Eleições recentes na América Latina

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Por GILBERTO LOPES*

Os pleitos mostram a dificuldade para transformar em apoio majoritário as propostas progressistas

Pedem-me para falar das eleições recentes, no Equador, na Guatemala e na Argentina. Como analisar esses temas?

Em 20 de Agosto os eleitores guatemaltecos elegeram Bernardo Arévalo presidente da República. Duas acadêmicas norte-americanas, Shannon K. O’Neil (vice-presidente, subdiretora de Estudos y membro principal de Nelson y David Rockefeller para Estudos de América Latina no Council of Foreign Relations) e Will Freeman (Fellow para Estudos Latino-americanos no CFR e Ph.D en Politics da Universidade de Princeton) referem-se a Arévalo como “um candidato anticorrupção”. A campanha austera de Bernardo Arévalo é um signo dos tempos atuais, afirmam. E dizem que, na Guatemala, o dinheiro não pôde comprar estas eleições. Cada vez mais são os candidatos com mais seguidores em Tik Tok os que ganham. Não os que dispõem de mais recursos.

Abro um parêntesis para tocar um tema de grande atualidade no Brasil. Entre as reformas que o pai de Arévalo, Juan José Arévalo, presidente da Guatemala entre 1945 e 1951, tratou de consolidar na constituição de 1945, estava a reestruturação do Exército, com a suspensão do generalato, decretada com o triunfo do movimento revolucionário de 1944 (no cenário marcado pelo fim da II Guerra Mundial), junto com o esforço por profissionalizar o exército, tema ao qual a constituição dessa época dedicou todo um capítulo.

Uma experiência interessante, em circunstâncias muito diferentes das atuais, mas que talvez mereça nossa atenção. Quem sabe se o filho tentará retomar essa iniciativa, num país onde o exército desempenhou, no cenário da Guerra Fria, um papel criminoso, principalmente contra a população indígena de seis milhões de habitantes, que representam de 45% a 60% do total da população guatemalteca, e que continuam sendo um fator de muito peso na vida do país.

Retomo o fio da nossa conversa. As acadêmicas norte-americanas comparavam a campanha de Bernardo Arévalo com a de Daniel Noboa, no Equador, membro de uma das famílias mais ricas do país, filho de um empresário cinco vezes candidato à presidência, sem êxito. O filho teria sido a surpresa nestas eleições graças ao seu bom desempenho no debate eleitoral (e não pelos recursos despendidos em sua campanha).

Tudo isso pode ser verdade, mas é difícil aceitar a ideia sem nenhuma suspeita, principalmente sabendo como são, por exemplo, as milionárias campanhas americanas (e as latino-americanas também); qualquer uma delas exigindo enormes recursos, seja para prefeito, para deputado, ou para presidente.

Talvez com mais realismo, li no Correio da cidadania um título que dizia: “Segundo turno no Equador entre progressistas e milionários”.

Sobre Luisa González, a candidata de Revolución Ciudadana, o partido de Rafael Correa, se dizia que, como mulher, mãe solteira, podia abrir o espectro eleitoral a novos eleitores. Luisa González é de Manabí, uma província eleitoralmente importante, e tem uma característica inesperada para um movimento de esquerda: é evangélica. Nos resumos mais habituais, essas são as características destacadas da candidata. Naturalmente, também sua afiliação ao “correísmo”.

Resta ver se desta vez poderá somar, a seus 33% dos votos, o que falta para a maioria absoluta no segundo turno. Nas eleições passadas não puderam, apesar da votação similar, de 32%, obtida pelo correísmo no primeiro turno.

Sobre a situação eleitoral no Equador, o site A Terra é Redonda publicou, na sexta feira, 25 de agosto, um artigo bem informado, do sociólogo equatoriano Francisco Hidalgo.

Mas tudo isto são simples cálculos eleitorais. Naturalmente, muito importantes, mas acho que não é esse o aspecto mais importante para nossa conversa desta tarde.

Gostaria de botar tudo isto num contexto mais amplo: o da nossa dificuldade para transformar em apoio majoritário as propostas progressistas, confrontadas com a ressurgimento de aspectos mais irritantes de uma direita que, na minha opinião, não deve dividir-se facilmente em “extrema”, por um lado, e outra, mais “civilizada”, com a qual poderíamos conviver. Não gosto muito dessas definições, ainda que não desconheça o debate que surge inevitavelmente quando uma sociedade se enfrenta a desafios lançados por grupos mais radicais e deve escolher uma estratégia para enfrentá-los. Um debate que pode se resumir entre uma opção “democrática” contraposta a outra, “ditatorial”.

Esses são debates de contingência, sempre polêmicos, difíceis de resolver, mas inevitáveis. Esses debates não podem ser resolvidos simplesmente com normas gerais. Ainda que essas sejam indispensáveis, nesses casos a especificidade de cada experiência adquire particular importância.

Ficarei aqui, portanto, num nível mais geral de discussão, tratando de entender as dificuldades que têm os que podemos chamar “setores progressistas” (sem entrar em maiores discussões sobre a definição) para apresentar uma proposta política atrativa para setores majoritários da sociedade.

Como deixar atrás o mundo neoliberal

E aqui, se me permitem, vou me referir, mais que à Argentina, ao caso chileno, onde os debates são intensos, no contexto dos 50 anos do golpe contra Salvador Allende, que irei acompanhar, no Chile, a partir de 8 de setembro.

Sobre o debate constitucional chileno e o resultado do referendo de setembro de 2022 publiquei o artigo “O debate constitucional chileno” no site A Terra é Redonda.

Nele dizia que, visto a 50 anos de distância, o Chile necessitava retomar o rumo de reformas interrompido pela ditadura. Analisando o tema mais amplamente, perguntava-me: que projeto de desenvolvimento necessita a esquerda latino-americana para realizar reformas que desmontem o mundo neoliberal? Parece-me que essa é a essência do desafio.

O que é, para mim, o modelo neoliberal? É o modelo de um setor voraz e minoritário, cujo objetivo é apropriar-se da maior quantidade de riqueza possível de um país. Elemento principal para lograr esse objetivo é a privatização de empresas públicas por grupos empresariais nacionais e estrangeiros. No caso chileno, principalmente do cobre, que Salvador Allende nacionalizou e havia definido como “o salário do Chile”. Não é difícil encontrar exemplos parecidos no Brasil. Cito os casos da Vale, da Petrobrás e da Eletrobrás. Mas são só alguns exemplos.

A destruição das organizações sindicais e políticas que pudessem se opor a esse projeto é também tarefa permanente do projeto neoliberal.

Como lembrou, faz já muitos anos, o destacado líder do conservador partido chileno Renovación Nacional, Andrés Allamand, deputado, senador, ministro de Relações Exteriores no governo de Sebastián Piñera, no seu livro La travesía del desierto, o que Pinochet ofereceu à direita neoliberal foi a oportunidade de aplicar, de forma radical, sem restrições do poder político, as transformações exigidas pelo modelo neoliberal. “Mais de uma vez, no frio penetrante de Chicago, os esforçados estudantes que sonhavam com transformar a cara do Chile, devem ter quebrado a cabeça com uma pregunta só: ganhará alguma vez a presidência alguém que se encarregue deste projeto? Agora [com o golpe militar] já não tinham mais este problema”, disse Andrés Allamand.

A frase nos permite introduzir outro tema: o dos direitos humanos. Para mim, fica perfeitamente claro que a violação dos direitos humanos não foi mais do que uma ferramenta para conseguir os objetivos políticos e econômicos de uma direita sem escrúpulos. A principal violação dos direitos humanos foi essa política neoliberal.

Se é assim, ganha particular importância definir uma proposta progressista que não se limite ao acessório: neste caso, os direitos humanos. Uma proposta que não deixe de lado, que o transforme em sua principal reivindicação, o desmantelamento dos mecanismos que permitiram o assalto à riqueza pública e particular dos chilenos, como o caso escandaloso das AFP’s, as “Administradoras de Fondos de Pensiones”. Não é possível entrar aqui em detalhes sobre este tema, que o economista Marco Kremerman e a Fundación Sol, entre outros, analisaram detalhadamente.

O que quero destacar aqui, porque entendo que essa relação não tem sido adequadamente tratada, é a importância que atribuo a essa política neoliberal e aos mecanismos de destruição das organizações políticas e sociais populares. Qualquer análise dos “direitos humanos” desvinculada de seu contexto político só serve para pôr os latino-americanos a brigar entre eles, com Washington olhando, aplaudindo sentada na primeira fila da plateia.

Os Estados Unidos que, como sabemos, não ratificaram nenhum instrumento de direitos humanos, entre eles a Convenção e a Carta Interamericana. Direitos humanos violados sistematicamente por sanções ilegais que Washington aplica contra Cuba há décadas, condenadas praticamente por unanimidade, ano após ano, na Assembleia Geral das Nações Unidas. Sanções impostas mais recentemente à Venezuela, e que Washington aplicou ao Chile durante o governo de Allende.

Como disse o sociólogo Felipe Portales, num artigo intitulado “Chile: 50 años de neoliberalismoo modelo de sociedade extremamente neoliberal imposto violentamente pela ditadura, não foi combatido, mas legitimado, consolidado e aprofundado pacificamente nos 30 anos de “democracia”. Ou seja, nunca fomos capazes de recuperar o projeto da Unidad Popular, projeto construído sobre a apropriação dos recursos nacionais pelo Estado e pelo estímulo à organização política e social dos setores populares.

Felipe Portales critica o modelo “concentrador da riqueza em grandes grupos econômicos fundamentalmente financeiros, extrativistas e controladores dos sistemas de educação, saúde e de previdência, apoiados pelo Estado e com setores populares e médios atomizados e sem nenhum poder real”.

Devemos aprender dessa lição, ainda que entendamos bem as dificuldades de transformar uma visão geral em política prática, que responda às necessidades de cada caso particular.

No Chile, muito recentemente, um comentarista da radio Bio bio, muito popular e crítico do governo de Gabriel Boric, Tomás Mosciatti, nos lembrou que “o governo não tem feito nada quanto à ofensiva concentração econômica que existe no país”, fato que, na sua opinião, “atenta contra o mercado”. Gabriel Boric e companhia – continuou – “não têm a menor ideia de quem são os mais necessitados, de quem são os mais pobres. Por isso, majoritariamente, nas duas últimas eleições foram os setores mais desfavorecidos os que votaram contra Gabriel Boric e seu governo”.

Com certeza não é uma opinião compartilhada por todo mundo, muito menos pelo governo de Gabriel Boric. Mas eu acho que não está muito afastada da realidade, nem deixa de apontar para um problema fundamental.

Acho que Tomás Mosciatti tampouco está muito preocupado com os mais necessitados, mas não deixa de ter razão na sua crítica ao governo de Boric, um dos principais referentes da política de defesa dos “direitos humanos” que o colocou ao lado do que há de mais reacionário na América Latina, por ocasião da cúpula sul-americana de maio passado, em Brasília, quando reclamou da Venezuela, sem fazer qualquer referência às sanções impostas pelos Estados Unidos a esse país.

Acho que posso resumir esta já longa apresentação com uma frase de Paulo Nogueira Batista sobre o governo chileno, frase que ajuda a entender todo este processo, bem como nossas enormes dificuldades para estruturar uma alternativa que enfrente o modelo neoliberal: “Gabriel Boric é a esquerda de que a direita gosta”. Uma vertente da esquerda “focada na chamada ‘agenda identitária’, ou seja, nas questões relacionadas a gênero, raça e outros aspectos identitários, em detrimento das pautas sociais e trabalhistas”.

Na minha opinião, isto resume bem o desafio de reconstruir uma ideia de nação que só terá futuro se puser fim aos mecanismos de destruição ou debilitamento de toda organização popular, e se recuperar os recursos hoje apropriados por poderosos setores minoritários, fundamento dos mecanismos que alimentam a enorme desigualdade que caracteriza nossas sociedades.

Uma proposta

As regras de organização política para a América Latina foram estabelecidas na Carta Democrática Interamericana, aprovada pela Assembleia Geral da Organização de Estados Americanos (OEA) em setembro de 2001 no Peru.

Trata-se de um documento que consagra os princípios liberais, os mesmos que tem servido de base de praticamente todas as ditaduras e para os modelos neoliberais na América Latina, como fica claro no texto do conservador chileno, Andrés Allamand.

O primeiro parágrafo da Carta afirma que a Carta da Organização dos Estados Americanos reconhece que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região e que um dos objetivos da OEA é promover e consolidar a democracia representativa, respeitando o princípio da não-intervenção.

Depois deste parágrafo, o que segue são as normas que regulam a intervenção nos países que decidam procurar novos modelos de organização política, econômica e social, sem que o princípio de não intervenção seja respeitado ou sequer mencionado outra vez.

“No caso de Pinochet, foi-lhe atribuído o milagre do Chile, uma experiência bem-sucedida de mercados livres, privatização, desregulamentação e expansão económica, cujas sementes de liberalismo se espalharam de Valparaíso à Virgínia”, escreveu o jornalista Greg Palast, em 2006. Pinochet havia falecido dois dias antes.

Greg Palast opinava que Pinochet não havia destruído a economia chilena sozinho. “Foram precisos nove anos de trabalho árduo das mentes académicas mais brilhantes do mundo, um bando de aprendizes de Milton Friedman, os Chicago Boys. Sob o feitiço das suas teorias, o general aboliu o salário mínimo, proibiu os direitos de negociação dos sindicatos, privatizou o sistema de pensões, aboliu todos os impostos sobre a riqueza e os rendimentos das empresas, reduziu o emprego público, privatizou 212 indústrias estatais e 66 bancos, e atingiu o excesso fiscal”.

A relação entre essa política econômica liberal e as mais cruéis violações dos direitos humanos fica clara, não só no texto já citado como também nas práticas habituais das ditaduras latino-americanas. É bem conhecido o debate sobre o apoio de Friedrich Hayek a Pinochet, a quem o filósofo economista visitou por primeira vez quatro anos depois do golpe de Estado, em 1977.

Provavelmente não errarei se digo que a imensa maioria dos latino-americanos nunca leu essa Carta Democrática. Menos ainda a estudou. É um documento que estabelece um marco político para o funcionamento de nossas sociedades e sanções para quem sair desse marco. Aprovada em Lima, Peru, em 11 de setembro de 2001, num clima político muito diferente das exigências de hoje, é preciso discutir essa Carta de caráter liberal, e adapta-la às diversas necessidades políticas da nossa região. Criar condições para sair desse marco rígido imposto à região.

Essa discussão seria uma extraordinária oportunidade de repensar nossa ordem política, de esclarecer aspectos fundamentais dessa ordem. Poderia dar um novo impulso ou trabalho das forças progressistas, reanimar o debate político, hoje certamente carente de renovadas perspectivas.

Sobre isso talvez seja útil ver um artigo de Tarso Genro, publicado em A Terra é Redonda, no dia 25 de agosto, com o título de “Para onde vai a social-democracia”. Ele faz referência a um programa das Nações Unidas, “Reconstruindo o Estado de Bem-estar nas Américas”, lançado pelo PNUD em 1996, coordenado hoje por Jorge Castañeda, Gaspard Estrada e Carlos Ominami. Conheço pouco o trabalho de Estrada, mas tenho certeza que com Ominami e, principalmente com Castañeda, o chanceler de Vicente Fox, esse trabalho não terá destino útil algum. Tampouco vejo, nas propostas de Tarso Genro, a necessária renovação desse debate.

Poque não dar um empurrão nessa porta e entrar nele com ideias mais frescas?

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Palestra na reunião do Observatório Político da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.


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