Crises estruturais

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Por IMMANUEL WALLERSTEIN*

Devemos evitar qualquer noção de que a história está do nosso lado. Devemos capturar Fortuna, mesmo que ela nos escape

O termo ‘crise’ teve um papel central em diversos debates políticos nacionais durante os anos 1970, a despeito da ampla variedade de suas definições. Nos momentos finais daquele século, ele foi substituído por outro termo, mais otimista: ‘globalização’. Desde 2008, no entanto, seu tom sombrio retornou, e a noção de ‘crise’ voltou subitamente à tona; seu uso, porém, é tão mais disperso. As questões relativas a como definir uma crise, e como explicar suas origens, estão outra vez em primeiro plano.

No final dos anos 1960 e no início dos anos 70, ambos os ciclos hegemônico e, de forma geral, econômico do sistema-mundo moderno entraram em uma fase de declínio. O período entre 1945 e, aproximadamente, 1970 – apropriadamente denominado, em francês, les trente glorieuses – marcou o ápice da hegemonia norteamericana e coincidiu com a mais expansiva fase ascendente do ciclo de Kondratieff que a economia-mundo capitalista jamais vira. As fases descendentes eram absolutamente normais, não apenas no sentido de que todos os sistemas têm ritmos cíclicos – é como eles vivem, a forma com a qual lidam com as flutuações inevitáveis de sua operação – mas também porque é assim que o capitalismo, como um sistema global, funciona. Existem, aqui, duas questões chave: como os produtores lucram e como os Estados garantem o ordenamento do mundo dentro do qual os produtores lucram. Tratemos delas uma de cada vez.

O capitalismo é um sistema cuja raison d’être é a acumulação infinita de capital. Para acumular capital, os produtores devem obter lucros em suas operações, o que apenas é possível, em uma escala significativa, se o produto puder ser vendido por um valor consideravelmente maior do que seu custo de produção. Em uma situação de competição perfeita, é impossível lucrar em tal escala: um monopólio, ou semimonopólio, do poder sobre a economia-mundo é necessário. O vendedor pode assim cobrar qualquer preço, desde que não ultrapasse os limites estabelecidos pela elasticidade da demanda. Sempre que a economia-mundo está em expansão significativa, alguns de seus produtos ‘principais’ são relativamente monopolizados, e é do lucro extraído deles que grandes montantes de capital podem ser acumulados. Os efeitos de encadeamento econômico, tanto para frente quanto para trás, de tais produtos formam a base para uma expansão generalizada da economia-mundo. Chamamos isso de fase A do ciclo de Kondratieff. O problema, para os capitalistas, é que todos os monopólios acabam por se autoliquidar, posto que novos produtores podem adentrar no mercado global, independentemente de quão fortes sejam as defesas de um dado monopólio. É claro, essa entrada demora certo tempo; mas, cedo ou tarde, o grau de competição aumenta, os preços caem e, portanto, os lucros também. Quando os lucros dos produtos principais caem suficientemente, a economia global para de se expandir, e entra em um período de estagnação – a fase B do ciclo de Kondratieff.

A segunda condição para o lucro capitalista é que exista uma certa ordem global relativa. Ainda que guerras mundiais possam oferecer a alguns empreendedores a oportunidade de se dar muito bem, elas também causam enormes destruições de capital fixo, além de interferir consideravelmente no comércio mundial. O balanço geral das guerras mundiais não é positivo, um ponto sobre o qual Schumpeter insistiu repetidamente. Garantir uma situação de relativa estabilidade, necessária para a a geração de lucro, é a tarefa de um poder hegemônico com força suficiente para impô-la sobre todo o sistema-mundo. Ciclos hegemônicos costumam ser muito mais longos do que os ciclos de Kondratieff: em um mundo com tantos ditos estados soberanos, não é com facilidade que um deles consegue se estabelecer como poder hegemônico. Ele foi conquistado, primeiramente, pelas Províncias Unidas, em meados do século XVII, depois pelo Reino Unido, em meados do século XIX, e, finalmente, pelos Estados Unidos, na metade do século XX. A ascensão de cada poder hegemônico tem sido o resultado de uma longa disputa com outros potenciais candidatos. Até agora, o vencedor tem sido aquele estado que se mostrou capaz de reunir o maquinário produtivo mais eficiente, e, em seguida, de vencer uma ‘guerra de trinta anos’ contra seu rival principal. O vencedor pode, enfim, estabelecer as regras sob as quais o sistema interestatal opera, para garantir seu funcionamento estável e maximizar o fluxo de capital acumulado para seus cidadãos e suas empresas produtoras. Pode-se chamar isso de um semimonopólio do poder geopolítico.

O problema enfrentado pelo poder hegemônico é o mesmo dos líderes industriais: seu monopólio é autoliquidante. Em primeiro lugar, ele precisa, ocasionalmente, exercer seu poder militar para manter a ordem. Mas guerras custam dinheiro e vidas, e têm um impacto negativo em seus cidadãos, cujo orgulho inicial da vitória pode evaporar conforme pagam pelos custos crescentes da ação militar. Operações militares de larga escala são, frequentemente, menos efetivas do que o esperado, e isso fortalece aqueles que almejam resistir no futuro. Em segundo lugar, mesmo se a eficiência econômica daquele que conquistou a hegemonia não tropeçar imediatamente, a dos outros países começa a crescer, tornando-lhes cada vez menos dispostos a aceitar seus ditados. O vencedor entra em um processo gradual de declínio em relação aos poderes ascendentes. O declínio pode ser lento, mas é, de todo modo, irreversível.

O que tornou o momento entre 1965 e 1970 tão marcante foi a conjunção destes dois tipos de declínios – o fim da fase A do ciclo de Kondratieff mais expansiva da história, e o começo do declínio da potência hegemônica mais poderosa da história. Não é acidental que a revolução mundial de 1968 (na verdade, de 1966-70), tenha tido lugar neste ponto de virada, como sua expressão.

Expulsando a esquerda tradicional

A revolução mundial de 1968 marcou um terceiro declínio – um que ocorrera apenas uma vez, no entanto, na história do sistema-mundo moderno: o declínio dos movimentos antissistema tradicionais, a chamada esquerda tradicional. Composta essencialmente por comunistas, socialdemocratas e movimentos de libertação nacional, a esquerda tradicional surgiu lenta e laboriosamente por todo o sistema-mundo, principalmente no decorrer do último terço do século XIX  até a primeira metade do século XX; ascendendo da posição de marginalidade e fraqueza política de, digamos, 1870, para uma de centralidade política e força considerável, em torno de 1950. Esses movimentos alcançaram o ápice de seu poder de mobilização no período entre 1945 a 1968 –  exatamente no momento da extraordinária fase A do ciclo de Kondratieff e do ponto máximo da hegemonia dos EUA. Não acredito que se trate de um fenômeno fortuito, embora isso possa parecer contraintuitivo. O boom da economia global levou os empreendedores a crer que concessões às demandas materiais de seus trabalhadores custaria-lhes menos do que as interrupções no processo produtivo. Com o tempo, isso significa um aumento dos custos de produção, um dos fatores por detrás do fim dos semimonopólios dos líderes industriais. A maioria dos empreendedores, porém, toma decisões que maximizam lucros a curto termo – no decorrer dos três anos subsequentes, digamos – e entrega o futuro para os deuses.

Considerações paralelas influenciaram as políticas do poder hegemônico. Manter uma relativa estabilidade no sistema global era um objetivo essencial, mas os Estados Unidos tiveram que contrabalancear os custos da atividade repressiva com o custo das concessões às demandas dos movimentos de libertação nacional. De forma relutante, no começo, mas em seguida mais deliberadamente, Washington começou a preferir uma ‘descolonização’ controlada, o que teve como efeito levar tais movimentos ao poder. Consequentemente, na metade dos anos 1960, podia-se dizer que os movimentos da esquerda tradicional tinham alcançado seu objetivo histórico de assumir o poder estatal por quase toda parte – ao menos no papel. Partidos comunistas governavam um terço do mundo, partidos socialdemocratas estavam no poder, ou alternando o poder, em boa parte de outro terço. Movimentos de libertação nacional tinham chegado ao poder na maior parte do antigo mundo colonial, assim como os movimentos populistas na América Latina. Muitos analistas e militantes hoje criticariam a performance destes movimentos, mas isso seria esquecer o medo que permeava a camada mais rica e conservadora do mundo face ao que parecia-lhes um rolo compressor de igualitarismo destrutivo, equipado com o poder estatal.

A revolução mundial de 1968 mudou tudo isso. Três temas predominaram em seus múltiplos levantes: o primeiro afirmava que o poder hegemônico dos EUA estava sobrecarregado e era vulnerável – no Vietnã, a ofensiva Tet foi tida como o golpe fatal para as operações militares norteamericanas. Os revolucionários também atacavam o papel da União Soviética, que viam como uma participante em conluio com a hegemonia dos EUA – um sentimento que crescera por todo lado desde, ao menos, 1956. O segundo tema afirmava que os movimentos da esquerda tradicional tinham fracassado em entregar suas promessas históricas. Todas as suas três variações tinham como premissa a dita estratégia de duas etapas – primeiro assumir o poder estatal, depois mudar o mundo. Com efeito, os militantes diziam: “Vocês assumiram o poder estatal mas não mudaram o mundo. Se nós queremos mudar o mundo, precisamos de novos movimentos e novas estratégias”. A Revolução Cultural chinesa foi, para muitos, o modelo desta possibilidade. O terceiro tema afirmava que a esquerda tradicional havia ignorado as populações marginalizadas – aqueles oprimidos por causa de sua raça, gênero, etnicidade ou sexualidade. Os militantes insistiam que as demandas por tratamento igualitário não poderiam mais ser deferidas – elas constituíam parte urgente do presente. Em muitos aspectos, o movimento Black Power, nos Estados Unidos, foi o exemplo paradigmático.

A revolução mundial de 1968 foi tanto um enorme sucesso político quanto um enorme fracasso político. Ela se levantou como uma fênix, ardeu brilhantemente por todo o globo, mas, já na metade dos anos 1970, parecia ter-se extinguido em quase todos os cantos. O que fora conquistado por esse grande incêndio selvagem? O liberalismo de centro perdeu seu trono como a ideologia dominante do sistema-mundo, e foi reduzido a uma mera alternativa dentre outras; os movimentos da esquerda tradicional foram destruídos enquanto mobilizadores de qualquer tipo de mudança fundamental. Mas o triunfalismo de 1968 mostrou-se raso e insustentável. A direita mundial foi igualmente libertada de qualquer associação com o liberalismo centrista. Ela se aproveitou da estagnação da economia mundial e do colapso da esquerda tradicional para lançar uma contraofensiva, a globalização neoliberal. Seus objetivos principais eram reverter todos os ganhos das camadas inferiores durante a fase A do ciclo de Kondratieff: reduzir os custos de produção, destruir o estado de bem estar e desacelerar o declínio do poder dos EUA. Seu avanço pareceu atingir um ponto máximo em 1989, com o fim do controle soviético sobre seus satélites do Centro-Leste Europeu e o desmantelamento da própria URSS levou a um novo triunfalismo na direita.

A ofensiva da direita mundial foi tanto um grande sucesso como um grande fracasso. O que sustentou a acumulação de capital desde os anos 1970 foi uma virada na busca por lucros da eficiência produtiva em direção à sua procura através de manipulações financeiras, pela especulação, para dizê-lo mais corretamente. O mecanismo chave foi o incentivo do consumo via endividamento. Isso aconteceu em todas as fases B do ciclo de Kondratieff; a diferença, desta vez, foi de escala. Depois da maior expansão em fase A da história, veio a maior mania especulativa. Bolhas moveram-se por todo o sistema-mundo – das dívidas nacionais do Terceiro Mundo e do bloco socialista nos anos 1970 às obrigações de alto risco de grandes empresas nos anos 1980, do endividamento do consumidor dos anos 1990 ao endividamento do governo norte-americano na era Bush. O sistema foi de bolha a bolha e, atualmente, tenta inflar mais uma, com os socorros financeiros aos bancos e a impressão de dólar.

O declínio em que o mundo se encontra continuará por certo tempo, e será bastante profundo. Ele destruirá o último pilar da relativa estabilidade econômica, o papel do dólar como moeda de reserva para assegurar riquezas. Quando isso acontecer, a preocupação principal de cada governo será impedir levantes de trabalhadores desempregados e da classe média cujas poupanças e pensões estão desaparecendo. Os governos, neste momento, estão adotando o protecionismo e a impressão de dinheiro como sua primeira linha de defesa. Tais medidas podem momentaneamente aliviar a agonia das pessoas comuns, mas é provável que apenas piorem a situação. Estamos entrando em um  impasse sistêmico, cuja saída será extremamente difícil. Isso se expressará em flutuações cada vez mais selvagens, que tornarão as previsões de curto termo – tanto econômicas quanto polícia – praticamente achismo. Isso, por sua vez, agravará os anseios populares e o sentimento de alienação.

Alguns afirmam que a posição econômica relativa consideravelmente aprimorada da Asia – Japão, Coréia do Sul, Taiwan, China e, de maneira menos significativa, Índia – abrirá o caminho para um ressurgimento da empreitada capitalista, por meio de uma simples relocalização geográfica. Outra ilusão! O avanço relativo da Asia é uma realidade, mas uma que compromete ainda mais o sistema capitalista ao estender ainda mais a distribuição de valor excedente, assim reduzindo a acumulação geral de capital individual, em vez de aumentá-la. A expansão da China acelera a redução nas margens de lucro da economia-mundo capitalista.

Custos sistêmicos gerais

É neste momento que precisamos considerar as tendências seculares do sistema-mundo, em oposição aos seus ritmos cíclicos. Tais ritmos são comuns em vários tipos de sistemas, e fazem parte de seu modo de operação – é como eles respiram, podemos dizer. Mas as fases B nunca acabam no ponto em que as fases A anteriores começaram. Podemos entender cada fase ascendente como uma contribuição para curvas ascendentes de movimento lento, cada qual aproximando-se de sua própria assíntota. Na economia capitalista, não é difícil discernir as curvas mais relevantes. Posto que o capitalismo é um sistema no qual a acumulação infinita é fundamental, e dado que acumula-se capital gerando lucro no mercado, a questão chave é como produzir produtos por menos do que os preços pelos quais eles podem ser vendidos. Temos, então, que determinar tanto o que está incluído nos custos de produção quanto o que determina os preços. Logicamente, os custos de produção são aqueles com pessoal, aportes e taxações. Todos os três têm aumentado enquanto percentual dos preços atuais pelos quais os produtos são vendidos. Isso acontece apesar dos repetidos esforços dos capitalistas para forçá-los para baixo, e, apesar das ondas de avanços tecnológicos e organizacionais que aumentaram a dita eficiência de produção.

As despesas com pessoal podem, por sua vez, ser divididas em três categorias: força de trabalho relativamente desqualificada, gerentes intermediários e gestores superiores. Os salários dos desqualificados tendem a aumentar nas fases A como resultado de algum tipo de ação sindical. Quando esses aumentam de uma maneira tida como excessiva por certos empresários, em particular para as indústrias de ponta, a relocação para áreas onde os salários são historicamente menores é o principal remédio; se uma ação similar acontece na nova localização, um segundo movimento ocorre. Esses deslocamentos são custosos, mas bem sucedidos; no entanto, existe mundialmente um efeito em cadeia – as reduções nunca eliminam totalmente os aumentos. Por mais de 500 anos, a repetição deste processo exauriu os loci aos quais o capital pode se realocar. Isso é evidenciado pela desruralização do sistema-mundo.

O aumento nos custos da força de trabalho dos gerentes intermediários é o resultado, em primeiro lugar, da escala expandida das unidades produtivas, que requerem mais pessoal intermediário. Em segundo lugar, os riscos políticos da organização sindical do pessoal relativamente pouco qualificado são combatidos com a criação de uma camada intermediária maior, politicamente aliada ao estrato dominante e modelo de mobilidade ascendente para a maioria desqualificada. O aumento dos custos com gestores superiores, entretanto, é o resultado direto da complexidade crescente das estruturas empresariais – a famosa separação entre posse e controle. Isso possibilita que gestores superiores apropriem-se de porções cada vez maiores das receitas das empresas como rendimentos, assim reduzindo a parcela direcionada aos proprietários como lucro ou para reinvestimento. Esse último incremento foi espetacular durante as últimas décadas.

Os custos com aportes têm aumentado por razões análogas. Os capitalistas procuram externalizar os custos, isto é, não pagar toda a conta do manejo de resíduos tóxicos, da renovação de matéria-prima e da construção de infraestrutura. Do século XVI aos anos 1960, tal externalização de custos foi uma prática normal, pouco questionada pelas autoridades políticas. Resíduos tóxicos eram simplesmente despejados no domínio público. Mas o mundo esta ficando sem espaço público disponível – paralelamente à desrruralização da força de trabalho mundial. As consequências sanitárias e os custos ficaram tão altos e tão próximos de casa a ponto de produzir demandas por despoluição e controle ambiental. Os recursos também tornaram-se uma preocupação importante, uma consequência do aumento acentuado da população global. Existe, agora, uma discussão generalizada sobre a escassez de recursos energéticos, de água, florestas, peixes e carne. Os custos de transporte e comunicação também subiram conforme estes tornaram-se mais rápidos e eficientes. Empresários, historicamente, pagaram apenas uma pequena parte da conta da infraestrutura. A consequência de tudo isso tem sido a pressão política para que governos assumam ainda mais os custos de desintoxicação, de renovação de recursos e de expansão da infraestrutura. Para fazer isso, os governos precisam aumentar os impostos e insistir na internalização dos custos pelos empresários, o que certamente faz cortes nas margens de lucro.

Finalmente, as taxações têm aumentado. Existem diversas etapas de tributação, incluindo a taxação privada na forma de corrupção e das máfias organizadas. A tributação aumentou conforme o escopo da atividade econômica global e as burocracias estatais se estenderam, mas o ímpeto maior veio dos movimentos antissistema pelo mundo, que pressionaram por garantias estatais de educação, saúde e fluxos de renda vitalícios. Cada um destes elementos expandiu, tanto geograficamente como em termos dos níveis dos serviços demandados. Nenhum governo hoje está isento da pressão pela manutenção de um estado de bem-estar, por mais que os graus de provisão variem.

Todos os três custos de produção aumentaram de maneira estável como percentual dos preços reais de venda dos produtos, ainda que na forma de um A-B ratchet, por 500 anos. Os aumentos mais dramáticos aconteceram no período pós-1945. Não seria possível simplesmente aumentar o preço pelos quais os produtos são vendidos para que se mantenha as margens reais de lucro? Foi exatamente isso que se tentou fazer no período pós-1970, na forma de aumentos de preço sustentados pela expansão do consumo, por sua vez sustentado pelo endividamento. O colapso econômico no meio do qual nos encontramos não é senão a expressão dos limites da elasticidade da demanda. Quando todo mundo gasta muito além de sua verdadeira renda, chega um ponto em que alguém tem que parar, e rapidamente todos sentem que devem fazer o mesmo.

Lutas pela sucessão

A conjunção destes três elementos – a magnitude do colapso ‘normal’, o aumento dos custos de produção e a pressão adicional sobre o sistema feita pelo crescimento chinês (e asiático) – significam que entramos em uma crise estrutural. Este sistema está longe do equilíbrio, e as flutuações são enormes. A partir de agora, estaremos vivendo no meio de uma bifurcação do processo sistêmico. A questão não é mais ‘como o sistema capitalista irá se reconstituir e renovar seu impulso adiante?’, mas, ‘o que substituirá este sistema? Que ordem irá emergir deste caos?’

Podemos pensar neste período como uma crise sistêmica na arena da luta pelo sistema sucessor. O resultado pode ser inerentemente imprevisível, mas a natureza da disputa é clara. Somos confrontados com escolhas alternativas, que não podem ser apresentadas em detalhes institucionais, mas que podem ser sugeridas de maneira geral. Podemos escolher, coletivamente, um novo sistema que seja essencialmente semelhante ao atual: hierárquico, explorador e polarizador. Existem diversas formas nas quais isso pode acontecer, e algumas podem vir a ser mais duras do que o sistema-mundo capitalista em que vivemos. Por outro lado, podemos escolher um sistema radicalmente diferente, um que jamais existiu – um sistema relativamente democrático e relativamente igualitário. Eu tenho chamado as duas alternativas de “o espírito de Davos” e “o espírito de Porto Alegre’, mas os nomes não são importantes. O que importa é ver quais são as possíveis estratégias organizacionais em cada lado, numa luta que se desenrola de certa forma desde 1968 e pode não ter completamente terminado antes de 2050.

Devemos, primeiramente, notar duas características cruciais de uma crise estrutural. Como as flutuações são radicais, existe pouca pressão para um retorno ao equilíbrio. Durante a longa vida útil ‘normal’ do sistema, tal pressão era a razão pela qual extensivas mobilizações sociais – as ditas ‘revoluções’ – foram limitadas em seus efeitos. Mas quando o sistema está longe do equilíbrio, o oposto pode acontecer – pequenas mobilizações sociais podem ter enormes repercussões, o que a ciência da complexidade chama de ‘efeito borboleta’. Também podemos dizer que é o momento em que a agência política prevalece sobre o determinismo estrutural. A segunda característica crucial é que em nenhum dos dois campos há um grupo no topo dando as ordens: um ‘comitê executivo da classe dominante’, ou um politburo das massas oprimidas. Mesmo dentre aqueles comprometidos com a luta pelo sistema sucessor, existem diversos atores, defendendo ênfases distintas. Os dois grupos de militantes conscientes em ambos os lados também estão encontrando dificuldades em persuadir os grupos maiores que formam as suas bases potenciais sobre a utilidade e a possibilidade de organizar a transição. Em suma, o caos da crise estrutural está refletido na configuração relativamente desordenada destes dois campos.

O campo de Davos está profundamente dividido. Existem aqueles que querem instituir um sistema altamente repressivo que glorifique o papel dos líderes privilegiados sobre sujeitos submissos. Existe um segundo grupo que acredita que o caminho para o controle e o privilégio está em um sistema meritocrático que iria cooptar o grande número de gerentes necessários para mantê-lo com um mínimo de força e um máximo de persuasão. Esse grupo fala a língua da mudança fundamental,  usando slogans que emergiram dos movimentos anti-sistema – um universo verde, uma utopia multicultural, oportunidades meritocráticas para todos – enquanto preservam um sistema polarizado e desigual. No campo de ‘Porto Alegre’, existe uma cisão paralela. Há aqueles que almejam um mundo altamente descentralizado, que privilegie alocações racionais de longo termo em relação ao crescimento econômico e que permita a inovação sem criar casulos de especialização que não respondam à sociedade como um todo. Existe um segundo grupo que é mais orientado a uma transformação por cima, pelos gerentes e especialistas; eles almejam um sistema tão mais coordenado e integrado, um igualitarismo formal sem inovação real. Então, em vez de uma simples batalha um a um pelo sistema sucessor, eu prevejo uma luta tripla – uma entre os dois campos principais e outra dentro de cada campo. Trata-se de uma situação confusa, moralmente e politicamente; e o resultado é fundamentalmente incerto.

Quais são os gestos práticos que qualquer um pode adotar para fazer esse processo avançar? Não existem fórmulas, apenas linhas de ênfase. Eu colocaria no topo da lista de ações que podemos tomar, no curto prazo, minimizar o sofrimento que surge do colapso do sistema existente e das confusões da transição. Isso pode incluir vencer uma eleição para obter maiores benefícios materiais para aqueles que possuem menos; conquistar maior proteção judicial e direitos políticos; adotar medidas para combater uma erosão ainda maior de nossa riqueza planetária e das condições de nossa sobrevivência coletiva. Entretanto, esses não são, em si, passos em direção à criação do novo sistema sucessor de que precisamos. É necessário realizar um sério debate intelectual sobre os parâmetros do tipo de sistema global que desejamos, e sobre a estratégia de transição. Isso requer a disposição para escutar aqueles que julgamos ter boa índole, ainda que não compartilhemos as mesmas opiniões. O debate aberto certamente irá construir uma maior camaradagem, e, talvez, evitará que caiamos no sectarismo que sempre derrotou movimentos anti-sistema. Finalmente, devemos construir, onde for possível, modos de produção alternativos, desmercantilizados.  Fazendo isso, podemos descobrir os limites de muitos métodos particulares, e demonstrar que existem outros modos de garantir a produção sustentável, para além de um sistema de recompensas baseado no princípio do lucro. Além disso, a luta contra as desigualdades fundamentais do mundo – gênero, classe e raça/etnia/religião – deve ser a primeira linha em nossos pensamentos e ações. Essa é a tarefa mais difícil, posto que nenhum de nós está livre da culpa, e que a cultura mundial que herdamos milita contra nós. É preciso dizer que devemos evitar qualquer noção de que a história está do nosso lado? Temos, no melhor dos casos, 50% de chance de criar um sistema-mundo melhor do que este em que vivemos. Mas 50% é bastante. Devemos capturar Fortuna, mesmo que ela nos escape. O que cada um de nós teria de mais útil para fazer?

*Immanuel Wallerstein (1930-2019) foi professor sênior na Universidade de Yale (EUA). Autor, entre outros livros, de Capitalismo histórico e civilização capitalista (Contraponto).

Tradução: Daniel Pavan.

 

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