Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*
Sem uma verdadeira refundação da República, não há saída do pântano em que o Brasil se encontra
“Quem luta pode perder, quem não luta já perdeu” (Bertold Brecht).
A graça presidencial concedida por Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira, condenado a mais de oito anos de cadeia por instigar violência contra o STF, aprofunda a anarquia institucional que acompanha a crise terminal da Nova República. Destituída de qualquer fundamento constitucional e moral, a medida é um desacato aberto aos princípios mais elementares de equilíbrio entre os poderes. Trata-se de uma violência inaceitável contra o que ainda resta das conquistas democráticas da luta contra a ditadura.
A ousada ofensiva golpista do presidente miliciano não deveria causar surpresa. Pescador em águas turvas, Bolsonaro jamais escondeu sua admiração pela ditadura militar e sua intenção de dar uma solução despótica para a crise da Nova República. Apesar de seu primarismo grosseiro, não deve ser subestimado. Se mantiver o controle absoluto da iniciativa política e carta branca para extrapolar os limites da lei, o capitão-do-mato é um sujeito político perigosíssimo.
É uma temeridade apostar todas as fichas no desgaste provocado pela catástrofe monumental que significam seus quatro anos de desgoverno para a maioria da população, na “solidez das instituições” e no “espírito democrático” dos donos do poder como antídotos à conspiração golpista. O primeiro pressuposto pode ser temporariamente neutralizado pelas medidas eleitoreiras de transferência de renda. Os outros dois não passam de pensamento mágico. A derrota eleitoral de Jair Bolsonaro encontra-se longe de estar garantida e, mesmo que estivesse, não significaria o fim da ameaça ditatorial.
A falência das instituições democráticas é patente. A omissão criminosa do Ministério Público Federal nos atropelos em série de Jair Bolsonaro à legalidade, a indulgência do Poder Legislativo com seus inúmeros crimes de responsabilidade e a intervenção ostensiva dos militares na política nacional revelam que os poderes instituídos são impotentes para enquadrar Bolsonaro, quando não cúmplices – assumidos ou envergonhados – da escalada contra o Estado de direito. Sem uma verdadeira refundação da República, não há saída do pântano em que o Brasil se encontra.
Até o momento, os abusos de Bolsonaro contaram com a absoluta condescendência das classes dominantes. A escalada autoritária foi funcional tanto para “fazer a boiada passar” quanto para conter as mobilizações sociais. A ameaça de golpe transforma a eleição numa verdadeira chantagem, que reduz a opção do cidadão à escolha do mal menor. É preciso ter consciência de que, apesar de a burguesia não ter dado luz verde para o golpe, ela tampouco avalizou o impeachment. Com a cartada ditatorial na manga, os donos do poder ficam em condições de jogar o terror sobre os trabalhadores; e sempre há a possibilidade de darem luz verde à aventura despótica, se a oposição dentro da ordem não se enquadrar às exigências do capital.
A ousadia de Bolsonaro para desafiar a ordem carcomida da Nova República contrasta com a timidez das forças políticas que se unificaram em torno da Frente amplíssima pela democracia. Ao apostar no caos institucional, Bolsonaro mobiliza sua tropa e coloca em xeque a credibilidade do status quo. Mesmo sendo porta-voz máximo da plutocracia reacionária, traveste-se de portador do novo, ocupando o vácuo político gerado pelo abandono da esquerda de um discurso de mudanças estruturais. Enquanto Jair Bolsonaro se apresenta como a encarnação da antipolítica, atropela às regras do jogo e investe na excitação permanente de sua base política, Lula faz exatamente o contrário: aposta em conchavos com caciques políticos e em encontros a portas fechadas com empresários e trabalhadores. Reivindicando-se guardião do status quo e garantidor da paz social, desestimula a mobilização de sua base social. Aos empresários, promete “previsibilidade” e “segurança jurídica; aos trabalhadores, pede que priorizem o lobby parlamentar em vez das manifestações em Brasília.
A renúncia à mobilização de sua base social e política deixa a Frente amplíssima pela democracia encabeçada por Lula e Alckmin numa perigosa armadilha. Sem a presença das forças comprometidas com a defesa do Estado de direito nas ruas, é impossível barrar o avanço da escalada autoritária e mudar a correlação de forças que, desde a resposta reacionária às Jornadas de Junho de 2013, impulsiona a ofensiva da burguesia contra os direitos dos trabalhadores e contra as instituições democráticas e republicanas.
O silêncio da oposição dentro da ordem diante das recorrentes ameaças de Jair Bolsonaro à democracia é estarrecedor. A barbárie política não pode ser banalizada e naturalizada. Não há espaço para tergiversação. Terceirizar a responsabilidade pela defesa do Estado de direito às instituições falidas da Nova República e confiar no “bom senso” da plutocracia significam deixar o caminho aberto para o avanço da conspiração golpista da extrema direita. A decisão de Bolsonaro de confrontar o STF é um inequívoco crime de responsabilidade que coloca na ordem do dia a urgência de sua imediata deposição.
Os últimos anos foram esclarecedores. A burguesia rompeu todos os nexos morais com as classes subalternas e não tem compromisso com as liberdades democráticas. As instituições encontram-se em pandarecos e demonstraram-se absolutamente impotentes para enquadrar Bolsonaro nas regras do jogo. A liberdade só pode ser defendida e ampliada pela mobilização dos trabalhadores nas ruas. A deposição de Jair Bolsonaro é a tarefa emergencial do momento. Exige coragem e ousadia política. Não há tempo a perder. A campanha do Fora Bolsonaro tem de ir às ruas já.
*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).