Fanatismo, intolerância e ignorância

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLÁVIO AGUIAR*

Os críticos de um dos quadros apresentados no desfile inaugural das Olimpíadas demonstraram que não souberam “ler” nem a pintura de Da Vinci, nem o quadro cênico do desfile

Na sequência da abertura dos Jogos Olímpicos em Paris tivemos a oportunidade de assistir um verdadeiro festival de fanatismo, de intolerância confusa e também de ignorância difusa.

Um dos quadros apresentados no desfile inaugural provocou uma enxurrada furiosa de críticas, alegando que ele ofendia sentimentos cristãos ao parodiar o quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.

 As críticas vieram de várias fontes, de vários ângulos, e pelo menos de dois continentes: Europa e América, todas preocupadas em proteger a fé religiosa contra a suposta impiedade sacrílega dos organizadores e atores do festim olímpico.

Protagonizaram as falas bispos e arcebispos conservadores da Igreja Católica, políticos da extrema direita francesa, italiana e também da brasileira e até o candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, numa entrevista à Fox News.

Um detalhe curioso: na entrevista, Donald Trump não menciona o quadro olímpico. Quem o faz é a jornalista que formula as perguntas. Ele se limita a comentar: “um desastre”, “uma desgraça”, etc. Este detalhe sugere que a jornalista está ansiosa por induzir o comentário, o que, de certo modo, desqualifica a entrevistadora, a entrevista e a opinião do entrevistado…

Os críticos sugeriam que, ao parodiar o famoso quadro, o desfile insultava de modo sacrílego o evento bíblico que ele representa, a narrativa da última ceia de Jesus Cristo com os apóstolos, logo antes da crucificação.

Só contra-comentando: quanta ignorância reunida…

Em primeiro lugar, os críticos demonstraram que não souberam “ler” nem a pintura de Da Vinci, nem o quadro cênico do desfile.

Há diferenças substantivas entre eles. Para começo de conversa, no quadro de Da Vinci há treze figurantes, incluindo o Cristo. No quadro olímpico há um número bem maior de personagens, pelo menos 17 somente no primeiro plano. Neste, se no centro da mesa há um personagem com uma espécie de halo prateado em torno da sua cabeça, quem preside de fato a cena, no primeiríssimo plano, é uma representação de deus do vinho – o Dionísio grego ou o Baco dos romanos – cujo corpo está coberto por uma cor azul, coisa completamente estranha ao quadro de Da Vinci.

Neste quadro quem preside a cena é o próprio Cristo, cujo corpo , de braços abertos e caídos representa um triângulo – imagem alegórica da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.

Também deve-se levar em conta que Da Vinci focaliza um momento específico da Última Ceia, aquele em que Jesus anuncia que um dos apóstolos o trairá. É portanto um momento extraordinariamente dramático do evento.

Nada disto transparece na representação parisiense. Ela não representa uma ceia, mas um banquete prazeiroso e alegre. Não há traição nela. Pelo contrário, há festa e congraçamento. Há um único elemento comum entre ambas as manifestações artísticas: o vinho. Mas em Da Vinci, na sequência do momento focalizado, ele representará o sangue do próprio Cristo. No desfile, ele não é consagrado nem santificado, mas é apresentado pelo deus Dionísio como um símbolo do prazer inebriante.

Em resumo, se há uma referência artística por trás do desfile, não se trata da Última Ceia, mas do quadro O festim dos Deuses, do pintor holandês Jan van Bijlert, do século XVII, hoje no Museu Magnin, em Dijon, na França. Ele representa o banquete do casamento da ninfa ou nereida Tétis com o rei Peleus, pais do guerreiro Aquiles, do poema A Ilíada, de Homero. O banquete é presidido pelo deus Apolo, ou Hélios, com um halo luminoso ao redor da cabeça, e tem, no primeiro plano, o deus Dionísio, ou Baco, além de um sátiro dançarino.

Convenhamos: este quadro tem mais a ver com a tradição da antiguidade grega, fundadora dos jogos olímpicos clássicos que inspiraram os modernos, do que o quadro de Da Vinci. Porém o fanatismo religiosos dos críticos da extrema direita fundamenta também sua ignorância preconceituosa, comprovando que eles nada entendem de história da arte, nem de jogos olímpicos, muito menos de tradição bíblica.

Por último, mas não menos importante, deve-se ressaltar que a fúria dos críticos foi alimentada pelo fato dos atores da representação, na abertura dos jogos, serem personalidades da cena LGBTQIA+ francesa, o que acrescenta ao seu bolo indigesto o fermento do preconceito homofóbico e sexista.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

Publicado originalmente no site da Rádio França Internacional (Agência Rádio-Web).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • O pedido de impeachment de Alexandre Moraesstf supremo brasília niemayer 15/09/2024 Por MARCELO AITH: Os processos de ruptura democrática se iniciam, invariavelmente, com o enfraquecimento do Poder Judiciário, como ocorreu na Hungria com o primeiro-ministro ditador Viktor Orbán
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • Brasil paraleloLUIS FELIPE MIGUEL 2024 16/09/2024 Por LUIS FELIPE MIGUEL: A Brasil Paralelo é a maior impulsionadora de conteúdo político nas plataformas sociodigitais do Brasil. Dinheiro não falta, no seu trabalho de doutrinação do público
  • Contradição educacionallousa 4 15/09/2024 Por FERNANDO LIONEL QUIROGA: Os adjetivos do professor e a máquina de moer o passado
  • Pablo Marçal entre Goiânia e São Paulogo sp 13/09/2024 Por TADEU ALENCAR ARRAIS: É um equívoco imaginar que o sucesso de Marçal se localize, apenas, no domínio das dinâmicas das redes sociais
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES