Por PIERO DETONI*
A vinculação do presentismo com o capitalismo de marca neoliberal
1.
A Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais (SECULT) lançou, em 2022, o projeto O ano da mineiridade, cujo objetivo foi a promoção do turismo no Estado visando desdobramentos econômicos para os seus municípios, como a geração de empregos e de renda a partir daquilo que tem sido chamado de “economia criativa”.
De imediato, na aba de notícias do site da referida Secretaria, encontramos a definição orientadora que amparou a iniciativa do governo mineiro: “Um sotaque único, uma cozinha apreciada e a já reconhecida hospitalidade de um povo”. Essas seriam, então, as marcas da identidade do Estado e, consequentemente, dos/as mineiros/as. A efeméride foi criada, dessa maneira, para celebrar os elementos identitários aludidos, “que compõem essa assinatura mineira”.
A SECULT desejava, assim sendo, tornar evidentes “as tradições, os costumes e as histórias das muitas Minas Gerais”. Ainda no site da Secretaria vemos mais abaixo uma tentativa de conceituação da mineiridade, que já passa a não mais trazer aquelas “muitas Minas Gerais”, expressão mais de apelo retórico, pois se buscava não outra coisa do que “celebrar as raízes do povo mineiro”. Vejam bem que o plural vai cedendo espaço para o singular. A SECULT pretendeu, com este projeto, “evidenciar o sentimento de ser mineiro”. O secretário da pasta, Leônidas Oliveira, teria afirmado o seguinte para a encarregada de noticiar o evento em modo jornalístico, ocorrido no dia 23 de março, nas dependências do Palácio das Artes, em Belo Horizonte: “o lançamento dessa iniciativa tem por objetivo despertar o sentimento de orgulho do povo mineiro”.
Após tomar conhecimento do projeto, passei a procurar na internet possíveis desdobramentos da iniciativa, e como ela teria sido recebida pelas pessoas. Encontrei algumas sinalizações no site Minas, que tem a intenção de fomentar o turismo neste Estado. Ali encontrei um texto denominado Ser mineiro: celebre o ano da mineiridade. Há, nele, o reforço do programa do governo de comercializar a identidade de Minas Gerais, que mesmo “sendo muitas” traria um núcleo invariável: o sotaque, a simplicidade, a cozinha mineira e, claro, a hospitalidade. Este último aspecto percebido como um traço identitário do mineiro, algo preservado no passado da mineiridade, se transformará na grande commodity para a promoção do turismo na região.
Ora, nada como uma suposta “boa hospitalidade” como atrativo para os turistas. Romeu Zema, governador do Estado, parece saber muito bem sobre isso, como percebemos em sua fala no dia do lançamento da efeméride: “Somos um povo diferenciado, e temos orgulho disso. Somos acolhedores, nossas cidades históricas e os outros atrativos são uma força enorme para atrair mais turistas e valorizar ainda mais nossas riquezas”. Continuando no texto do site Minas, há a parte reservada ao chamado “jeito mineiro”, que conjugaria “jeito acolhedor”, “mesa de café”, apreço à “música mineira” e um modo de falar conhecido como “mineirês”.
Logo em seguida há uma imagem com a legenda: “Essa foto tem a cara de Minas, né? A casinha simples, a xícara de café e o mais importante de todos, o nosso pão de queijo”! Há um relato em seguida do motociclista Mauro Assumpção, que faz fortalecer esse núcleo identitário: “Ser mineiro é saber ser. Eu, como um bom, sou, além de mineiro, motociclista e apaixonado pelos caminhos de Minas, vou sempre, porque a gente faz questão de voltar. Ser mineiro é ser assim, simples”. Não se sabe se essas falas foram maquiladas intencionalmente e acopladas ao site, como estratégia de marketing, ou se são relatos espontâneos, pois a associação com projeto da SECULT é totalmente direta.
Os produtos da cozinha mineira também são colocados à venda aos possíveis interessados pela mineiridade: queijo mineiro, pão de queijo, tutu de feijão, frango com quiabo, feijão com tropeiro, ora-pro-nóbis e doce de leite. Fogão de lenha e afeto seriam os componentes da cozinha da mineiridade. Cultura material e imaterial são francamente comercializadas. Francisco Silveira deixou isso evidente em seu depoimento no site Minas: “Quem quer conhecer a essência de Minas Gerais não pode deixar de conhecer uma cozinha de fazenda onde a comida seja servida no fogão de lenha. Onde o café é coado no coador de pano e servido em xícara esmaltada. E entre uma fatia de queijo Minas e outra, a prosa se desenrola e a essência de Minas Gerais é sentida na acolhida e no calor do cafezinho com uma belíssima vista do mar de morros mineiros por uma janela de madeira”.
O ser mineiro é acionado, em modo de adição, outra vez através do depoimento de Tailane Araújo: “A terra do pão de queijo e das delícias caseiras, as cachoeiras maravilhosas, cada paisagem mais linda que a outra. Mas uma lembrança em especial é a de sentar no rabo do fogão a lenha e comer os bolinhos de chuva feitos pela mãe ou avó, e também uma lembrança muito marcante é dos casarões antigos de assoalho”.
Estamos diante, então, da mineiridade rediviva, que foi elaborada, primeiramente, na Primeira República e no Estado Novo. Uma imagem síntese do “ser mineiro”, cujo objetivo seria o de unificar e de compartilhar unitariamente costumes e valores em comum, resultando na assunção de uma identidade própria para o estado e para o seu povo. O que se desejou, naquele contexto, foi a elaboração de um discurso coeso que especificasse Minas Gerais no interior da nova ordem republicana, algo que acarretou efeitos discursivos acentuados, que passaram a ser assimilados e subjetivados pelas pessoas na duração, ao ponto de receber a conceituação de mineiridade.
Essa imagem-síntese relacionava-se com a ideia de formação de cidadãos republicanos e patrióticos (modernos). Evidentemente, uma esfera republicana bastante excludente em termos de direitos e de elaboração cidadã. Agora há, porém, uma mutação desse interesse primeiro: a mineiridade voltada para os consumidores neoliberais (presentistas). A noção de pátria, de enraizamento a um lugar, é reconfigurada para um horizonte no qual a sua intenção passa a ser a da intensificação de valores conservadores, que já estavam presentes no conceito republicano de pátria, como uma espécie de escapismo, ou de compensação, para um mundo cuja ordem do tempo aponta para um futuro incerto, algo captado pela racionalidade neoliberal, possibilitando, então, usos mercadológicos do passado.
2.
A mineiridade tornou-se, com o tempo, subjetivada, passando do imaginário para a própria compreensão do real, implicando formas que ativaram práticas e valores sociais, políticos e culturais. Ressaltamos a materialidade dos discursos da mineiridade na conformação de modos de pensar e de sentir, cristalizando uma identidade mineira. Walderez Ramalho argumenta, ao analisar os textos-matriz e construtores da discursividade da mineiridade, que se trata não de outra coisa do que o estabelecimento de padrões identitários fixos ou essencialistas: “o essencialismo define a identidade de um grupo cultural pela ideia de ‘essência’, isto é, um conjunto de características físicas, psicológicas e sociais, o qual se manteria inalterável ao longo da história e formaria o ‘caráter coletivo’ de um ponto de vista externo e objetivo” (RAMALHO, 2015, p. 250).
A questão pode ser compreendida, de modo complementar, a partir das reflexões desenvolvidas por Paul Ricoeur sobre a identidade (1988). Mesmo que o filósofo se preocupe, mais especificamente, com a identidade propriamente pessoal, projetamos a sua teorização para o âmbito social. O problema da identidade estaria, para o estudioso, ligado aos seus dois usos possíveis. O primeiro estaria disposto no plano da chamada mesmidade, caracterizada pela identidade-idem, que poderíamos entender como uma identidade que se mantém, em que não se percebe alterações. É neste polo que identificamos a identidade mineira vertida conceitualmente enquanto mineiridade. Este modo de elaboração da identidade, como no caso em tela, seria diferente da ipseidade, ou identidade sobre si. Ela apreende, de maneira diferente, a identidade através do signo das transformações, quer dizer, no sentido das mutabilidades junto ao plano temporal.
A mineiridade como mesmidade se caracteriza pela continuidade de traços que identificam Minas Gerais e os mineiros de maneira essencializada. Um caráter, portanto, de distinção fixo. Uma unidade coesa e inquebrantável. A mudança, própria da ipseidade, deveria ser apaziguada, dado que se tornaria ameaçadora à unidade daquela comunidade. Walderez Ramalho nota que o discurso da mineiridade possui, correlatamente, a intenção de justificação do status quo, algo que se transforma em dispositivo de resistência no que diz respeito às mudanças sociais.
Para tanto, Walderez Ramalho descreveu os elementos semânticos da mineiridade e como foram capazes de dirigir a essencialização identitária: “caráter coletivo”, “tradição verdadeira”, “raça”, “espírito mineiro”, “herança histórica” (RAMALHO, 2015, p. 250). O conteúdo desses elementos discursivos aponta, portanto, para a conservação do passado e para o controle das mudanças, condição para a coesão identitária essencialista através de estratégias que acionam usos políticos daquele. A intenção era, contudo, moderna, pois essa conservação identitária atrelava-se ao próprio progresso, o que fazia a mineiridade lançar-se como projeto político para o futuro.
Walderez Ramalho fez a descrição de um verdadeiro arquivo de enunciados que informam a identidade fixa da mineiridade ao longo do tempo. Diversos autores foram mobilizados por ele, que se atentou com esmero aos conteúdos semânticos que informaram esse modelo identitário: Diogo de Vasconcelos, Nelson de Sena, Oliveira Viana, João Camilo de Oliveira Torres, Alceu Amoroso Lima e Gilberto Freyre. Em tais textos produzidos por esses intelectuais, que se voltaram para a realidade social e passaram a habitar o imaginário coletivo da mineiridade, há a prevalência de disposições políticas e sociais autoritárias, sendo que tal postura dos autores acabou se projetando para o suposto caráter dos mineiros.
Isso levou Walderez Ramalho a perceber no conteúdo das expressões semânticas que informavam a identidade mineira uma “visão conservadora de mundo, que enfatiza o tradicionalismo e a marca do equilíbrio conciliador, temas estruturantes do imaginário da mineiridade” (RAMALHO, 2015, p. 260). Além disso, essa disposição levou Minas a ser considerada, em meio às aceleradas mudanças do tempo moderno, a aparecer como “símbolo da tradição”, das “mudanças sem ruptura”, da “conciliação política”. Arremata o estudioso (2015, p. 261): “Em contraposição aos centros modernizadores do país, Minas representaria a estabilidade, a permanência e a conservação da nacionalidade”.
Esses movimentos, apresentados nessa lógica discursiva, abriram caminho para o estabelecimento da mineiridade, entendida através da noção de essencialismo identitário. Vários são os elementos discursivos mobilizados para tanto, todos eles rastreados por Walderez Ramalho. A unidade identitária da mineiridade pode ser apreendida pelos termos caráter, povo, tradição, alma/espírito mineiro, mineiro médio – expressões, cabe assinalar, sempre singularizadas. A mineiridade orienta-se através do seu caráter de imutabilidade, de mesmidade, de uma abstração totalizante, que não abarca a heteroglossia de vozes, as diversidades regionais dos atores e das atrizes sociais, os passados não-ocidentalizados, bem como as assimetrias sociais e econômicas que compõe o Estado.
A estratégia era moderna: evocar o passado, entender o presente e projetar o futuro. Há, assim, a formulação da identidade fixa, a naturalização das desigualdades e o estabelecimento dos estereótipos. Essa disposição será, de qualquer maneira, rediviva em modo presentista.
3.
Deve ser dito, em todo caso, que O Ano da mineiridade é uma efeméride, tendo um sentido de celebração. Em tese, uma celebração do passado mineiro. Em latim celeber significava algo repetido muitas vezes. Por conta de uma efeméride ter a marca da efemeridade ela era sempre retomada todos os anos. Diferentemente do Ano da mineiridade, uma grande celebração do consumo do passado, que por isso deve ser mais rápida ainda. Houve apenas um ano para esse evento. Por isso, não parece ser uma comemoração no sentido de exemplaridade (antigo) e de elaboração projetiva do passado (moderna), mas uma celebração cujos efeitos tenderiam para o imediato (presentista).
Podemos nos aproximar do problema em tela a partir daquilo que Andreas Huyssen (2000) chamou de memory boom, sendo um indício de formas de experimentação do tempo contemporâneo. O autor localizou essa situação ainda na década de 1970. Vários movimentos invocavam a memória: a restauração historicizante de centros urbanos, cidades-museus, e paisagens inteiras; empreendimentos diversos de patrimonialização; a moda retrô; a comercialização da nostalgia; a automusealização através da câmera de vídeo, literatura memorialística; a difusão de práticas de memória nas artes plásticas; o aumento do consumo de documentários históricos.
“Desde então, as indústrias ocidentais da cultura juntaram um número cada vez maior de passados num presente simultâneo e sempre mais atemporal: modas retrô, móveis retrô autênticos, museologização da vida cotidiana através de câmeras filmadoras, Facebook e outras mídias sociais, reencontros saudosistas de músicos de rock mais velhos, etc” (HUYSSEN, 2014. p. 15). Os apontamentos de Huyssen se fazem importantes para compreendermos a efeméride do Ano da mineiridade e os modos de experimentação do tempo enredados a ela, que acreditamos pautarem-se, concordando com François Hartog, pelo presentismo.
Acreditamos que a descrição da temporalidade presentista realizada pelo historiador francês, em que se percebe os seus desdobramentos através dos problemas da memória, do patrimônio e da comemoração, nos abra margem para o entendimento do consumo do passado da mineiridade. O presentismo é, conforme assimilamos, uma situação na qual o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, dimensões trans-históricas do tempo, para nos valermos do argumento de Reinhardt Koselleck (2006), passa a ser mediado por um presente imediatista. Essa não duração do presente imprime dois movimentos simultâneos: a perda da experiência e das articulações de sentido do passado e a desestabilização do futuro, impedido de ser elaborado como antecipação.
É uma espécie de motor em alta velocidade, mas que não se desloca, como numa arrancada de um veículo imóvel, que gera uma disposição centrípeta, para onde são lançados passado e futuro. A imagem do redemoinho proposta por Andreas Huyssen (2000, p. 30) parece adequada. Cuidaremos, aqui, dos efeitos do presentismo em se tratando da perda comunicativa do passado, que, então, passa a ser coisificado como possibilidade de consumo, como no caso da mineiridade. Segundo apontou Hartog: “O capitalismo, hoje, é presentista. Mais do que era no capitalismo industrial” (HARTOG, 2000, p. 258).
4.
Retornando ao site de fomento de viagens Minas, vemos na página inicial uma tela passando várias frases, entre elas a seguinte: “Aqui a cultura é livre, você é livre para escolher o seu caminho e viver experiência libertadoras”. Estamos, pois, diante de um horizonte próprio ao neoliberalismo, cenário por onde haverá o consumo da mineiridade. No capitalismo tardio, os consumidores, portadores da livre iniciativa, são os próprios produtores daquilo que consomem.
O projeto da SECULT, movimentado pelo site Minas, não oferece um produto massificado. Pelo contrário: os turistas terão a oportunidade de consumir a mineiridade de maneira livre e individualizada, tornando privadas e libertas as suas formas de acesso ao passado. Deve-se oferecer um produto dito original, capaz de propiciar o consumo de um passado genuíno, que é aquele supostamente encontrado na tradição mineira ou na mineiridade. Os turistas acreditam estar comprando viagens não apenas para o Estado de Minas, mas ao próprio tempo passado conservado pela mineiridade e, agora, tornado objeto de consumo.
Em razão disso há a comercialização da mineiridade, pois ela se mostra, como vimos, enquanto algo que representaria uma essência, sendo única e que não mudou, que continua a mesma, logo, passível de valoração econômica, o que justificaria o investimento por parte dos turistas. Quem não gostaria de viver uma imersão real ao passado e estar na presença de experiências conservadas integralmente? Quem não gostaria de sentir o passado, tocá-lo e degustá-lo?
É desse modo que os elementos da identidade presentes na imagem-síntese da mineiridade, que imprimem certa ideia de passado bruto, passaram a ser demandados pelo espectro econômico neoliberal, fazendo aquele passado essencializado tornar-se uma commodity, isto é, uma mercadoria de natureza primária, que serve, não obstante, de matéria-prima para diversas movimentações econômicas, que no caso em questão é todo aquele circuito que abrange o turismo, que vai das companhias aéreas, passa pelas redes de hotelaria e pelos circuitos de gastronomia, chegando ao comércio de artesanatos e de fazeres diversos, entre outros.
Vale notar que a cozinha mineira tem um selo de autenticidade. Aliás, a palavra “autêntico” foi considerada a palavra do ano de 2023 nos EUA. Os turistas podem, dessa maneira, confiar que esse passado, vertido para a gastronomia, é realmente verdadeiro e único. Naquelas imagens que passam na página inicial do site Minas isso fica evidente. Esse passado tornado uma commodity gera formas variadas de consumo da mineiridade, que representa, justamente, um tempo passado autêntico, bruto, cristalizado, por isso valorizado.
Na cerimônia de lançamento d’O Ano da mineiridade, Romeu Zema explicou o que estava em jogo: “a iniciativa de lançar um ano dedicado a mineiridade é uma grande oportunidade para resgatar o orgulho do povo mineiro e fomentar, de maneira mais concreta, as ações turísticas e culturais que possibilitem o fortalecimento da economia mineira”. Como se percebe, a mineiridade, por meio do turismo histórico e do consumo cultural atual, torna-se comercializada; produto.
Lembrando que a mineiridade é uma formulação conceitual, como vimos, que emprestaria uma ideia de passado pautada em seu estado de conservação e na mesmidade da sua identidade. E Romeu Zema continuou a sua fala fortalecendo ainda mais os vínculos entre o passado essencializado mineiro, singular, e a possibilidade do seu consumo: “O turismo e a cultura fazem parte dessa nova trilha de desenvolvimento e nós temos um potencial gigantesco de tornar Minas Gerais um estado ainda mais singular do que já é”.
O que torna Minas Gerais singular, a sua mineiridade, não seria outra coisa do que uma ideia de passado preservado, intocado e capaz de ser redivivo, inclusive, com a possibilidade de ser experimentado e não apenas interpretado. Este é, portanto, o fenômeno presentista do uso mercadológico do passado. Não seria por acaso que, como pode ser visto no site Minas, a nova cozinha mineira seria concebida da seguinte maneira: “Das raízes à contemporaneidade”. O passado é vertido como mercadoria, sendo, então, reificado.
No site Minas, os turistas podem consumir a mineiridade livremente. O consumo é individualizado. O que se preserva é a originalidade da mineiridade. Lá eles podem acessar várias trilhas possíveis para, segundo o site, “se aventurar e refugiar”. Me chamou a atenção a trilha chamada “retrô”. Ao entrar na aba temos a chamada: “De volta ao passado: cinco cidades mineiras para voltar no tempo”. No subtítulo está escrito: “cinco cenários vintages para conhecer Minas Gerais”. Estamos, como se pode perceber, diante do consumo da mineiridade. Vejamos a semântica rastreada por Walderez Ramalho sendo apropriada. O foco seriam “cidades que parecem ter ficado paradas no tempo, que ao visitar parece que voltamos para séculos passados”! Fiquemos com quatro delas.
Primeiro Serra dos Alves: lugar que proporciona “paz”, “conforto” e “te afasta de todo barulho e estímulos do dia a dia”. Se diz que nesta cidade os turistas podem “ser transportados para um passado”, que sem internet e poucos moradores, propiciaria um “reconectar-se consigo mesmo”. Catas Altas “parece ter parado no tempo”. No Serro os turistas podem consumir “as características das vilas setecentistas, estando todo o patrimônio bem conservado”. Mais: “Visitar o Serro é voltar aos tempos coloniais”. Tiradentes: “Não tem como não falar de volta ao passado e conservação do patrimônio sem falar de Tiradentes”.
5.
Seriam muitos os pontos a abordar a partir dos desdobramentos do projeto O Ano da mineiridade: a relação mais ampla com o neoliberalismo do governo mineiro; os impactos comerciais junto às pequenas produções locais, como as artesanais, e como elas interferem no plano do fazer-saber; os perfis econômico-sociais dos turistas; os projetos desenvolvidos que, no próprio âmbito da inciativa, incitaram formas possíveis de desvio crítico, entre tantos outros.
A intenção deste texto é mais pontual, até mesmo por conta do limite de páginas: compreender as lógicas do passado tornado consumívela partir de um horizonte neoliberal. Poderíamos desenvolver o argumento, incialmente, a partir de uma conhecida frase de Walter Benjamin: Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. Uma passagem que é colocada mais para provocar a reflexão após a leitura e ampliar o meu alcance de análise. O que esta frase de Walter Benjamin nos relevaria a partir do caso do consumo neoliberal da mineiridade exposto?
Em minha perspectiva, devemos perceber, como afirmei anteriormente, a mineiridade transformada em mercadoria, logo, ativadora de fetichismo. Teríamos, então, uma disposição que impediria e impossibilitaria os sujeitos, de alguma maneira, de “apreenderem a estrutura social de determinação do valor dos objetos em virtude de um regime de fascinação pela ‘objetividade fantasmática’ (gespenstige Gegenständlichkeit) daquilo que aparece – fascinação vinculada à naturalização de significações socialmente determinadas” (SAFATLE, 2008, p. 181-182).
Assim, o passado tornado mercadoria, e aberto à fetichização a partir de um registro neoliberal, como no caso da mineiridade, reforçaria a situação presentista na qual ele não se apresenta enquanto uma força capaz de invocar experiências e sentidos, de possibilitar uma abertura de entendimento daquilo que se passou, tornando-se instrumento de alienação da consciência, na direção oferecida por Vladimir Safatle, isto é, “(…) no domínio da falsa objetividade da aparência e das relações reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão da totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido” (SAFATLE, 2008, p. 182).
Ora, o que a fetichização da mineiridade sob os horizontes presentistas encobre, em um plano complementar, são os mais diversos modos de violência ocorridos no passado, tornados naturais. Seria a aceitação irrefletida dos passados da escravidão e do colonialismo, por exemplo. O passado ganha, também, ares de unidade, perdendo a sua dimensão de multiplicidade, em que poderíamos ver diversos extratos de tempo em modo de coabitação. Não habita nele as diferenças, mas a identidade mesma, única e fixa – essencializada. Não se vê atores e atrizes sociais, e seus modos de agência, marginalizados, excluídos, subalternizados.
Estão, neste caso, invisibilizados. Passados não-ocidentais, passados-híbridos, passados-imbricados, passados-compostos são uniformizados. O passado deixa de nos comunicar, sendo apenas presença. O presentismo caracteriza-se pela sua efemeridade, o que impede o passado de comunicar e, assim, propiciar interpretações, aberturas de entendimento, críticas. Instituir, então, sentidos.
A essencialização moderna da mineiridade possuía a ambição de lançar-se ao futuro como projeto político hegemônico. Ele fora concebido para as massas, modulando-se como um discurso disciplinador e de controle. Já a essencialização presentista da mineiridade visa o seu consumo imediato. Ela é atomizada, individualizada e privada. Aquele que se volta ao consumo do passado no presentismo neoliberal é o seu próprio produtor, o que oferece uma sensação ilusória de liberdade, de poder vivenciar o passado, de se refugiar nele, de sentir a sua presença, mas que, em último caso, é uma nova forma de dominação – mais sofisticada e sutil. Como produto, tornado mercadoria, se perde a capacidade de ver os seus modos de produção de sentido, fazendo com que aquele que consume se lance à autoalienação e à perda da consciência histórica – ao esquecimento absoluto.
A mineiridade é vendida como um produto autêntico, mas quem a consome não sabe como ela foi produzida, como busquei deixar, aqui, em evidência. Esse processo é realizado pelo próprio consumidor, que agora é ativo e não mais apenas passivo. Apenas um exemplo para tentar tornar mais didática a minha fala. Lembro-me de tardes sentado nas escadas das Igrejas que ficam na Praça Minas Gerais, na cidade de Mariana, e os turistas se divertindo com fotos, com poses as mais inusitadas, no pelourinho ali instalado.
Obviamente que existem formas também múltiplas de presente, outros modos possíveis de estabelecer a dialética entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Não seria o caso de abordá-los por agora. O que nos interessa é, em todo caso, a experiência do tempo, tornada majoritária através da expansão do capitalismo tardio em projeção neoliberal, presentista.
O próprio François Hartog aponta para “presentismos”: “(…) existem presentismos, e não um presentismo único: ele não é o mesmo para todos. Existem os vencedores da globalização, os indivíduos mais flexíveis, conectados, móveis, todos esses termos valorativos, que também se apresentam como imperativos: é preciso ser rápido, ágil etc. Mas isso vale apenas para uma pequena parcela da população. Na outra ponta, estão os muitos perdedores do presentismo, os excluídos desse mundo por conta do seu lugar de residência, do seu nível de estudos, da sua posição social e que se veem, pelo contrário, reduzidos a um presentismo de sobrevivência: um dia após o outro” (HARTOG, 2020, p. 258).
A leitura que Peter Pál Pelbart faz da reflexão sobre o presentismo realizada por Jerôme Baschet nos parece um ponto importante de diálogo para intensificarmos os argumentos de Hartog. Esse “omnipresente” estaria, para os autores, também ligado às dinâmicas do capitalismo, na medida em que ele articula o “culto da velocidade e a repetição do mesmo”. O presente passa a estar imobilizado. Lembrando: nessa maneira específica de articulação da historicidade, tornada majoritária atualmente. “Sob a aparência do novo, é a repetição do mesmo que opera” (PELBART, 2021, p. 117).
Ou seja, o que estamos abordando é a vinculação do presentismo com o capitalismo de marca neoliberal. Essa forma de elaboração da historicidade está, como procurei demostrar, amplamente pautada na dinâmica econômica. O que apresentamos, aqui, é como o passado torna-se mercadoria nesse regime de historicidade. Fetichizado, como no caso do consumo da mineiridade, ele perde a capacidade de o situarmos em termos de retrospecção e de prospecção, quer dizer, aquelas condições mesmas que nos faria ver passados que já foram presentes, logo, abertos às contingências.
Isso é obliterado nos modos de consumo presentista do passado, o que impossibilita, em última instância, relações não reificadas com os passados, interditando, então, modos de abertura para a intervenção critica e para a complexidade subjacente à produção dos seus sentidos.
*Piero Detoni é pós-doutorando em história na UFRRJ.
Referências
HARTOG, François; IEGELSKI, Francine. Tempo, história e historiografia: entrevista com François Hartog. Tempo, Niterói, vol. 26, n. 1, Jan./Abri., 2020.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídias. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
PELBART, Peter Pál. Tempos de Deleuze. Limiar, vol. 8, n. 15, 1º semestre, 2021.
RAMALHO, Walderez Simões Costa. Uma crítica ao essencialismo identitário: a historiografia da mineiridade na primeira metade do século XX. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 18, agosto, 2015.
RICOEUR, Paul. Indivíduo e identidade pessoal. In: VEYNE, Paul (et. al). Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1988.
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
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