Exército: a serviço de quem?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

O delírio autoritário e o “Inferno tão temido”

A democracia liberal em crise no mundo – no Brasil que degrada de forma planejada o Estado Social – agora faz uma paródia de si mesma. Nesta degradação, a relação do fascismo societal, racista e escravocrata, com o escárnio da República promovido pelo Presidente Bolsonaro, chega ao momento da sua potência máxima. E este máximo – o inferno tão temido, como no conto de Onetti – ainda está incompleto. Não se sabe, ainda, se o nosso destino está tolhido pela última manifestação da Caserna ou se ele vai ser reaberto pelo que nos resta de vergonha republicana.

A nota do Ministro da Defesa, firmada pelos demais Comandantes das Forças Armadas, não tem a finalidade principal de atemorizar, mas tem um objetivo muito mais complexo: tirar a dúvida dos políticos tradicionais sobre “de quem” é o Exército: se é de Bolsonaro ou da República, como determina a Constituição.

Esta dúvida, no pensamento tutelador que a escreveu, deve ser expurgada da mente do corpo político (deve ter pensado o Ministro da Defesa) porque se ela prosperar, um militar fracassado que é Presidente, pode deixar de contaminar a caserna, que então absorverá – finalmente – que o Exército não é uma guarda pretoriana a serviço de uma família, mas uma instituição a serviço da Constituição e da Soberania Nacional.

O excelente livro de Marcia Tiburi, Complexo de vira-lata (Civilização Brasileira, 2021) é um conjunto invejável de ideias sobre a dominação e a humilhação dos brasileiros – de antes da República e de agora- que tem vários momentos de brilho. A obra ajuda na compreensão da tragédia nacional em andamento e em alguns momentos – como quando a autora discorre sobre o que designa como “Complexo de Colombo” – ilumina toda uma época. Este complexo seria no plano da subjetividade popular o modo de criar consensos, através de uma adesão formatada pela violência.

Esta seria a “matriz subjetiva fundamental que constitui o sujeito do surgimento das Américas” (…) “padrão de dominação que envolve Estado, Igrejas” (…) processo “reiterado por séculos” (…) “que é um padrão de relação com o outro, no qual não se pode dizer que haja comunicação”, (…) no qual “não se promovem trocas”, senão “a reprodução da invasão e da violência”. Nesse padrão, os indígenas e os escravos são primariamente os “outros” desconhecidos, invadidos e violentados – nas suas mentes e corpos – para serem desalojados das terras mercantilizadas e dos seus corpos tornados mercadorias.

Este padrão de dominação no capitalismo moderno envolve desde o controle da informação pelos oligopólios da mídia, a reprodução da ignorância e do charlatanismo pelas religiões fundamentalistas do dinheiro, até a eterna tutela das Forças Armadas sobre os processos políticos da democracia liberal. Esta tutela se explicita em momentos de crise, nos quais ela não informa, nem pretende intercambiar opiniões, mas quer ordenar o estado de coisas e advertir dos perigos identificáveis.

Mas quais seriam estes perigos, na paródia atual? Seria a possibilidade de que quadros militares em funções civis podem ser identificados como corruptos e tal fato poderia ferir a corporação tuteladora? Se este era o “perigo” a ser superado, o que fez a Nota – na verdade – foi promover o aumento do perigo e o esvaziamento da Constituição: os atos criminosos de militares em funções civis, se ocorreram, deveriam promover o expurgo legal destes militares e a sua punição por delitos cometidos naquelas funções civis, onde desonraram a farda e agrediram a honra das Forças Armadas e das instituições civis do Estado.

A afirmação do modo de dominação nas crises se serve, sempre, de “homens-bomba” para concentrar as culpas e simular a superação das mazelas da velha democracia liberal, que há mais de 200 anos não renova as suas instituições. Na sua etapa ultraliberal, porém, ela satisfaz as identidades pessoais dos cidadãos pelos fetichismos da igualdade no mercado, não pelo direito de participar de uma comunidade de destino na formação da nação. É o momento em que a democracia tateia em busca de uma luz, que não seja um trem no fundo do túnel, que venha tutelar as promessas da República.

Esta Nota dos militares foi o trem do momento. Tomara seja apenas uma ficção das trevas que a Constituição cidadã tentou sepultar para sempre. Pensar que os militares do país possam se conceber como guardiões do bolsonarismo demente é matar toda a esperança e acolher a possibilidade de que o “Haiti é aqui!”. Ou que estamos vivendo a entrada do Inferno de Dante, ou que o fantasma de Hitler se firme num horizonte de sangue, como um Vampiro da história, encarnando o “Complexo de Colombo”.

Neste, a humilhação deixa de ser uma tática fundamental e passa a ser a estratégia estatal da morte. Ninguém acreditava que isso fosse possível na Alemanha dos anos 1920, mas hoje estamos começando a aprender que a História pode se repetir, tanto como tragédia pura, mas também como farsa e paródia coexistindo com ela.

Fora Bolsonaro, antes que seja tarde!

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES