Em defesa das universidades

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Por EVERALDO DE OLIVEIRA  ANDRADE

As ameaças ao ensino público e gratuito no estado de São Paulo

Temos assistido, nos mais diversos níveis de governo, a um novo ciclo de ataques ao direito fundamental e constitucional à educação. Estudando um pouco da história da educação no país, rapidamente nos damos conta de que a negação deste direito constitui uma pedra de toque do projeto de dominação de nossas elites políticas e econômicas desde os tempos do Brasil Colônia, e que se prolonga, embora marcado por resistências e conquistas democráticas que precisam ser defendidas a cada momento.

Uma novidade deste novo ciclo é o ataque frontal à universidade pública. Outrora compreendida como parte integrante do projeto de modernização e desenvolvimento econômico do país, a universidade pública é descrita pela extrema direita hoje, curiosamente, como inimiga do desenvolvimento.

A fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, decorreu, em grande medida, da compreensão de um setor da burguesia de que sem a formação de pessoal de alto nível, tanto para promover e acompanhar o avanço da técnica, quanto para compreender e solucionar problemas os graves problemas econômicos, sociais e mesmo políticos que enfrentávamos à época, seria impossível fazer com que São Paulo e o país colocassem, já com grande atraso, seus pés na modernidade.

De fato, a implantação e posterior expansão da universidade pública no estado de São Paulo foi decisiva para alavancar o desenvolvimento regional e colocar o estado em posição de liderança econômica no país. Tanto o setor produtivo (industrial, como agrícola) quanto o setor de serviços foram diretamente beneficiados pela implantação bem sucedida da USP, alavancada pela vinda de professores estrangeiros e missões francesas, americanas, italianas, inglesas, espanholas e alemãs, com sua sucessiva expansão. A fundação de novos campi universitários passou a ser reivindicada por cidades no interior do estado, o que motivou a expansão da USP e da UNESP, especialmente, com a fundação de unidades novas e/ou a incorporação de universidades privadas falidas – então reformadas e reestruturadas.

No estado de São Paulo, a fundação da USP seguiu-se à fundação da UNICAMP – Universidade de Campinas – e da UNESP – Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, com o propósito não apenas de ampliar nossa capacidade de empreender avanços em pesquisa científica e melhorar nosso parque  tecnológico, como para estender ao interior do estado a possibilidade de formar pessoal qualificado, sem obrigar à migração a juventude que partia em busca do diploma universitário.

Com o crescimento da região metropolitana de São Paulo, por sua vez, intensificou-se a demanda popular pela construção e inauguração de novos campi universitários, que deslocassem o eixo da universidade pública, fixado na zona oeste da cidade de São Paulo, nos campi Butantã e Pinheiros da USP, em direção a outras regiões do município, bem como a outros municípios da região metropolitana.

Assim nasceu o campus Leste da Universidade de São Paulo, com a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH), e também novos campi de universidades federais, que ganharam fôlego potente durante a gestão de Luís Inácio Lula da Silva no governo federal – com a inauguração da Universidade Federal do Grande ABC (UFABC) e de ampliação da Universidade Federal de São Paulo, que assistiu à inauguração do campus Guarulhos, do campus Osasco, do campus Diadema e do campus Zona Leste, bem como do campus Baixada Santista, no litoral, e do campus São José dos Campos, no Vale do Paraíba. Essas ampliações só foram possíveis porque mudou a correlação de forças sociais. Foram os governos do partido que retomaram a ampliação em larga escala das universidades e de novas centenas de campi em São Paulo e pelo país.

Essa ampliação da rede pública de ensino superior, bem-vinda e saudada, não se deu sem contradições. No caso particular do campus Leste da USP, parte de seu projeto de implantação, que vetava a oferta de cursos em carreiras tradicionais (sob a alegação descabida de que já eram oferecidas nos outros campi da USP), inaugurando, em contraposição, carreiras de caráter técnico, que ainda sequer dispunham de reconhecimento ou legislação própria para pronta aceitação de seus formandos no mercado de trabalho, já ofereciam sinal da má intenção do governo estadual – na época conduzido por Geraldo Alckmin, do PSDB – em instituir uma hierarquização interna na universidade, com demérito para o novo campus, instalado em uma região periférica. Em outras palavras, a democratização do ensino superior e do acesso da população trabalhadora às posições melhor remuneradas nunca esteve no horizonte dos tucanos. Tratava-se apenas de oferecer uma quantidade limitada de diplomas com acesso a posições de nível médio.

O ataque pior dos tucanos à universidade, contudo, ainda estaria por vir. Atualmente, as universidades estaduais e a FAPESP – principal órgão de fomento à pesquisa no estado de São Paulo – estão sofrendo de forma direta a ameaça de confisco dos recursos  junto com as propostas de extinção de diversas instituições e serviços públicos estaduais (CDHU, Instituto Florestal, EMTU etc.) com o projeto de Dória PL  529/2020, que tramita na Assembleia Legislativa. Esse projeto na prática destrói a autonomia das universidades públicas estaduais, impedindo que haja planejamento interanual dos orçamentos, que estão comprometidos com projetos de pesquisa que ultrapassam a lógica dos orçamentos anuais.

Lembrando que o PL 529/2020 não chega em qualquer momento. É imposto à sociedade em um contexto no qual encontramos Bolsonaro, na esfera federal, destruindo de modo veloz e avassalador os órgãos nacionais de fomento à pesquisa – a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa) no país, que afetam de maneira brutal o financiamento à pesquisa no estado de São Paulo. Isso aliado à perseguição a intelectuais, desrespeito às instâncias democráticas das universidades e suas autonomias, veto à abertura de novos concursos e congelamento de salários, com consequente congelamento das carreiras acadêmicas, formação e renovação de quadros (fundamentais para manutenção de projetos em andamento e desenvolvimento de novos projetos).

Desde o início de seu governo, Dória tem adotado medidas semelhantes. A UNESP encontra-se impedida de abrir novos concursos há mais de dez anos – medida agora estendida também à USP (resolução 7955/2020). Sem concursos de acesso para professores, a capacidade dos docentes efetivos de dedicar-se à pesquisa reduz-se, junto com a desvalorização do quadro docente, ocupado por professores substitutos continuamente repostos (dada a impossibilidade legal de que um professor temporário concorra a novo concurso para a mesma vaga), que não constituem vínculo com estudantes, nem podem aprofundar-se no ensino de matérias específicas; e que recebem salários aviltantes, desvalorizando a carreira e desestimulando o aproveitamento dos quadros mais qualificados para a academia.

A cada final de ano, docentes e funcionários veem-se diante da ameaça de não conseguirem receber 13o. salários. No caso da UNESP, a situação é tão grave que departamentos inteiros tiveram que ser fechados, em função da insuficiência de professores efetivos para conduzir as atividades mínimas necessárias para a manutenção de seus cursos – como no caso emblemático do curso de Artes Cênicas do campus São Paulo. Doutorandos acabam assumindo cadeiras no lugar de professores, sacrificando tanto sua dedicação à própria pesquisa (que deveria ser integral) quanto, de modo desastroso, a qualidade da formação na graduação.

Os governos tucanos foram pioneiros em desrespeitar decisão da comunidade acadêmica na indicação de reitores, em gesto de desrespeito à autonomia universitária, e têm buscado, reiteradamente, reduzir a vinculação do ICMS (9,57%) destinado às universidades públicas. Junto com esforços para impor cortes orçamentários, vêm os projetos para enxugamento do quadro de docentes e funcionários, terceirização de serviços e aumento do controle sobre a “produtividade”, considerada sob a ótica exclusiva do controle político sobre as estruturas acadêmicas e em consonância com as diretrizes do programa autoritário e neoliberal em curso.

Esse ataque dos governos tucanos, no estado de São Paulo, e de governo Jair Bolsonaro, em nível federal, à universidade pública, não é casual. Decorre, claro, de sua clara intenção de esvaziar o Estado, privatizando e mercantilizando todos os serviços, até os mais fundamentais e estratégicos, mas também do propósito de desmontar as instituições encarregadas de difundir o conhecimento científico e o pensamento crítico. O projeto político destes governantes envolve o desgaste da cidadania democrática, a manutenção de privilégios econômicos e o enfraquecimento da democracia e da autonomia (diretamente ligada à educação e à cultura) dos indivíduos. Revela mais profundamente o descaso com a ciência e a capacidade de inovação tecnológica nacional, a submissão aos ditames do mercado internacional, das tecnologias e saberes importados, a renúncia a qualquer projeto de nação.

A autonomia universitária que visa preservar a liberdade para a produção científica, artística, cultural e que deveria ser um componente obrigatória e fundamental de uma sociedade democrática, é incompatível com os interesses do grande empresariado que apoia os governos Doria, Covas e Bolsonaro. Nesse sentido, uma dentre as dramáticas consequências do ataque à universidade pública envolve seus desdobramentos no que tange à qualidade da formação de professores para os demais níveis de ensino – notadamente da educação básica.

Pela defesa da universidade pública, democrática e gratuita!

*Everaldo de Oliveira Andrade é Professor do Departamento de História da FFLCH-USP.

 

 

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