Desafios na luta pelo fim da escala 6×1

Imagem: Aleksandar Pasaric
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Por BRUNO MACHADO*

Protestos contra a escala 6×1 expõem desafios da esquerda em como mobilizar trabalhadores num cenário de individualismo e informalidade, reforçando a necessidade da luta coletiva por direitos

As últimas manifestações pelo fim da escala 6×1 demonstraram que a esquerda ainda é capaz de tentar forçar mudanças estruturais por meio da força das ruas, ao mesmo tempo em que revelaram a dificuldade de se conseguir uma grande adesão aos protestos.

A capacidade dos movimentos de esquerda de mobilizar pessoas é um dos fatores mais importantes na definição da estratégia de atuação política dos partidos majoritários do campo progressista. Um baixo potencial de agitação de massas acaba levando esses partidos a buscarem meios mais conservadores de acesso e gestão do poder estatal, como ocorre atualmente no petismo.

Os maiores desafios à necessidade da esquerda em conquistar corações e mentes da classe trabalhadora podem estar ligados ao aumento do individualismo e ao isolamento nos postos de trabalho do mundo neoliberal.

Individualismo e isolamento

Um dos maiores desafios relacionados a essa capacidade é o baixo índice de organização dos trabalhadores brasileiros, fator que se deve à baixa sindicalização, associada a uma fraca identificação dos trabalhadores com seus órgãos representativos.

O isolamento se dá por fatores econômicos, como a uberização, mas também pode ser reforçado por mudanças na socialização, com o individualismo se tornando cada vez mais a força motriz da vida em sociedade. Uma das consequências diretas dessa deterioração na socialização é o aumento do sentimento crônico de solidão, que, segundo pesquisas recentes, atinge mais de dois terços dos jovens da geração Z.

Esse individualismo, que surge na vida social e atinge também as relações de trabalho, é psicologicamente mitigado pelas redes sociais, ambiente que cria uma falsa percepção de pertencimento, quando não reforça concretamente uma realidade de isolamento.

Entretanto, o fator psicológico mais importante que contribui para esse individualismo é a crença na ideia de meritocracia, que faz com que cada trabalhador enxergue como única saída para sua condição desfavorável a solução individual: a mudança de cargo, de profissão ou mesmo o empreendedorismo. Para uma parcela excepcional dessa massa de trabalhadores, essas saídas funcionam, mas, para a maioria, não surtem efeito, até porque não há espaço para todos no topo da pirâmide econômica. Somente a luta coletiva tem potencial para transformar o tamanho e a forma dessa pirâmide.

Inflação e informalidade

Uma das grandes críticas à ideia do fim da jornada 6×1 é a de que a mudança provocaria inflação de custos devido ao aumento do custo do trabalho. Outra crítica, frequentemente associada à anterior, é a de que o retorno integral à escala 5×2 causaria um aumento na informalidade do trabalho.

Ambas as críticas têm fundamento, mas é importante lembrar que todo aumento salarial desassociado de um correspondente aumento de produtividade pode, de fato, causar inflação de custos.

Por essa lógica, deveríamos então ser contrários ao aumento do salário mínimo ocorrido nas últimas duas décadas, mesmo tendo a produtividade da economia brasileira permanecido, em geral, estagnada na maioria dos setores? Não parece razoável, tendo em vista toda a melhora na qualidade de vida do brasileiro médio nesse período, ainda que reste muito a ser feito.

Quanto à informalidade, pode-se ao menos suspeitar que esse fenômeno esteja muito mais associado à baixa complexidade e ao pouco avanço tecnológico do setor produtivo brasileiro. Essa realidade gera uma massa salarial muito baixa nos setores de comércio e serviços (que consomem a renda gerada no setor produtivo), levando muitos trabalhadores ao trabalho autônomo e ao empreendedorismo.

Essas alternativas frequentemente oferecem possibilidades de renda superiores à média salarial das contratações no regime CLT. Assim, a informalidade pode estar mais ligada à possibilidade de maior rentabilidade ao se oferecer serviços diretamente ao cliente, como autônomo ou microempreendedor, do que ao emprego em empresas que prestam esses mesmos serviços com baixa complexidade e poucos requisitos técnicos e tecnológicos.

Colocando na balança todo o impacto negativo que a escala 6×1 causa à saúde, à vida social e familiar dos brasileiros, frente ao suposto risco inflacionário e de aumento da informalidade, não há razão para recuar nessa luta. Além disso, estudos apontam que a escala 6×1 é prejudicial à própria produtividade do trabalho, devido ao desgaste físico e mental excessivo que impõe ao trabalhador.

Paralelamente, deve-se considerar o aumento quase exponencial dos casos de depressão e ansiedade, especialmente entre os jovens (que compõem a faixa etária mais submetida a esse regime), o que, além do aspecto humano, gera aumento nas despesas públicas com saúde, previdência e assistência social.

Conclusão

Os protestos organizados pela militância da Unidade Popular (UP) em shoppings centers, locais onde a escala 6×1 costuma ser regra e as jornadas de trabalho são costumeiramente extensas e exaustivas, foram um exemplo, em pequena escala, de atos organizados pela esquerda que têm grande potencial de conquistar a simpatia dos trabalhadores diretamente afetados por esse regime.

A necessidade de se pôr fim à escala 6×1 já é uma opinião majoritária entre os brasileiros (cerca de dois terços são favoráveis à mudança), e esse regime afeta também aproximadamente dois terços dos trabalhadores com carteira assinada, de acordo com a RAIS de 2022.

Reverter o isolamento dos trabalhadores, tanto nas redes sociais quanto nos postos de trabalho, é um enorme desafio para a parcela da esquerda que não se deixou encantar pelo poder institucional e ainda acredita que somente a organização da classe trabalhadora pode promover mudanças estruturais e transformadoras no Brasil.

Sendo assim, apenas uma maior organização dos trabalhadores em sindicatos e movimentos sociais poderá empurrar os partidos majoritários de esquerda para fora da caixinha do neoliberalismo e promover as mudanças de que o país necessita para se desenvolver economicamente e se tornar mais justo.

*Bruno Machado é engenheiro.


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