Dialética da malandragem

Rosemarie Trockel, Ohne Titel, 2008
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Por VINÍCIUS DE OLIVEIRA PRUSCH*

Considerações sobre o ensaio de Antonio Candido

“O verdadeiro é, assim, o delírio báquico no qual não há membro que não esteja embriagado, e porque cada membro, na medida em que se separa, imediatamente se dissolve, é igualmente o repouso translúcido e simples” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do espírito).

“A forma Utópica é, ela própria, uma reflexão representacional sobre a diferença radical” (Fredric Jameson, Arqueologias do futuro: o desejo chamado Utopia e outras ficções científicas).

1.

A canonização de um texto, seja ele literário ou crítico, traz consequências múltiplas. Por um lado, estuda-se mais aquele objeto, e, assim, tende-se a entendê-lo melhor. Por outro lado, contudo, vão sendo criadas também leituras viciadas, que prejudicam o entendimento de quem está chegando ao texto agora.

O caso mais paradigmático talvez seja Hegel, cuja dialética é frequentemente simplificada com a fórmula “tese x antítese → síntese”. A questão é que Hegel era avesso a fórmulas e a definições simplistas. Além disso, lendo sua Fenomenologia do Espírito, notamos que essa tríade quase não está lá – está muito mais em Fichte.

Prefiro, pessoalmente, a definição de Adorno (2022) da dialética: trata-se de um pensamento organizado em contradições, mas que só deve se organizar assim porque a realidade também opera desse modo. É até mais simples que a simplificação. As complexidades surgem na prática, com cada leitura dialética.

No caso do ensaio “Dialética da Malandragem”, de Antonio Candido (1993), também temos tanto leituras profícuas quanto simplificações. No lado das primeiras, destaco os grandes ensaios de Roberto Schwarz (1987), de Edu Teruki Otsuka (2007) e de André Bueno (2008). Já no lado das simplificações, temos a tendência a se ler a malandragem como mero modo de ser do brasileiro, como o famoso “jeitinho”, quando a coisa é bem mais interessante que isso. Um exemplo é a leitura de João Cesar de Castro Rocha (2006), corretamente criticada por Rodrigo Mendes (2025).

Apesar das leituras profícuas, creio que ainda falta uma análise que posicione o ensaio de Antonio Candido, “o primeiro estudo literário propriamente dialético” (Schwarz, 1987, p. 129) do Brasil, no contexto da crítica dialética de maneira mais geral. Como Antonio Candido se insere na tradição de Hegel, Marx, Adorno? Esse é o movimento central deste ensaio. A partir dele, pretendo postular algumas coisas novas a respeito do movimento crítico construído pelo autor brasileiro.

Eu já havia mencionado, com Theodor Adorno, que dialética é sobre contradições. A questão é que nem sempre essas contradições estão tão claras quanto “tal coisa se opõe a tal coisa”. Já existe uma dialética basilar que sempre está lá se o gesto crítico for acertado, a dialética entre sujeito e objeto. Cabe ao sujeito perseguir o tanto que puder o movimento do objeto, ainda que nunca possa fisgá-lo por completo (sendo, aqui, mais adorniano do que hegeliano).

No caso da crítica literária, existe também outra dialética basilar: aquela entre forma estética e forma social. Há, contudo, uma tradição interna à dialética na qual é exatamente “tal coisa se opõe a tal coisa” o que temos. O primeiro exemplo está no próprio Hegel (1997), mais especificamente na dialética do senhor e do escravo. Vejamos como ela funciona.

2.

De um lado, temos o senhor. Ele é, a princípio, livre, reconhece a si mesmo como senhor e é reconhecido como tal pelo escravo. Do outro lado, temos o escravo. Ele não é livre. Se fosse somente isso, teríamos contradição, mas não exatamente dialética, pois dialética pressupõe também movimentação no interior da contradição. O pulo do gato de Hegel está no seguinte: em primeiro lugar, o reconhecimento por parte do escravo não serve ao senhor, pois ele não é, digamos, propriamente gente na sua visão.

O senhor precisaria ser reconhecido por um igual para sentir-se plenamente senhor. Em segundo lugar, o escravo modifica a natureza com o seu trabalho, o senhor, não. O escravo serve de mediação entre o senhor e o objeto. A conclusão é a seguinte: a verdade do senhor é o escravo, e ele não é completamente livre, pois depende do escravo para dominar o objeto. Somente o escravo pode ser realmente livre, caso ele se liberte.

A próxima formulação dialética que gostaria de visitar rapidamente é aquela que existe, para o Marx do primeiro capítulo do Capital (2013), entre valor de uso e valor. O valor de uso, formula o autor, é algo natural e pré-capitalista. Tem a ver com a utilidade geral de uma coisa. O ar, por exemplo, tem valor de uso. Esse valor de uso, contudo, serve de base para o valor, que não é natural, mas uma invenção do capitalismo.

O valor iguala as mercadorias, e, assim, iguala também tipos de trabalho diversos. Torna tudo “abstrato”, essa é a palavra que Marx utiliza. O dinheiro é a forma de manifestação do valor. Qual a resolução possível para essa dialética? A superação do sistema capitalista, e, com ela, a extinção do valor. (Note-se que, mais uma vez, não se trata de um meio termo entre duas ideias, como a noção de tese, antítese e síntese faria crer.)

Por último, gostaria de recuperar uma formulação dialética de Theodor Adorno (2015). Trata-se da tensão entre sociedade (capitalista) e indivíduo. “Por mais que os indivíduos sejam produtos da totalidade social, tanto mais entram, enquanto tais produtos, necessariamente em contradição com o todo”, diz o autor (Adorno, 2015, p. 80).

Em um primeiro nível, o sujeito é reflexo do todo. Ele se formou em torno da troca, do valor, afinal. Existe outro nível, no entanto, no qual o sujeito não é idêntico a si mesmo, no qual algo escapa à razão instrumental. Enquanto a sociedade capitalista não for completamente autoritária, enquanto a subjetivação não for total (se é que tem como ser), haverá essa contradição. Qual a saída – pergunto novamente – para essa dialética? A mesma de Karl Marx: a dissolução da sociedade capitalista e a criação de uma totalidade social “humanizada”. A diferença é que Theodor Adorno tem menos motivos para crer que isso acontecerá em um futuro próximo.

O que mais podemos depreender dessas três formulações? Creio que o mais importante é que se tratam de situações ruins. A contradição é um problema que deve ser resolvido. São becos sem saída, mas sempre parece haver a possibilidade de atalhar pela mata, de criar um caminho. E isso desde Hegel. A diferença é que, para os materialistas, o atalho pela mata leva o nome de comunismo.

3.

O que se passa com a dialética da malandragem, nesse sentido, é bastante curioso. A contradição, nesse caso, é entre ordem e desordem. A ordem é entendida como algo que vem de cima, das instituições, dos proprietários. A desordem é algo que vem das classes baixas, dos escravizados. Há um grupo no meio, contudo, dos homens livres, que não são proprietários e que vivem de favor. Esse grupo transita entre a ordem e a desordem. Mais que isso, ainda, a desordem chega aos próprios membros da classe dominante. Trata-se de “uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados” (Candido, 1993, p. 36).

Temos algumas coisas novas com relação à tradição. Para começar, temos três termos no lugar de dois. A princípio, são dois, ordem e desordem, mas em seguida passamos a três, pois no meio há a classe dos homens livres que não são proprietários. (É claro que há outra possibilidade de leitura: seriam dois termos, e os homens livres seriam a personificação mesma do movimento dialético. De qualquer forma, há alguma liberdade com relação à tradição dialética.)

Em segundo lugar, e mais importante, não se trata de uma situação ruim. Trata-se, na verdade, de um trunfo da sociedade periférica. Nossa sociedade, livre da culpa, afinal, nos deixaria mais próximos de um “mundo eventualmente aberto” (Candido, 1993, p. 53) (notem que Antonio Candido evita a palavra “comunismo”).

Ainda pensando em como Antonio Candido dialoga, consciente ou inconscientemente, com a tradição dialética, vale dizer (o que talvez seja um tanto óbvio) que, nesse contexto das Memórias de um sargento de milícias, não impera ainda o valor na roupagem clássica. Não temos trabalho assalariado generalizado, e a mercadoria não está exatamente no centro do processo social – lembro, aqui, o trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997).

Isso ajuda, de um modo curioso, Antonio Candido a não cair em uma das arapucas em que marxistas por vezes caem: a idealização do trabalho. Conforme demonstra Robert Kurz (2020), o trabalho é uma abstração capitalista. Não havia porque, antes do valor, chamar por um mesmo nome atividades tão diversas.

Antonio Candido parece sugerir que, numa sociedade como a brasileira, a revolução talvez deva passar menos pela organização do trabalho e mais pela desorganização dos vagabundos, trombadinhas e desocupados. Mas será que essa gente se organizaria politicamente em algum momento? E, se a lógica contraditória está bem como está (para quem?), teria por que vir uma revolução?

Contrastando Antonio Candido com Theodor Adorno, também temos coisas de interesse. No lugar de uma ordem – usemos esse termo também para Adorno – que engloba os indivíduos, que, por sua vez, contradizem em algum nível essa ordem, temos uma ordem cercada pela desordem dos indivíduos de todos os lados. É quase como se o jogo de Theodor Adorno se invertesse. Uma sociedade paradoxalmente (porque escravocrata) humanizada.

4.

Gostaria, por fim, de comentar a questão do suposto culturalismo da parte final do ensaio de Antonio Candido. Repito que o ensaio de Roberto Schwarz é não só acertado, mas incontornável. Discordo, contudo, neste ponto. Para começar, é difícil separar a parte final, onde estaria o culturalismo, do restante do texto. Antonio Candido vinha desenhando essa leitura desde muito antes.

Além disso, qual a diferença dessa leitura de uma lógica brasileira em geral para uma lógica capitalista em geral em Marx e ocidental em geral em Adorno e Horkheimer? Por que não dizemos que eles operam com generalizações? Talvez o que Antonio Candido esteja apontando é que, em uma sociedade de instituições semiformadas (tomando a liberdade de usar o termo de Theodor Adorno em outro contexto), o modus operandi dos de baixo tem mais espaço para imperar – apesar do horror da escravidão, que mantém os debaixo de fato sob controle.

Não é uma dialética interessantíssima? É como se a sociabilidade popular se autonomizasse dos indivíduos escravizados, sem que sua condição melhorasse por causa disso. É uma leitura com forte poder explicativo.

Penso, entretanto, que há uma generalização pior no texto de Antonio Candido. Trata-se da ideia de “desordem”, que me parece um termo muito vago. Porque toda desordem vem de baixo? Não é possível uma desordem vinda das próprias classes dirigentes? Minha resposta seria: sem dúvida. Essa desordem tem a ver com arbitrariedade e violência de classe. Nesse sentido, talvez haja duas formas de desordem no romance, não uma. E Antonio Candido apaga uma delas. Há que se perguntar o porquê desse apagamento, justo nos anos de chumbo, que, como Schwarz (1987, p. 154) já notou, tinham algo de uma dialética da ordem e da desordem em versão sombria.

A única resposta que consigo encontrar é que isso poderia ser uma aposta utópica de Antonio Candido. Ele quer que seu leitor acredite na força do modus operandi popular. Assim, focaliza a força que esse modus operandi parece de fato ter – nesse momento do tempo, ao menos, o tempo das Memórias –, ou por outro lado, uma força que ele gostaria que estivesse presente em seu tempo histórico, ainda que, no processo, apague a desordem dos dirigentes, ou melhor, a transforme em outro tipo de desordem, discursivamente.

Será que podemos permitir que a ideologia opere em nossa dialética em nome da utopia? Será que podemos encarar uma contradição capitalista como positiva? Desde que se aceite que será, ela própria, contraditória, uma dialética malandra como a de Antonio Candido talvez possa.

*Vinícius de Oliveira Prusch é doutorando em letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referência


Antonio Candido. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo, Duas Cidades, 1993, p. 19-54. [https://amzn.to/3TBXMIi]

Bibliografia


ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Tradução de Verlaine Freitas. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

ADORNO, Theodor. Introdução à dialética. Tradução de Erick Calheiros de Lima. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

BUENO, André. A dialética e a malandragem. In: Revista Letras, nº. 74, Editora UFPR: Curitiba, 2008.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1997.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MENDES, Rodrigo. Dialética da marginalidade: Considerações sobre o conceito de João Cesar de Castro Rocha. In: https://aterraeredonda.com.br/dialetica-da-marginalidade/

OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 44, pp. 105-124.

ROCHA, João Cesar de Castro. A guerra de relatos no Brasil. Ou a “dialética da marginalidade”. In. Letras, 32, Santa Maria, 2006.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. KURZ, Robert. A ditadura do tempo abstrato: o trabalho como desajustamento da era moderna. In: Margem esquerda – revista da Boitempo, nº 35, 2


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