Engels e a complexidade – II

Imagem: Oto Vale
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Por OSAME KINOUCHI*

Tradição científica e filosófica na obra de Friedrich Engels

As ciências da complexidade apresentam alguns temas recorrentes: a emergência de comportamentos qualitativamente novos em sistemas dissipativos fora do equilíbrio, a aparente tendência de sistemas complexos de situarem-se na borda de transições de fase e pontos de bifurcação, dinâmicas históricas que apresentam equilíbrio puntuado, uma tentativa de complementar ideias de evolução Darwiniana com certas ideias de progresso (aumento de capacidade computacional) etc. Tais temas, na verdade, pertencem a uma longa tradição científica e filosófica e, curiosamente, aparecem já na obra de Friedrich Engels na década de 70 do século XIX.

O diálogo entre Norman Yoffee e Chris Langton

Antropólogo da Universidade do Arizona e especialista na dinâmica da formação do Estado, Norman Yoffee descreveu a história das antigas civilizações da Mesopotâmia, o Iraque moderno. — A formação do Estado sempre acontece rapidamente. Os Estados são presumíveis e previsíveis. Chris Langton imediatamente reiterou o que tinha dito sobre as transições de fase em física e sua analogia com outros sistemas, inclusive as mudanças entre níveis diferentes de complexidade social. — Vejo tudo sob a ótica das transições de fase — admitiu. (…) Mas Chris tinha em mente algo mais do que simples analogia, algo mais que mera coincidência de padrão. – Talvez haja algo basicamente igual nos dois sistemas, de modo que os padrões sejam os mesmos, n ̃ao importa quais os detalhes do sistema [Lewin, 1994].

Em níveis baixos de desenvolvimento tecnológico, podemos pensar que a economia esteja num estado estacionário correspondente ao estado estacionário de uma camada de fluido submetida a um aquecimento fraco. (…) Em níveis mais elevados de desenvolvimento tecnológico, ou de aquecimento, podemos contar com oscilações periódicas. De fato, ciclos econômicos aproximadamente periódicos foram observados. Em níveis ainda mais altos de desenvolvimento tecnológico, poderíamos ter uma superposição de duas ou três periodicidades diferentes, e os analistas econômicos viram tais coisas.

Enfim, em níveis suficientemente altos de desenvolvimento, deveria haver uma economia turbulenta, com variações irregulares e uma dependência sensível das condições iniciais. Não deixa de ser razoável afirmar que atualmente vivemos numa tal economia. (…) Mas se tentarmos fazer uma análise mais quantitativa, topamos imediatamente com o fato de que os ciclos e outras flutuações da economia ocorrem sobre um fundo geral de crescimento. Há uma evolução histórica de sentido único que não podemos esquecer. De resto, os ciclos econômicos têm seu caráter histórico: cada um é diferente, não assistimos simplesmente à repetição monótona do mesmo fenômeno dinâmico. (…) Acho, porém, que nosso roteiro não é totalmente falso e que seu valor não é meramente metafórico. Porque? Porque não utilizamos certas propriedades subtilíssimas dos sistemas dinâmicos, mas, pelo contrário, robustos fatos de base. (…) Nosso roteiro, mesmo que tenha escasso valor quantitativo, pode, portanto, ser razoável qualitativamente [Ruelle, 1993].

Eis o que diz Engels no livro A dialética da natureza:

Na Natureza, de uma maneira fixada exatamente para cada caso individual, mudanças qualitativas podem somente ocorrer pela adição quantitativa ou quantitativa subtração de matéria ou movimento (a assim chamada energia). Se imaginarmos qualquer material não vivo sendo cortado em porções cada vez menores, de início nenhuma mudança qualitativa ocorre. Porém isto tem um limite: se conseguirmos, por exemplo por evaporação, obter as moléculas separadas em um estado livre, então é verdade que podemos usualmente dividi-las ainda mais, porém somente com uma completa mudança de qualidade. A molécula é decomposta em seus átomos individuais, os quais possuem propriedades muito diferentes daquelas da molécula. (…) os átomos livres de oxigênio são facilmente capazes de efetuar o que átomos de oxigênio atmosférico, ligados juntos na molécula, nunca podem alcançar”.

Mas a molécula também é qualitativamente diferente da massa do corpo do qual ela pertence. Ela pode desenvolver movimentos independentes dessa massa enquanto esta última permanece aparentemente em repouso, ou seja, [apresentar] vibrações térmicas; e por meio de mudanças de posição e de conexão com moléculas vizinhas é possível mudar o corpo em um alótropo ou um estado diferente de agregação. Assim, vemos que a operação puramente quantitativa de divisão possui um limite no qual ela se torna em uma diferença qualitativa: o corpo consiste somente de moléculas, mas ele é algo essencialmente diferente da molécula, do mesmo modo que a última é diferente do átomo”.

Uma intensidade de corrente mínima é requerida para fazer brilhar o fio de platina de uma lâmpada incandescente elétrica; e cada metal têm sua temperatura de incandescência e de fusão, cada líquido seus pontos definidos de congelamento e ebulição a uma dada pressão (…); finalmente, também cada gás possui seu ponto crítico no qual ele pode ser liquefeito por pressão e esfriamento. Em resumo, as assim chamadas constantes físicas são na sua maior parte nada mais que designações dos pontos nodais nos quais adição quantitativa ou subtração de movimento produz mudança qualitativa no estado do corpo considerado, nos quais, portanto, quantidade é transformada em qualidade”.

Na Biologia, como na História da sociedade humana, a mesma lei vale a cada degrau, mas preferimos nos basear aqui em exemplos tirados das ciências exatas, uma vez que aqui as quantidades são acuradamente mensuráveis e podem ser seguidas. Provavelmente os mesmos cavalheiros que até agora descreveram a transformação de quantidade em qualidade como misticismo e transcendentalismo incompreensível agora irão declarar que ela é na verdade algo bastante auto-evidente, trivial e lugar-comum, a qual eles têm empregado há muito, de modo que não lhes foi colocado nada de novo. Mas ter formulado pela primeira vez na sua forma universalmente válida uma lei geral do desenvolvimento da natureza sociedade e pensamento, sempre permanecerá um ato de importância histórica”.

Transições de fase e fenômenos sociais emergentes.

Simulação é um modo de se fazer experiências de pensamento. Enquanto que as assunções podem ser simples, as consequências podem não ser óbvias. Os efeitos de larga escala de agentes interagindo localmente são chamados de ‘propriedades emergentes’ do sistema. Propriedades emergentes são frequentemente surpreendentes porque pode ser difícil antecipar todas as consequências mesmo de formas simples de interação [Axelrod, 1997].

O estudo de dilemas sociais provê insight numa questão central do comportamento: como cooperação global entre indivíduos confrontados com escolhas conflitantes pode ser assegurado. Estes avanços recentes mostram que comportamento cooperativo pode na verdade surgir espontaneamente em situações sociais, desde que os grupos sejam pequenos e diversos em composição e que seus constituintes possuam perspectivas [de interação] de longo prazo. Ainda mais importante, quando a cooperação aparece, isto acontece repentinamente e de forma imprevisível, após um longo período de estase [Glance&Huberman, 1994].

Da interação dos componentes aqui embaixo surge uma espécie de propriedade global aqui em cima, algo que não poderia ter sido previsto a partir do que se sabe das partes componentes — continuou Chris Langton. — E a propriedade global, esse comportamento que surge, faz a retro-alimentação, influenciando o comportamento dos indivíduos aqui embaixo que o produziram. A ordem resultante de um sistema dinâmico complexo era como Chris a descrevia: propriedades globais brotando do comportamento gregário de indivíduos [Lewin, 1994].

Seguem abaixo trechos de Engels sobre esse ponto:

“A História se faz ela mesma de tal maneira que o resultado final é sempre oriundo de conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é moldada por um conjunto de condições particulares de existência. Existem inumeráveis forças que se entrecruzam, uma série infinita de paralelogramos de forças que dão origem a uma resultante: o fato histórico. Este, por sua vez, pode ser considerado como o produto de uma força que, tomada em seu conjunto, trabalha inconscientemente e involuntariamente. Pois o desejo de cada indivíduo é frustrado pelo de outro, e o que resulta disso é algo que ninguém queria. Assim é que a História se realiza como se fosse um processo natural e está sujeita, também, essencialmente às mesmas leis de movimento”.

“Mas, do fato de que as diversas vontades individuais — cada uma das quais deseja aquilo a que a impelem a constituição física dos indivíduos e as circunstâncias externas (sejam pessoais ou da sociedade em geral que, em última instância, são econômicas) — não atinjam o que querem, mas se fundam numa média coletiva, numa resultante comum, não se deve concluir que o seu valor seja igual a zero. Pelo contrário, cada uma dessas vontades individuais contribui para a resultante e, nesta medida, está incluída nela. Eu pediria ao senhor que estudasse mais a fundo esta teoria nas suas fontes originais e não em fontes de segunda mão. Marx raramente escreveu alguma obra em que ela n ̃ao tivesse seu papel, mas especialmente O 18 Brumário de Louis Bonaparte é um excelente exemplo de sua aplicação” (carta de Engels a Konrad Schmidt, 5/8/1890).

“Assim, por exemplo, em O Capital de Marx, toda a seção 4a, dedicada ao estudo da produção da mais-valia relativa ao âmbito da corporação, da divisão do trabalho, e da manufatura da maquinaria e da grande indústria, contém inúmeros casos de simples mudanças quantitativas que fazem com que se transforme a qualidade das coisas.(…) Temos, por exemplo, o fato de que a colaboração de muitas pessoas, a fusão de muitas forças numa só força total, cria, como diz Marx, uma nova potência de forças que se diferencia, de modo essencial, da soma das forças individuais associadas” (Anti-Dühring, Cap. XII).

“Somente depois de (…) fundamentar o fato de que não basta uma pequena soma qualquer de valor para que se possa converter em capital, mas que, para isso, um período todo de evolução e um ramo todo de produção deverão ultrapassar um determinado limite mínimo, somente depois de tudo isso e em relação a estes fatos é que Marx adianta: ‘Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas” (Anti-Dühring, Cap. XII).

A interpenetração dos opostos: Ordem versus desordem, estabilidade versus instabilidade e os estados críticos.

1 – Langton—A velha visão do mundo da natureza era que ele pairava ao redor de equilíbrios simples. A ciência da complexidade diz que isso não é verdade. Os sistemas biológicos são dinâmicos, não facilmente previsíveis, e são criativos de muitas formas. (…) Na velha visão de equilíbrio do mundo, as ideias sobre mudança eram dominadas pela forma ação ereação. Era um mundo mecânico, aborrecidamente previsível ao máximo. Nessa espécie de mundo, você não podia ter avalanches de extinções e especiações de todas as magnitudes provocadas por uma mesma magnitude de mudança ambiental, por exemplo, como vemos nos modelos dinâmicos complexos [Lewin, 1994].

Você vê transições de fase a toda hora no mundo físico— disse Chris Langton. Você sabia que as membranas celulares estão apenas equilibradas entre o estado líquido e o sólido? Dê só um leve puxão, (…) deixe que uma únicavmolécula de proteína se ligue a um receptor na membrana, e você poderá produzir grandes mudanças, mudanças biologicamente úteis. Perguntei se ele estava dizendo que as membranas biológicas estão no limite do caos, e não por acidente. — Estou. Estou dizendo que o limite do caos é onde a informação põe o pé na porta do mundo físico, onde ela exerce controle sobre a energia. Estar no ponto de transição entre a ordem e o caos não somente dá a você um controle apurado — pequeno estímulo/grande mudança – mas também permite que o processamento de informação se torne parte importante da dinâmica do sistema [Lewin, 1994].

A posição de Engels sobre esse tópico:

“No organismo vivente, assistimos a um incessante movimento de todas as suas menores partículas, assim como de seus órgãos principais, donde resulta um continuado equilíbrio do organismo na sua totalidade, durante o período normal de vida e que, no entanto, sempre permanece em movimento, a vivente unidade de movimento e equilíbrio” (Dialética da Natureza, Notas).

“O equilíbrio é inseparável do movimento (…). A possibilidade de um corpo ficar em equilíbrio relativo, a possibilidade de estados temporários de equilíbrio, é a condição essencial de diferenciação da matéria, e portanto, da vida. (…) Na superfície do Sol há um eterno movimento e inquietude, dissociação. Na Lua, parece prevalecer exclusivamente o equilíbrio, sem movimento relativo algum. Na Terra, o movimento diferenciou-se, tendo-se estabelecido o intercâmbio entre movimento e equilíbrio: o movimento individual tende para o equilíbrio e o movimento, em seu conjunto, destrói mais uma vez o equilíbrio individual. (…) Todo equilíbrio é apenas temporário e relativo”. (Dialética da Natureza, Notas).

A interpenetração dos opostos: Memória versus mutação, tradição versus inovação e a evolução para a borda do caos.

[No meu modelo computacional ecológico] se eu aumentar a taxa de mutação, o sistema deve se tornar caótico e extinguir-se. A uma taxa mais baixa, possivelmente não acontecerá nada de interessante. Entre essas duas velocidades, deveria produzir-se uma rica ecologia – disse-me Tom Ray a respeito de seu sistema Tierra [Lewin, 1994].

[No modelo de quasi-espécies de evolução molecular] o processo Darwiniano de organização fora do equilíbrio apresenta um paralelo claro com transições de fase ordem/desordem. No nosso caso, um valor de q muito pequeno [q 0, alta fidelidade de cópia genética] leva a um único tipo de molécula (uma população viral uniforme), enquanto que altas taxas de erro (q → 1) leva a um conjunto de moléculas totalmente aleatórias sem qualquer identidade biológica. (…) Observa-se uma transição abrupta para um certo valor de q, conhecida como catástrofe de erro. (…) Evidências experimentais mostram claramente que os retro-vírus estão tipicamente auto-organizados muito perto da catástrofe de erro. Neste sentido, o espectro largo de mutantes faz com que a otimização evolucionária se torne mais rápida [Soléet al., 1996].

Uma passagem em que Engels aborda essa questão:

“A teoria da evolução demonstra, tendo por base a simples célula, como cada progresso no sentido de uma planta mais complexa, por um lado, e no sentido do homem, por um outro, obedece à um contínuo conflito entre herança e adaptação. Em face disso, fica evidente como são pouco aplicáveis a tais formas de evolução categorias tais como positivo e negativo. Pode-se conceber a herança como algo positivo, conservador; e a adaptação como o lado negativo, que destrói continuamente as qualidades herdadas; mas igualmente se pode considerar a adaptação como sendo uma atividade criadora, positiva, e a herança como atividade resistente, passiva, negativa. (…) A teoria Darwiniana é a prova prática da íntima conexão entre acaso e necessidade conforme defendida por Hegel” (Dialética da Natureza, Notas).

A interpenetração dos opostos: Competição versus cooperação e a cooperação competitiva.

A noção de se usar ecossistemas como uma metáfora para sistemas econômicos pode parecer bizarra. Afinal, a companhia ideal tem sido há muito pensada como uma máquina suavemente funcionando e sendo conduzida à objetivos específicos sob a direção de um onisciente, onipotente funcionário executivo chefe (CEO). A metáfora de companhias como espécies — alimentando-se do dinheiro dos consumidores e interagindo como em um ecossistema — traz algumas mudanças importantes. Primeiro, CEOs terão que se acostumar a pensar suas companhias não como máquinas, mas mais como organismos vivendo em comunidades, o que muda a natureza de suas visões econômicas.

Segundo, CEOs terão que perceber que têm muito menos controle sobre o destino de suas companhias do que gostariam de acreditar. Esta mudança no modo que líderes de negócios vêm seu mundo leva a um paralelo notável com mudanças recentes no pensamento dos ecologistas. Basicamente, é um afastamento da visão que encara o mundo como simples, previsível e rumando para o equilíbrio; é um reconhecimento que o mundo é complexo, imprevisível e está longe do equilíbrio. É também uma superação da visão de que a competição cabeça-a-cabeça é a força fundamental que dá forma às comunidades ecológicas e de negócios. A maioria dos negócios têm sucesso se outros também são bem sucedidos. Competição é parte do quadro, é claro, mas longe de ser a única parte. Cooperação e construção de redes mutuamente benéficas são importantes também. Bradenburger e Nalebuff descrevem esta estratégia conjunta com o termo co-opetição, o qual é também o título de seu livro [Lewin, 1997].

Um trecho da obra de Engels:

“Antes de Darwin, o que era enfatizado por seus seguidores atuais era precisamente o funcionamento cooperativo harmonioso da natureza orgânica, como o reino vegetal fornece aos animais alimento e oxigênio, e animais suprem plantas com adubo, amônia e ácido carbônico. Mas logo depois que as teorias de Darwin foram geralmente aceitas, essa mesma gente mudou de rumo e começou a ver em todo lugar nada mais que competição. Ambas as visões são justificadas dentro de certos limites, porém ambas são igualmente unilaterais e estreitas. A interação de corpos na natureza não-vivente inclui ambos harmonia e choques; em seres vivos, tanto cooperação consciente e inconsciente como consciente e inconsciente competição. Por conseguinte, no que respeita à Natureza, não é aceitável arvorar apenas a bandeira unilateral da luta. É também inteiramente pueril pretender resumir toda a múltipla riqueza da evolução histórica e complexidade na magra e unilateral frase ‘luta pela existência’”(Dialética da Natureza, Notas).

A interpenetração dos opostos: Acaso versus necessidade e o caos determinista.

À primeira vista, o determinismo Laplaciano não reserva nenhum lugar ao acaso: se lanço ao ar uma moeda, as leis da Mecânica Clássica determinam, em princípio, com certeza, se ela cairá cara ou coroa. Como o acaso e as probabilidades, na prática, desempenham um papel importante em nossa compreensão da Natureza, podemos ser tentados em rejeitar o determinismo. De fato, como veremos, o dilema acaso/determinismo é amplamente um falso problema.

Em primeiro lugar, não há incompatibilidade lógica entre acaso e determinismo, já que o estado de um sistema no instante inicial, em vez de fixado de maneira precisa, pode ser disposto conforme certa lei de acaso. Se assim for, a qualquer outro instante, o sistema terá, também uma distribuição ao acaso, e essa distribuição poderá ser deduzida da distribuição do momento inicial, graças às leis da Mecânica. Na prática, o estado de um sistema no instante inicial nunca é conhecido com uma precisão perfeita, ou seja, sempre se admite um pouquinho de acaso no estado inicial do sistema. Veremos que esse pouquinho de acaso no instante inicial pode proporcionar muito acaso (ou muita indeterminação) num momento ulterior. Notamos assim que, na prática, o determinismo não exclui o acaso. No máximo pode-se dizer que — se se quiser — há como apresentar a Mecânica Clássica sem nunca falar de acaso. Veremos mais adiante que isso já não é verdade para a Mecânica Quântica. Assim, duas idealizações diferentes da realidade podem divergir muito do ponto de vista conceitual, mesmo se suas predições forem praticamente idênticas para uma ampla classe de fenômenos [Ruelle, 1993].

Um trecho selecionado do livro Dialética da natureza:

“Outra oposição que se acha enredada a metafísica é a de acaso e necessidade.(…) O senso comum e, com ele, a maioria dos homens de ciência, tratam a necessidade e o acaso como determinações que se excluem mutuamente e para sempre. Uma coisa, uma relação, um processo, ou é casual ou é necessário; mas não as duas coisas simultaneamente. Em vista disso, ambas existem lado a lado, na Natureza; esta contém toda classe de objetos e processos, entre os quais, uns são acidentais e outros necessários. O que interessa, portanto, é não confundir ambas as classes. Em posição contrária a essa opinião, está o determinismo, que se transferiu do materialismo francês para a ciência e que procura liquidar o acaso, desconhecendo-o. (…) O fato de que, esta noite, às quatro da madrugada, uma pulga tenha me mordido, e não às três ou às cinco, e justamente do lado direito do ombro e não na barriga da perna esquerda: todos esses fatos são produzidos por uma irrevogável concatenação de causa e efeito, por uma irremovível necessidade e, certamente, duma tal maneira, que a esfera gasosa da qual se originou o sistema solar estava já constituída de forma a que estes fatos teriam de se verificar assim e não de outro modo. Contrariando ambas as concepções, apareceu Hegel com as proposições, até então inauditas, segundo as quais (…) o acaso é necessário, que a necessidade se determina a si própria como acaso e que, por outro lado, o acaso é, talvez, uma necessidade absoluta. A ciência continuou ignorando, simplesmente, essas proposições (…) e teoricamente persistiu, por um lado, nas vacuidades mentais da metafísica de Wolff segundo a qual uma coisa ou é casual ou é necessária, mas não ambas ao mesmo tempo; ou então, nesse um pouco menos vazio determinismo mecânico: o que nega o acaso, em geral por meio de palavras, para acabar reconhecendo-o na prática, em cada caso particular” (ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza, Notas).

*Osame Kinouchi é professor do Departamento de Física da FFCLRP-USP.

Para ler a primeira parte acesse: https://aterraeredonda.com.br/mudanca-endogena/

 

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