Fragmentos XXXVII

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Por AIRTON PASCHOA*

Três peças curtas

Gente que labutava de sol a sol, que escondia as mãos, a voz, gente calada e calejada. Gemia por ela em dia santo a moda de viola no rádio. Gente velha, velhos maduros, velhos marmanjos, velhos mirins a caminho da sina, as mulheres a caminho da missa, os jovens a caminho da pelada, os homens a caminho do pito. Avós, mães, tias, primas, sem pressa o casarão varavam, velando, o rosto, o passo, o passado. Minha avó, miúda e muda, deitava e levantava de madrugada, era a primeira a abrir e a última a fechar os olhos. Depois que faleceu o marido e caiu de cama, rogou aos filhos a deixassem morrer, estava cansada. Não sei se estranharam o apelo. Morreu, pelo menos. De longe em longe, batendo o suspiro, talvez escapava com o pensamento de amargar o riso ralo, não sei, quem sabe. Os caipiras eram caipiras.

Pés de boi a vida toda, vida de Interior, vida puxada de erres e ermos, da soidão de pastos, de léguas, de línguas além de nosso alcance; decerto contraídos de cãs e cãibras desfeito este, com filhos, netos, nesta quadra em que pouco conta diferença de dez, quinze anos. Roque não era o morgado, tampouco o benjamim, ficava ali pelo meio, regulando de idade com meus irmãos primogênitos. Sua feição mesma, ora forçando a memória, mal se fixa, a brincar de esconde com os demais. A ordem que me botou em seu lugar pra brigar com o vizinho, pivete, terá mesmo descido dele? Penso talvez não passem todos de roques, não passe de finta, passe do tempo, o redeslembrado, por cuja existência devera jurar, não tivesse sido o primo a desgarrar — do campinho, da pequena cidade, da família grande, da paróquia próxima, do pelo-sinal. Os dedos em cruz selando lábios se agarraram em capas e canetas, selando o desenlace.

Bem lembrado: promotor e juiz, O Primo finalizou a luta por falta de combatividade.

caipira de bebericar café com tudo
bolinho de chuva de arroz de couve-flor do que for
pé de mandioca que nada ranca do chão
mandrião medrosão de se pelar
lobisomem sombração saci
sobiar de noite chama o saci
alma penada então de cobrir a cabeça
histórias que contava a vó de itararé
histórias que o povo conta
programa radiofônico de arrepiar a nuca menina
o diabo me perseguindo em sonho até hoje
continuo a desvirar chinelo
(escondido)
padre donizetti benzia o copo d’água ao pé do rádio
seis horas ave maria
tinha que dar um gole da água benta
missa todo bendito domingo
mãe carola filho pistola
pai bronco bronca sem fim
não pula na cama desliga a tevê olha a água olha a luz olha a conta
o velho implorando caipirinha no leito de morte e negando os
filhos arrenegados
ninguém é imperfeito
a beata de chinelo ao alto
pronto pra esquentar o traseiro da prole
atalhava o peão de trecho
dia santo socorria a estação remanso
lá vai a chalana bem longe se vai
aumentando uma dor que não entendia
                                                                 sumindo na curva do rio
banzo capiau
devaneio de aldeia adulto
síndrome da inocência perdida
caipirinhas de chita em tranças & danças
cantigas de cerrar os olhos e rodar 
mundo passado mundo parado
a noite eletrificada mal alumia
não se ouve pio de coruja
não se vê voo de sabedoria
damos boa-noite sem fé
outrora se pedia bênção
                                        também sem fé
mas se dormia

*Airton Paschoa é escritor. Autor, entre outros livros, de Peso de papel (e-galáxia). [https://amzn.to/3XVdHE9]


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