, o que nos revela certa ideia de naturalismo: o espaço degradado e a figuração performativa dos personagens por meio da pulsão de morte.
A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar que o autor disserta sobre um cinema brasileiro que se apresenta como um dispositivo cultural a partir de um inventário de filmes naturalistas (irônicos, cíclicos, dispersos) que dissecam os elementos e as formas sensoriais. Nesse sentido, esses filmes deixam aparente a natureza humana, que faz referência a um país violento, ampliando o que a filosofia nos apreendeu como naturalista: a característica integralmente natural do mundo.
Bruno Leites nos apresenta uma obra referencial sobre um tema fundamental para aqueles que se interessam por imagens e nos deixa uma matriz estrutural para pensar o naturalismo em outros filmes de outros tempos.
Apresentação [Bruno Leites]
1.
Os filmes citados neste livro e o conceito de “imagem-pulsão” proposto por Gilles Deleuze são as construções que despertaram em mim a necessidade de pensar a relação entre cinema, naturalismo e degradação.
Na pesquisa sobre o conceito de naturalismo, deparei-me com uma série de definições, às vezes divergentes entre si. O termo pode se referir a reflexões ontológicas sobre as propriedades do dispositivo cinematográfico;[i] à linguagem que procura simular uma suposta visão natural do espectador diante da cena, na tradição da busca pela transparência do dispositivo;[ii] a cineastas que se colocariam como “observadores” e “fotógrafos” de realidade;[iii] a filmes cujo objetivo seria fazer a revelação de uma verdade extraída do real, frequentemente caracterizada como uma denúncia autêntica e corajosa.[iv]
Outras características atribuídas ao naturalismo são: a relação com gêneros fáceis e populares, eventualmente sem maiores apuros estéticos;[v] a concepção de personagens guiados majoritariamente por impulsos do corpo;[vi] a visão mórbida, pessimista e determinista da vida.[vii] O naturalismo aparece, também, como uma estética de excessos,[viii] com influência sobre o film noir e o cinema de horror.[ix]
Dentre tantas acepções, me mantive no eixo proposto por Deleuze em A imagem-movimento (1985), o qual é resultado de um longo percurso do autor pensando o naturalismo e sua relação com a pulsão de morte, conforme exponho no ensaio Imagem-pulsão, o naturalismo em Gilles Deleuze. Para ele, o naturalismo implica a observação de uma realidade determinada (localizada no espaço e no tempo), que sofre a ação de uma pulsão de morte, compreendida como uma força autônoma que age sobre os corpos e os espaços, condenando-os à degradação e a ciclos de repetição.
A proposição de Deleuze acerca do naturalismo no cinema foi saudada por importantes teóricos, mas também negligenciada ou duramente criticada por outros.[x] Ela certamente atribui ênfase para um aspecto do naturalismo que os manuais de literatura costumam chamar de determinismo ou fatalismo. O que Deleuze nos diz é que tal aspecto, longe de ser secundário ou restrito ao “conteúdo” das obras, é um elemento constitutivo do modo naturalista de ver o mundo, construir as imagens e pensar o papel da arte na coletividade. Não devemos esquecer, inclusive, que o naturalismo antecede em poucos anos o nascimento da psicanálise e a proposição do conceito de pulsão de morte por Sigmund Freud (2019) em Além do princípio de prazer.[xi]
O desenvolvimento do eixo de degradação no naturalismo levou-me a incorporar no trabalho obras de dois importantes especialistas em naturalismo literário: David Baguley (1990) e Yves Chevrel (1993). Chevrel fala-nos acerca da tragicidade inerente à visão de mundo naturalista, que aparece sempre implicada no cotidiano, diferentemente do que ocorre na tragédia clássica. Já Baguley apresenta o naturalismo como uma literatura diversificada e a qualifica como uma “visão entrópica” ante o mundo.[xii] Nesse sentido, o naturalismo não seria apenas o fruto do encontro com uma realidade degradada, mas um pensamento que enxerga o mundo em degradação contínua, muitas vezes sob a aparência da estabilidade e do progresso. Baguley também atribui ênfase ao “naturalismo cômico” e à visão irônica que existe no naturalismo, algo que certamente encontraremos em filmes analisados nos ensaios aqui reunidos.[xiii]
Essa apropriação do naturalismo pouco valeria se o conjunto de imagens e ditos de cineastas que aqui constam não encaminhasse para o mesmo universo. Aquilo que teóricos designavam por “pulsão de morte” (Deleuze, 2007c; 1985), “visão entrópica” (Baguley, 1990) e “trágico cotidiano” (Chevrel, 1993), cineastas pensavam como o “tempo que engole tudo”, o “cronicamente inviável”, a “tendência à destruição”, a “violência dentro de nós”, invariavelmente designando forças que agem em ambientes específicos, contemporâneos e normalmente periféricos.[xiv]
A seleção dos filmes foi feita de modo relativamente rizomático, partindo de uma percepção preliminar de que havia uma violência no cinema brasileiro dos anos 2000 que decorria de uma condição quase inata do corpo brasileiro (as nossas pulsões e sua tendência à destruição), ou inscrita em nosso DNA (os pecados originais da brasilidade).
Assim, cheguei a um conjunto que abrange os seguintes filmes: Latitude zero, Cronicamente inviável, Amarelo manga, Contra todos, O cheiro do ralo, Árido movie, Quanto vale ou é por quilo?, Deserto feliz, Baixio das bestas e Os inquilinos. Outros filmes também são acionados à medida que permitem visualizar “traços” de naturalismo ou maneiras diversificadas de enfrentar um mesmo universo de questões: Através da janela, O invasor, Madame Satã e Febre do rato.[xv] Evidentemente, esse conjunto não implica a totalidade de aparições do naturalismo no cinema dos anos 2000.
Ao reunir esses filmes e colocá-los no agenciamento com o naturalismo e a degradação, destaca-se um pensamento transdisciplinar sobre o cinema em sua relação com o corpo e a cultura. A imagem influenciada pelo naturalismo comporta uma tese sobre a força da matéria e os excessos do corpo. Existe uma visão de oposição entre corpo e cultura, de modo que o corpo é visto como uma esfera de pulsões animalescas, as quais, sem o contraponto suficiente da cultura, cedem ao império da grande pulsão de morte. Por isso, nessas imagens os personagens estão em processo de bestialização, e a sexualidade faz parte de um primitivismo tido como decadência e queda de “retorno ao inorgânico”.[xvi]
Mais do que a própria violência, nesse conjunto de imagens destaca-se uma ampla estética de deformações, incluindo corpos definhando, pedaços de corpos, espaços malformados, paredes descascadas, portões enferrujados. Há um gosto pelos resíduos que se formam quando as formas não se estabilizam, sobretudo a fumaça e o sangue.
Os personagens estão em uma situação de captura dentro de um tempo que multiplica as suas repetições, mas a qualificação de inocentes não pode ser aplicada a quase nenhum deles. Quanto às repetições, elas parecem se tornar independentes dos personagens, maiores do que eles. Há pouca tensão entre os personagens e os espaços em que eles habitam, dada a sua integração, a sua quase indissociabilidade. Não é comum vermos personagens lutando contra os meios degradados que os pressionam. Todos eles, meios e personagens, beiram o indissociável e fecham-se em uma temporalidade de repetição infinita.
2.
Os ensaios aqui presentes exploram o naturalismo no cinema[xvii]e podem ser lidos de modo independente, exceto Filmes naturalistas e suas dispersões, que funciona como uma introdução aos principais tópicos do livro. Nele eu apresento uma concepção de naturalismo que serve como base para demais aparições do conceito ao longo do livro.
Além disso, proponho o reconhecimento de diferentes tendências de naturalismo em filmes dos anos 2000: filmes naturalistas, filmes naturalistas irônicos e cíclicos, filmes com traços naturalistas e filmes com naturalismo em dispersão. Em Imagem-pulsão, o naturalismo em Gilles Deleuze, apresento um estudo sobre a imagem-pulsão em Deleuze, que é a proposta do autor para a compreensão do naturalismo no cinema. O conceito de imagem-pulsão é relevante nos estudos de Deleuze, porque é uma proposição que dialoga com temas fundamentais do pensamento do autor, como a pulsão de morte, a sintomatologia, o desejo e o corpo sem órgãos. Por outro lado, penso que também é relevante para os estudos de naturalismo, devido à proximidade que apresenta com teses de outros autores contemporâneos, como David Baguley (1990), Yves Chevrel (1993), Jacques Rancière (2009) e Fredric Jameson (2015). Neste capítulo, faço um estudo de cunho genealógico, mostrando que o conceito de imagem-pulsão reúne o pensamento de Deleuze sobre o naturalismo e a pulsão de morte dos anos 1960, com a crítica à teoria das pulsões que erigiu nos anos 1970 junto a Félix Guattari.
Em O pensamento naturalista, eu coloco em diálogo algumas das principais características atribuídas ao naturalismo, como a transparência, a sensorialidade, a tragicidade e a objetividade. O texto é conduzido alternando expressões do naturalismo na literatura do século XIX e no cinema brasileiro do século XXI, incluindo uma abordagem comparativa de críticas a obras de ambos os períodos. O encerramento do texto aponta para um dualismo que parece ser constitutivo do naturalismo, qual seja, a tensão entre a objetividade do mundo degradado e a subjetividade do olhar que só consegue ver o mundo em degradação.
Em Filmes que pensam a impotência do pensamento, analiso a proliferação de personagens comentaristas de diversas ordens, cujas teses são enunciadas explicitamente, mas que se revelam risíveis, doentia e passivas no enfrentamento das doenças do mundo. A palavra nos filmes alterna-se entre a comunhão com a doença do mundo e o testemunho passivo da inevitabilidade da degradação. Dessa maneira, alguns cineastas utilizam o pensamento-cinema como forma de investigar a impotência do próprio pensamento diante das inevitabilidades degradantes o corpo e do tempo. Um risco que sobrevém com tamanha impotência é a crise da política e a emergência do terrorismo, linha de investigação que foi aberta em Cronicamente inviável e Quanto vale ou é por quilo?.
Em Mundos e submundos naturalistas, teço uma mirada transversal, destacando a relação entre mundos e submundos naturalistas, com ênfase na concepção de espaço e de personagem nesses filmes. Seguindo a tradição naturalista, espaço e personagens são indissociáveis: normalmente os personagens não “tomam consciência” e quase nunca têm autonomia para contrapor-se ao espaço em que vivem. Já o submundo naturalista é uma força obscura, pouco formada, que está na imanência dos mundos naturalistas. Eventualmente, o submundo é figurado de modo direto, mas muitas vezes é figurado por meio de uma “figuração negativa”. Nesse sentido, os filmes naturalistas herdam a dificuldade de figuração que constitui a pulsão de morte e o “absoluto” inapresentável.
Em Cláudio Assis e a imagem que faz sintoma, realizo o único ensaio focado em apenas um cineasta. Além disso, é aquele com maior recorrência de entrevistas, seguindo a tradição da Teoria de cineastas.[xviii] No texto, apresento a especificidade da imagem que faz sintoma, uma estratégia que difere de imagens que visam tecer diagnósticos na interpretação de realidades. Produzir sintoma com a imagem, em Assis, passa pela conjugação de signos visando ao desconforto, com signos visando à satisfação. Nessa sintomatologia, entretanto, o excesso de satisfação também traz o risco de retroalimentar o doentio regime de signos que os filmes teriam vindo renovar.
Ao longo do livro, distribuídos em diversos ensaios, existem sete itens classificados como [Além do naturalismo n._] e sua abreviação [Além… n._]. Eles mostram aspectos de filmes do mesmo período que procuram situar-se no além do naturalismo. A ideia de um além evidencia que esses filmes possuem alguma relação com o naturalismo, mas que se afastam de suas premissas: há filmes realizados por cineastas que anteriormente haviam se aproximado do naturalismo (Os inquilinos, Febre do rato); outros com naturalismo em dispersão, que se situam em uma zona tensa, aproximando-se, mas buscando se afastar do naturalismo (Árido movie, Deserto feliz, Os inquilinos); e há, ainda, Madame Satã, que se debruça sobre uma temática que também interessou ao naturalismo, qual seja, a vida e a sexualidade em regiões periféricas com habitações populares compartilhadas, mas que foge da visão entrópica tipicamente naturalista. Nesse sentido, quando filmes procuram estratégias com base em corpos que se desejam, que tomam consciência, que se deslocam, que recorrem à palavra ativa na formação de comunidades, podemos falar em dispersões além do naturalismo.[xix]
3.
Frequentemente me deparei com questões a respeito da relação entre os filmes sobre os quais me debrucei nestes ensaios e obras de outras épocas que também pensaram a degradação, sobretudo do Cinema Novo e do Cinema Marginal. Embora tenha ficado tentado a adotar uma metodologia comparativa para responder a essa problematização, fui continuamente postergando o desafio. Não gostaria de fazer comparações apressadas e perder as especificidades que cada uma dessas gerações possui. Penso que resta, portanto, um trabalho sistemático a ser feito no sentido comparativo, com o cuidado de não submeter a diversidade dessas cinematografias a concepções genérica se empobrecidas.[xx]
Outro método que o leitor pouco encontrará nesses ensaios é o taxonômico, de classificação de signos.[xxi] É frequente que pesquisadores e pesquisadoras sintam a necessidade de tecer delimitações entre diferentes tipos de naturalismos e de realismos, sobretudo para afirmar as especificidades de uma atualização específica – novos realismos, novos naturalismos – muitas vezes adicionando algum adjetivo (naturalismo mágico, realismo sujo etc.) que venha a singularizar termos originalmente abrangentes. Embora essa estratégia fosse possível na minha pesquisa, ela não chegou a ser implantada. Talvez a formulação de um conceito agregador pudesse atribuir força e facilitar a propagação do pensamento aqui expresso. Designações como “Naturalismo de degradação”, “Naturalismo entrópico” e “Naturalismo dos anos 2000” poderiam, eventualmente, ser adequadas, mas não chegaram a ser testadas e debatidas.
4.
Como finalizo esta apresentação em março de 2021, não poderia deixar de notar que a tese da pulsão de morte é recorrentemente utilizada para explicar a inércia e a satisfação que o poder atual no Brasil sente com todo esse processo de “desligamento” que vai consumindo as instituições e sacrificando a vida da nossa população. Nesse sentido, é como se estivéssemos sendo governados por personagens naturalistas que tanto expressaram a força da pulsão de morte em ação. É como se o poder estivesse sendo exercido pelo ex-policial militar hipócrita e estuprador de Latitude zero; operacionalizado pelos milicianos de Contra todos; financiado pelo mercante que negocia corpos em O cheiro do ralo; sustentado pelas comunidades doentias de Deserto feliz, Árido movie e Baixio das bestas.[xxii]
O naturalismo questionou a eficácia do pensamento diante das forças da matéria bruta dos corpos e suas pulsões. Passados alguns anos, deparamo-nos com um anti-intelectualismo como política de Estado, uma das marcas mais notáveis dos agentes que exercem e sustentam o poder contemporâneo no Brasil. Ocorre de vermos, nesses agentes, as características essenciais de personagens que povoaram os filmes naturalistas do início dos anos 2000.[xxiii]
A mesma crítica feita neste livro aos filmes naturalistas poderia ser direcionada a algumas interpretações que só veem pulsão de morte no exercício do poder contemporâneo. Não podemos esquecer que a morte é uma política, uma afirmação inscrita em um regime muito concreto, cujo poder foi construído historicamente para desejar justamente isto, a morte de tantos, a perpetuação de alguns.
5.
Os ensaios aqui presentes problematizam uma série de questões, mas deixam muitas outras a serem contempladas a respeito do naturalismo no cinema brasileiro dos anos 2000. O tema é amplo e se abre em questões estéticas, narrativas, filosóficas, históricas, sociológicas, antropológicas, psicológicas etc.
Penso que permanece a necessidade de colocar esse cinema em perspectiva comparada com outras expressões do cinema brasileiro; seria o caso, também, de aprofundar o vínculo sociológico e antropológico do cinema naturalista com as concepções tristes e negativistas da brasilidade; ou, ainda, de propor as relações que o naturalismo e suas dispersões possuem com o cenário econômico e macropolítico do Brasil nos anos 2000. A emergência do naturalismo dos anos 2000 coincide com um período de avaliação da brasilidade por força dos 500 anos de chegada dos colonizadores, ao passo que a sua dispersão coincide com a emergência da esquerda mobilizada e esperançosa ao poder, e igualmente com a época de maior crescimento econômico do país no final da década.
Em cada um dos ensaios aqui inseridos emergem modos complementares de conceber e trabalhar sobre um elemento trágico de difícil apreensão pela imagem e pela palavra. Nesse sentido, o que vemos é uma profusão de expressões que parece resultar da dificuldade de chegar ao nome adequado, dificuldade esta que, na minha visão, é fruto constitutivo do elemento que está em jogo. “Cronicamente inviável”, “tempo que engole tudo”, “o cheiro do ralo”, “contra todos”, “violência dentro de nós”: são nomes e expressões proferidos em filmes, títulos, prólogos, monólogos, declamações, entrevistas de cineastas. Penso que todos os nomes são de certo modo adequados e inadequados. Adequados porque mostram abordagens possíveis e revelam aspectos importantes da questão. Inadequados porque se colocam por princípio em um universo “aquém” para a compreensão de uma força “além”, tão profunda quanto inabalável.
Nesses ensaios procurei seguir o estilo de Deleuze em seus livros de cinema, no sentido de não encarar o pensamento das imagens como algo a ser combatido, mas a ser compreendido em seus múltiplos agenciamentos.[xxiv] As imagens naturalistas jamais condensaram os meus desejos, tampouco o que penso a respeito do cinema e da vida. Jamais me senti contemplado por qualquer dos filmes aqui analisados. Eu me senti, antes, incomodado, desafiado e até insultado. Existe uma distância entre esses filmes e o vitalismo com que insisto em compreender o cinema e a vida.
O modo com que o naturalismo encara o desconhecido organiza–se na forma de um sem-fundo fora do nível do vivido, também chamado de pulsão de morte, que atua pressionando e condenando os corpos a uma existência animalesca e destrutiva. Poderíamos estabelecer outras acepções de pulsão de morte, mas elas não seriam a pulsão de morte do naturalismo e das imagens que povoam esta publicação.
É essa concepção, tão íntima e tão social, que está em jogo. Se posso conhecer hoje o estranhamento que essas imagens me provocaram, é pela distância entre o vitalismo que insisto em crer e o regressivismo que elas insistem em testemunhar.
*Cristiane Freitas Gutfreind é professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
*Bruno Leites é professor do Departamento de Comunicação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referência
Bruno Leites. Cinema, Naturalismo, Degradação: Ensaios a partir de filmes brasileiros dos anos 2000. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2021.
Notas
[i] Como afirma Andrew Sarris, em Film: the Illusion of Naturalism, “O naturalismo no cinema é quase um reflexo da própria mídia. O teatro nasceu do ritual; o cinema, da reportagem. Consequentemente, o termo ‘cinema naturalista’ é quase tautológico” (1968, p. 110, tradução nossa). A reflexão sobre o naturalismo inerente à câmera remete-nos, também, ao célebre texto de Charles Baudelaire (2007)a propósito do Salão de 1859, O público moderno e a fotografia, que denuncia o naturalismo da fotografia e sua influência nas artes do período. Luiz Nazario (2017), em O naturalismo no cinema, critica a abordagem “ontológica” sobre o naturalismo cinematográfico.
[ii] Em O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, Ismail Xavier (2005) associa cinema clássico e naturalismo, inclusive devido à utilização da “decupagem clássica”, que busca esconder o gesto da montagem com transições imperceptíveis. Em Rios, pontes e overdrives: trânsito e a (de)composição do espaço em Amarelo Manga, Ramayana Lira (2012) caracteriza o naturalismo comoa reunião paradoxal entre a busca por um regime de transparência e o interesse pelo informe,“ex-cretado das ruínas”. Em The early naturalist cinema: mass media and painting traditions, Gabriel Weisberg (2010b) inclui o cinema naturalista na tradição da “ilusão de realidade”, que havia florescidono século anterior.
[iii] Em O retorno do artifício no cinema brasileiro, Denilson Lopes procura apontar um caminho “distinto da recorrência naturalista, interessada em pensar o artista como observador, cronista e fotógrafo da realidade e a arte como documento da realidade ou janela para a realidade”. Para Lopes, as imagens do sertão e da favela, sínteses do espaço público tanto no Cinema Novo quanto na Retomada seriam, nesse sentido, fiéis “ao peso do Naturalismo em nossa tradição literária” (Lopes, 2007, p. 102).
[iv] A propósito do “Naturalismo de abertura”, Ismail Xavier afirma que uma das suas principais características é a intenção de revelar uma “verdade” submersa na realidade, associada a uma narrativa apoiada em “fórmulas tradicionais”: “O naturalismo aparece, então, como estratégia sedutora do espetáculo e como marca de autenticidade, de ousadia, na apresentação de dados”. Dentre os filmes do “Naturalismo de abertura”, destaque para a tendência do “policial-político”, vista em Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1976) e Pixote, a lei do mais fraco (1980), entre outros (Xavier, 2001, p. 112-114).
[v] A relação entre naturalismo e “fórmulas tradicionais” ou “gêneros narrativos bastante estratificados em suas convenções de leitura fácil”, aparece em dois momentos em que Ismail Xavier aborda o naturalismo em sua obra, seja para relacioná-lo com o cinema clássico de Hollywood, seja para caracterizar o “Naturalismo de abertura” emergente no cinema brasileiro do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 (Xavier, 2005, p. 41; Xavier, 2001, p. 112-114). Gabriel Weisberg também relaciona cinema naturalista e mídia de massa, que no século XIX estaria caracterizada nos Salões de arte em que as pessoas comuns se viam representadas (Weisberg, 2010a, 2010b). A relação do naturalismo com produções de menor apuro estético é uma percepção recorrente no contexto da realização audiovisual – por exemplo, o diretor de fotografia Adriano Goldman (2020) explica o tom de “realismo realçado” que realizou na série The Crown como um antídoto para o naturalismo “mundano”: “Foi mais difícil manter o mesmo tom de realismo realçado das séries anteriores sem cair num naturalismo mais fácil e mundano”.
[vi] Em O choque do real: estética, mídia e cultura, Beatriz Jaguaribe observa vertentes que tendem ao realismo e outras que tendem ao naturalismo. Para a autora, “enquanto os personagens ‘realistas’ possuem conflitos de identidade, dobras de consciência e incertezas sobre a própria natureza do‘real’, os personagens naturalistas atuam sem maiores questionamentos, porque são impulsionados por um arcabouço de desejos que os determina” (Jaguaribe, 2007, p. 122).
[vii] É a visão de Luiz Nazario: “De maneira simplificada, os filmes naturalistas seriam aqueles nos quais os artifícios do realismo cinematográfico foram propositadamente exagerados para enformar uma visão pessimista, mórbida e determinista da vida” (Nazario, 2017, p. 527).
[viii] Fernão Ramos (2004) identifica um “naturalismo cruel” em filmes brasileiros dos anos 1990 e 2000, no sentido de uma forma de representação constante em um diversificado leque de filmes brasileiros do período, que desejaria acentuar os “aspectos bestiais e repulsivos da vida”, com o objetivo de incomodar, agredir e provocar constrangimento no espectador. Vale mencionar, também, o aspecto excessivo da literatura naturalista, como destacado por Keith Newlin (2011a) em Introduction: thenaturalistic imagination and the aesthetics of excess.
[ix] Nesse sentido, cf. American Literary Naturalism and Film Noir (Jaeckle, 2011); Cain, Naturalism andNoir (ORR, 2000), The cinema of George A. Romero (Williams, 2015), Naturalisme et horreur dansTwentynine Palms (Gural-Migdal, 2009).
[x] Serge Daney (1983) afirmou que este é o mais belo capítulo de A imagem-movimento, e RaymondBellour (2005) recorre às imagens-pulsão para exemplificar o “comovente” método de Deleuze,que produz agenciamentos “constrangedores” e “abertos”. Já Luc Moullet (2011, p. 26) considera o capítulo sobre as imagens-pulsão como “de longe o pior capítulo do díptico deleuziano”, porque teria misturado o calor da pulsão com a frieza da objetividade naturalista, entre outros equívocos. Sobre a marginalidade da imagem-pulsão em estudos deleuzianos, Roberto De Gaetano (2015) atribui à grande diversidade que compõe o conceito, o que, segundo ele, costuma causar estranhamento, embora seja também uma potência.
[xi] A esse respeito, inclusive, Jacques Rancière (2009) apresenta a tese de que o inconsciente estético produzido pela literatura do século XIX, tendo Émile Zola como um dos expoentes, teria sido a base do inconsciente psicanalítico e, posteriormente, do conceito de pulsão de morte.
[xii] O título da obra de David Baguley é Naturalist fiction: the entropic vision (1990). A versão francesa, publicada em 1995, foi titulada como Le naturalisme et ses genres (1995). Para autores que expandem a visão de naturalismo proposta por Baguley para a literatura brasileira, recomendo o trabalho de Leonardo Mentes e Pedro Paulo Catharina, como Le naturalisme brésilien au pluriel (2019), entre outros artigos.
[xiii] Por exemplo, em Cronicamente inviável e O cheiro do ralo. Para um estudo sobre o naturalismo cômico na literatura brasileira, cf. Epopeia da impotência humana: naturalismo, desilusão e banalidade no romance brasileiro do final do século XIX (Mendes; Vieira, 2012).
[xiv] O “tempo que engole tudo” está descrito na poesia recitada no preâmbulo de Baixio das bestas; “Cronicamente inviável” é título de filme – a obra se esforça para dar corpo ao enunciado por meio de inúmeras situações degradantes. A “tendência à destruição” é descrita no trecho dito pelo personagem narrador de Cronicamente inviável quando este enuncia a tese sobre a natureza humana. A “violência dentro de nós” é o motor de todas as violências que ocorrem em Amarelo manga, segundo entrevista do cineasta (Assis, 2003). Uma reflexão sobre estas e outras qualificações consta no quinto ensaio desta publicação, Filmes que pensam a impotência do pensamento.
[xv]Febre do rato é um filme sutilmente posterior, lançado em 2011, mas permanece na coleção, porque foi produzido pelo cineasta que mais havia se aproximado das teses naturalistas e porque possui relevantes diálogos com os filmes naturalistas no que tange à concepção de um corpo desejante e à atribuição de função ativa à palavra.
[xvi] Freud descreve a pulsão de morte como uma força que pressiona os corpos vivos para o “retorno ao inorgânico”. Cf. Além do princípio de prazer (Freud, 2019).
[xvii] Neste livro, não há investimento em diferenciar “naturalismo no cinema” e “naturalismo do cinema”. O pensamento naturalista se atualiza em diversos campos (cinema, literatura, teatro, pintura, fotografia), sempre com especificidades atribuídas pelas formas de expressão e pelos desejos que movem os realizadores. Em todos os pontos necessários procuro deixar claro quando me refiro a características gerais do pensamento naturalista e quando me dirijo às suas expressões específicas, normalmente o cinema brasileiro dos anos 2000 e a literatura naturalista do final do século XIX.
[xviii] Sobre a Teoria de cineastas, cf. Fazer a teoria do cinema a partir de cineastas – entrevista com Manuela Penafria (Penafria, 2020) e Apresentação do dossiê Teoria de Cineastas (Leites; Baggio; Carvalho, 2020).
[xix] A estratégia de ver filmes e excertos que estão no além do naturalismo, mas em diálogo com ele, é favorecida por uma visão mais restrita de naturalismo, associada à pulsão de morte, que se afasta de algumas concepções mais ampliadas que citei anteriormente. A inspiração veio de uma análise de Deleuze (1985, p. 169; 2007a, p. 126) acerca da obra de Luis Buñuel. O autor afirma que Buñuel supera o naturalismo “de dentro”, atingindo as imagens-tempo ao explorar repetições que foram apresentadas como mundos simultâneos, como em O discreto charme da burguesia (1972). Não é ocaso de falar em mundos simultâneos para os filmes aqui referidos, mesmo para Quanto vale ou é por quilo?, uma vez que o terrível mundo paralelo escravocrata está impregnado no mundo naturalista,condenando-o a ciclos que só fazem a miséria se repetir.
[xx] Se empreender este trabalho no futuro, pensarei em investigar algumas linhas que me parecem relevantes: a ideia de miserabilismo como força e potência na estética da fome de Glauber Rocha(2004), em comparação com o miserabilismo bestial dos filmes com influência naturalista; as diferenças que existem entre a estratégia de produção de alegorias, recorrente no Cinema Novo e no Cinema Marginal, e a de “visualização de realidades contemporâneas”, recorrente nos filmes aqui reunidos; a estética de fragmentação característica de muitos filmes do Cinema Marginal e do Cinema Novo, algo que pouco vemos no naturalismo e nos filmes aqui pesquisados; a sofisticação técnica e a beleza da imagem que foram valores importantes em parte do pensamento aqui exposto,como o de Cláudio Assis em Amarelo manga e Baixio das bestas, e que parece afastar-se das estéticas do lixo e da precariedade que vemos em parte do Cinema Marginal. Enfim, são hipóteses, não suficientemente formuladas, mas que talvez tenham força para se desdobrar em eixos de futuros trabalhos com abordagem comparativa.
[xxi] Exceção feita à proposta de classificação que consta em Filmes naturalistas e suas dispersões, em que indico a existência de algumas tendências dentre os filmes analisados nesta publicação.
[xxii] Por exemplo, em A morte e a morte: Jair Bolsonaro entre o gozo e o tédio, de João Moreira Salles (2020). A cena do desmatamento em Cronicamente inviável antecipa a análise de João Moreira Salles sobre o poder atual: “Dos muitos canteiros de obra onde trabalham as turmas bolsonaristas de demolição, nenhum é mais espetacular do que a Amazônia. Ali se destrói sem pôr nada no lugar, em troca de nada – é o verdadeiro manifesto político do movimento”. O prazer e o seu encantamento com a morte, tão importantes no naturalismo (por exemplo, em Cláudio Assis), também dialogam com as teses da pulsão de morte contemporânea: “É algo anterior a toda convenção, um impulso que corre por baixo, mais primitivo, mais perturbador, e que, no entanto, quando se manifesta,parece lógico: a morte o excita. […] O que provoca regozijo é o corpo baleado no chão, o traficante executado, o homossexual espancado, a moça trans agredida, o esquerdista desacordado, o indígena ferido” (Salles, 2020).
[xxiii] Falo, evidentemente, de personagens e não de cineastas. A crítica ao naturalismo frequentemente associou os autores com os temas sórdidos que eles “estudam”. O fato de o naturalismo portar uma visão de mundo, dita “visão entrópica” por Baguley (1990), não redunda em uma confusão entre realizador e personagem. Exploro essa questão no ensaio O pensamento naturalista.
[xxiv] É conhecida a combatividade de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo e Mil platôs contra conceitos da psicanálise, como o de pulsão de morte. No entanto, essa combatividade cede lugar a outro tipo de abordagem nos livros de Deleuze sobre o cinema. Essa questão fica evidenciada quando Deleuze retoma o conceito de pulsão em A imagem-movimento para pensar o naturalismo no cinema e sua obsessão pela negatividade. Cf. Imagem-pulsão, o naturalismo em Gilles Deleuze.