Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Um olhar crítico e satírico sobre a adoração ao mercado, comparando suas práticas à liturgia de um culto religioso, revelando suas contradições e a natureza quase religiosa de suas crenças
É engraçada a encenação dramática de um “culto neoliberal”. Satiriza a estrutura litúrgica de cerimônias religiosas cristãs pentecostais, mas com a lógica e o vocabulário da fé cega em O mercado divino maravilhoso.
A peça é pensada como teatro político. Permite discussões críticas sobre ideologia, moralidade econômica e o caráter quase religioso da ortodoxia neoliberal.
Título: “Culto neoliberal de o mercado todo-poderoso”
Personagens principais: Pastor Malafé – líder carismático da Igreja do Ajuste Perpétuo; Missionária da Reforma Trabalhista – profetiza da eficiência sem direitos; Sargento do CAC Cristão – zelador armado da ordem fiscal e moral; Contadora do Reino da Responsabilidade – ministra dos números sagrados; Espírito Santo do Mercado – voz incorpórea projetada em telões com gráficos; Assembleia dos Anônimos Investidores – plateia mascarada com crachás, tablets e planilhas
Cenário: Um púlpito com uma Bíblia Fiscal, telas com cotações e um altar com as tábuas da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). Ao fundo, o hino instrumental “o mercado é meu pastor”. Telões com o índice Dow Jones e a taxa Selic em tempo real. Sobre o altar: a imagem do divino dólar, com raios dourados de liquidez infinita.
Abertura do culto (voz off, com eco): “Irmãos e irmãs da prosperidade privada, sejamos bem-vindos à 1ª Conferência dos Dividendos Eternos. Que a taxa de juros esteja convosco. Que a inflação seja mantida longe de vossas metas. E que o ajuste fiscal esteja sempre em vossos corações”.
1º ATO – A Oração da Meta de Inflação (com todos de pé): “Mercado que estais no céu, santificado seja o vosso spread. Venha a nós o vosso crescimento, mesmo em trickle-down [gotejamento]. Seja feita a vossa vontade, nos setores regulados e desregulados. Dai-nos hoje o nosso superávit de cada dia. Perdoai os nossos gastos primários, assim como não perdoamos quem taxa lucros e dividendos.
E não nos deixai cair em indexação, mas livrai-nos da curva de Laffer [aumento dos impostos diminuir a receita]. Amém!”
2º ATO – Sermão do Pastor Malafé: “Amados irmãos, hoje falaremos da Palavra capaz de salvar: confiança. Confiança em o mercado como um Deus. Confiança nos cortes. Confiança no investidor anônimo capaz, mesmo invisível, tudo ver e tudo regular.
Quem são os ímpios? Aqueles defensores do aumento de gasto com saúde, educação e moradia popular. Estes cairão sob o peso do risco fiscal, e seus títulos públicos sofrerão marcação-a-mercado!”. (Som de trovões: ruído de downgrade das agências de rating)
Obs.: em termos religiosos, os ímpios são aqueles com vida em oposição aos mandamentos do ser sobrenatural, demonstrando uma falta de respeito ou reverência por ele e seus ensinamentos. Eles podem ser caracterizados por uma vida de pecado, desobediência e ausência de fé.
3º ATO – Testemunho da Missionária da Reforma Trabalhista: “Meus queridos, eu era uma CLTista perdida. Tinha 13º, férias, estabilidade… e achava isso ser direito! Até quando, em um dia, a fé me tocou. A fé na eficiência do microempreendedorismo por conta própria. A fé no servidor comissionado! Hoje sou contratada temporária e terceirizada para glória do CAPEX [sigla para Capital Expenditure ou Despesas de Capital]!”.
4º ATO – Ensinamento da Contadora do Reino da Responsabilidade: “Amados, apresento-vos o Relatório Sagrado do 1º Trimestre.
Os gastos com políticas públicas ultrapassaram a linha da salvação! Precisamos jejuar: jejum de investimentos, de programas sociais, de salário real… Só assim o Espírito do Crescimento nos visitará novamente — com efeito stop-and-go para pagar os pecados”.
5º ATO – Revelação do Espírito Santo do Mercado: (voz computadorizada, vinda do telão, com luzes estroboscópicas de gráficos). “Eu sou O Mercado. Apesar de Onipresente, Onipotente e Onisciente, eu existo apenas quando confiarem na minha projeção para o futuro e eu ter o poder de mudar de opinião – e alterar minha narrativa anterior a respeito do cenário sem me acusarem de contradição entre onisciência e onipotência: tipo uma ou outra.
Eu não tenho rosto, não tenho coração, mas minha crise é temida e minha bênção é lucrativa. Se tributarem os mais ricos eu desaparecerei! Se cortarem a assistência social à pobreza eu multiplicarei o PIB potencial!”
Encerramento com o “Hino da Responsabilidade” (todos juntos): “Oh senhor do déficit, dai-nos vosso teto, que o déficit nominal seja juro puro e o ajuste fiscal sem afeto. Não queremos mais SUS, nem Bolsa-Família ou FGTS, só a graça bendita da meta do IPCA em prece!”.
Cena final:
Pastor Malafé abençoa a assembleia com uma promessa de PIX para todos. A plateia se curva em direção ao telão onde surge a seguinte mensagem:
“Ide e multiplicai… os vossos retornos. Orem para o mercado jamais perder a vossa crença”.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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