Dois anos de desgoverno – rumo ao caos

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Por PAULO MARTINS*

Temos reflexos indeléveis e provas irrefutáveis de sua ação deletéria, vendida como inovadora

Há dois anos fomos colocados à prova de um novo governo. Jair M. Bolsonaro foi eleito, levando a defesa do liberalismo econômico às últimas consequências e o enaltecimento de pautas de viés moral que flertam com o pentecostalismo. Seu mote muito inovador: ser o representante da nova política, ou melhor, da direita mais virulenta.

Diante desse plano mínimo de ação, não sem o amparo “astrofilosófico” do mago da Virgínia olavista, Jair bombardeou impiedosamente o Estado e as instituições republicanas. Ninguém pode dizer que não fez nada em dois anos, ao contrário, fez muito, muito mesmo, de sorte que temos reflexos indeléveis e provas irrefutáveis de sua ação deletéria, vendida como inovadora.

O primeiro alvo do desgoverno: o Ministério da Educação. Ricardo Vélez Rodrigues assume o ministério, declarando que sua proposta era de cunho liberal-conservador. Suas relações com o ensino privado e com “certa religiosidade” ameaçaram a educação pública e sua laicização. Mas esse durou pouco.

Algo pior estava por vir: Abraham Weintraub. Talvez, na história da República, não tenhamos uma personagem tão escatológica – o nosso primeiro cavaleiro do negacionismo. Sua “carteira” de asneiras e danos é variada: o ataque as universidades federais; a perseguição às humanidades; a filmagem de professores em aula; as declarações descabidas contra estadistas, países, ex-presidentes; ataques racistas à China e aos povos indígenas; o “Future-se”, mais conhecido como “Passade-se” e as ofensas ao STF, tudo isso incrementado com pérolas de seu repertório iletrado e sua sanha midiática.

A famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020 e o inquérito sobre as manifestações antidemocráticas no Supremo colocaram sua “segurança em perigo” e em 18 de junho pede demissão e fugido para os EUA, vale-se de passaporte diplomático para entrar no país sem visto.

A importância dada à educação é tão grande que logo em seguida à exoneração de Weintraub, quase tivemos um ministro não muito afeito às legalidades, Carlos Decotelli. Ele se apresentava como doutor sem ter defendido o doutoramento na Argentina, além de possuir denúncias de irregularidades em sua gestão do FNDE. E hoje temos Milton Ribeiro que até agora nada de bom fez, mas seguramente também não deve estar imune à política educacional de Bolsonaro.

Por sua vez, o meio-ambiente sempre foi uma grande preocupação do presidente, a começar pelo seu ministro, o resistente ex-estudante de Yale que nunca foi reconhecido pela instituição, Ricardo Salles, o nosso segundo cavaleiro do negacionismo. Sua função é prover o presidente de munição anti-ambiental. Afinal, nada daquilo que nos últimos 30 anos foi feito ou referendado pelo Estado brasileiro em relação ao meio ambiente, a partir da Conferência Rio 92, do Protocolo de Kyoto (1997) e da Emenda Doha (2012); da Rio +20 (2002); da COP 21 (2012) e do acordo de Paris (2015) é assumido pelo planalto na voz de seu ministro do Meio-ambiente.

Mais ainda, assistimos à ação deletéria dele contra instituições importantíssimas como o INPE, o ICMBio e o IBAMA que, em certa medida, poderiam ter tido uma ação mais efetiva combatendo o desmatamento e as queimadas, como faziam há anos. O governo preferiu estar ao lado de grileiros, latifundiários, grandes empresas transnacionais, mineradoras e madeireiras a defender os povos indígenas, o extrativismo sustentável, logo, a natureza. Preferiu perder Alemanha e Noruega como parceiros do Fundo Amazônia a garantir níveis mínimos de sustentabilidade.

As ações contra o meio-ambiente nos afetam nacional e internacionalmente, elas prejudicam a nossa economia e nossa política externa, aquela massacrada por Guedes, esta combalida pelo terceiro cavaleiro do negacionismo, Ernesto Araújo. Sua pregação, esta, sim, dogmática – vale a leitura de “Sequestrar e perverter” de sua lavra – avalia que a causa ambiental a que ele dá o nome de “climatismo” foi tomada pelas esquerdas a fim de que os Estados Nacionais sejam subjugados pelos organismos multilaterais – que vergonha! – o que explica muito das posições do presidente em relação à OMS, ONU, UNICEF, etc.

O ministro retira da pauta ambiental qualquer critério científico. Nega-o. Afora isso, Araújo com ajuda do ex-futuro embaixador nos EUA, Eduardo Bolsonaro, também provê o presidente de “escopo intelectual” na demarcação de posições brasileiras de subserviência a Donald Trump. Apenas depois de 38 dias passados da eleição de Biden e Harris, a presidência os reconhece como eleitos.

Mas como não falarmos das ações de Bolsonaro na área da saúde? Comecemos com um inventário: em dois anos, 3 ministros e em 10 meses de pandemia, os mesmos 3. Ainda que vejamos Mandetta como alguém razoável, muitas de suas posições à frente do Ministério da Saúde foram positivas e por isso mesmo colidiam com as de Jair, nunca nutriu amores pelo Mais Médicos ou pelo SUS, este sem o qual as mortes na pandemia seriam muitos mais preocupantes.

Contudo, em meio a crise, se posicionou bem a ponto de em entrevista à rádio Jovem Pan o tolo mandatário declarar: “O Mandetta quer fazer muito a vontade dele”. Mandetta, em seguida, sucumbiu àqueles da direita furiosa já que ele mesmo se autodeclara conservador. Nelson Teich, que o sucedeu, pouco ou quase nada pode fazer em quase trinta dias como ministro da Saúde.

Por fim, o quarto cavaleiro do negacionismo, Eduardo Pazuello não é médico, não é sanitarista, biomédico, enfermeiro ou biólogo: é general. O fato por si não é problemático, José Serra, entre 1998 e 2002, foi ministro da Saúde e, justamente nesse cargo, implantou o programa de combate à AIDS, tido como exemplar para ONU; teve a coragem de quebrar patentes em nome do interesse de saúde pública e contribuir com uma luta firme contra o tabagismo.

Mas acreditar que a área de formação possa ajudar é um caminho prudente. O governo defende que o ministro seja um estrategista, que cuida de logística, vai ver que é por isso que quase perdemos 6.8 milhões de testes; por isso confirma a intenção de compra da Coronavac do Butantã/Sinovac e depois volta atrás; por isso vai ver que conseguiu licitar apenas 2.4 % das seringas necessárias à vacinação; por isso fecha os olhos às aglomerações; por isso não liga para uso de máscara e por isso tudo seja apenas um irresponsável e cínico.

Os conservadores – hoje eufemismo para uma direita furiosa – se veem numa cruzada político-moral e religiosa. Esquecem que é função do governo regrar a sociedade política, exercendo sua autoridade com vistas ao bem-comum. A direita furiosa – os conservadores – confunde política de Governo com política de Estado. Este é composto por uma sociedade heterogênea, a qual não se pode discriminar ideológica ou politicamente. As diferenças religiosas, culturais, étnicas, de gênero e de orientação sexual devem ser respeitadas. A função desse fundamento é garantir indistintamente a igualdade, eliminando a discriminação e levando a harmonia entre todos.

Estes dois anos de desgoverno nos levam a entender que independentemente do setor, Bolsonaro e seus cavaleiros irão nos levar ao caos por irresponsabilidade e por absoluta tacanhez diante das reais necessidades da Nação.

*Paulo Martins é professor de Letras Clássicas e Diretor da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Imagem e Poder (Edusp).

 

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