Gangsters digitais

Imagem: Vlado Paunovic
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Por ARTHUR COELHO BEZERRA*

Gigantes de tecnologia como Alphabet, Meta e Twitter querem impedir a todo custo a aprovação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência da Internet

Na breve época de ouro da internet, quando proliferavam blogs pessoais, salas de bate-papo e compartilhamento peer-to-peer de arquivos no ambiente virtual (termos que parecem ter caído em desuso), o pensador franco-tunisiano Pierre Lévy ganhou fama com livros que incensavam uma espécie de utopia tecnoliberal, projetada pelas potencialidades do tal novo mundo virtual. Termos como “inteligência coletiva”, “democracia eletrônica” e “universos de escolha” compunham o ideário de sua cibercultura, cujo substrato humano estaria nas “comunidades virtuais” formadas por pessoas interconectadas em rede.

Os exemplos que Pierre Lévy lista em seu livro Cibercultura, de 1999, para ilustrar as tais comunidades virtuais são prosaicos: “fãs da culinária mexicana, amantes do gato angorá, fanáticos por uma determinada linguagem de programação ou leitores apaixonados de Heidegger, outrora dispersos pelo planeta, agora têm um lugar familiar para se encontrar e conversar”. É curioso que, de todo o panteão da filosofia, a escolha leviana (com trocadilho) tenha recaído sobre um pensador alemão que não escondia sua simpatia pelo antissemitismo e pelo partido nazista, do qual Heidegger fez parte de 1933 até a sua dissolução, no fim da Segunda Guerra.

Se o filósofo antissemita estivesse vivo e no vigor de seus 133 anos, não lhe faltariam comunidades virtuais para bater papo com seus semelhantes: como se sabe, a cibercultura dos novos anos 2020 está coalhada de grupos fascistas, misóginos, homofóbicos, racistas, golpistas e todo tipo de gente que utiliza as redes digitais para compartilhar ódio, raiva e bílis. O ódio é um afeto poderoso, que gera identificação com quem o compartilha e indignação de quem não o compartilha (ou, pior, é dele alvo).

Por isso, tanto nas redes sociais quanto em sites de notícias (sejam verdadeiras ou não), o discurso de ódio gera engajamento – não aquele antigo significado de engajamento, que se refere à participação em protestos, lutas trabalhistas, movimentos sociais ou partidos políticos. Na internet, o engajamento não é qualitativo e sim quantitativo, um fenômeno mensurável pela interação dos usuários da rede com determinado conteúdo. Essa interação gera a produção de dados por meio de cliques, comentários, compartilhamentos e visualizações, engordando o big data das corporações da internet.

Há um outro fator que é fermentado pela cibercultura de nossos dias e que resulta desse compartilhamento afetivo de comunidades misóginas, racistas, homofóbicas, fascistas e golpistas, ou seja, da hipertrofia do ódio: seu corolário é a atrofia da razão, da reflexão, da ponderação, enfim, do pensamento equilibrado, racional e razoável. O definhamento da razão, por sua vez, tem historicamente se mostrado um eficiente método para adubar o terreno no qual mentiras, notícias falsas e demais táticas de desinformação serão plantadas por indivíduos e grupos com interesses políticos e econômicos.

Assim como o ódio, a mentira também gera engajamento nas redes: notícias falsas são compartilhadas por quem acredita nelas ou por quem as faz circular por má fé, interesse pessoal ou canalhice, e são refutadas, desmentidas e denunciadas por quem age em defesa da verdade dos fatos. Em ambos os casos, retomando o livro contábil das big tech, o engajamento é medido pela interação dos usuários da rede com esse conteúdo, que gera a produção de dados por meio de cliques, comentários, compartilhamentos e visualizações, novamente dilatando o big data das corporações da internet.

A socióloga Shoshana Zuboff usa o termo “indiferença radical” para se referir à postura das big tech em relação ao que é curtido, clicado ou compartilhado em suas plataformas, valendo-se do surrado discurso da neutralidade tecnológica para se isentar do conteúdo disponibilizado por seus usuários. No entanto, considere-se a ampla circulação na internet de discurso de ódio, desinformação política e negacionismo científico e ambiental, aliada ao recrudescimento de comunidades virtuais terraplanistas, antivacinas e discriminatórias que financiam o impulsionamento de conteúdo desinformativo nas redes, prática que gera engajamento a partir dos critérios de relevância dos algoritmos que organizam a informação nas plataformas, sendo estes projetados segundo o interesse comercial de corporações bilionárias. São fatos que, mais do que levantar dúvidas, revelam as falácias a respeito da neutralidade moral das plataformas.

A essa altura, parecem estar claros os motivos pelos quais grandes empresas de tecnologia como a Alphabet (proprietária do Google e do YouTube), a Meta (dona do Facebook, do Instagram e do Whatsapp) e o Twitter querem impedir, a todo custo, a aprovação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência da Internet, que se propõe a regular as plataformas digitais de comunicação para que tenhamos um ecossistema informacional mais saudável, seguro e confiável. O PL2630, projeto de lei conhecido como “PL das Fake News”, prevê novas regras para o uso de redes sociais, aplicativos de mensagem instantânea e mecanismos de busca.

Nos capítulos do projeto que tratam da responsabilização e regulação das plataformas, figuram temas como a remuneração por conteúdo musical, audiovisual e jornalístico compartilhado nas plataformas digitais, o uso das redes sociais por crianças e adolescentes, a prática de crimes de racismo, discriminação, de terrorismo e de atentados contra o Estado de Direito, bem como a responsabilização (inclusive criminal) pela propagação de mensagens falsas em massa. Todos os itens elencados geram lucro para as big tech, que constantemente se esquivam de assumir responsabilidade sobre o conteúdo que circula em suas redes e tampouco prestam contas sobre as práticas de mediação algorítmica que tornam esta ou aquela informação visível ou invisível.

Passados mais de dois anos de discussões desde a sua apresentação em 2020, e depois de sofrer cerca de 90 emendas em seu texto original (dizia Bismarck que as leis são feitas como as salsichas), o retalhado e já combalido projeto finalmente foi entregue à Câmara dos Deputados pelo relator Orlando Silva na quinta-feira, dia 27 de abril, para ser votado na terça seguinte, dia 2 de maio.

Porém, um dia antes da votação, o jornal Folha de S. Paulo veicula uma reportagem sobre a ofensiva da Google contra o PL das Fake News. A jornalista Patrícia Campos Mello, que assina a matéria, apresenta as conclusões de um estudo do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que aponta que Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo anunciam e veiculam anúncios contra o PL 2630 de forma opaca e burlando seus próprios termos de uso, indicando os resultados de busca da Google para influenciar negativamente a percepção dos usuários sobre o projeto de lei.

No mesmo dia, muitos pesquisadores e usuários do Google compartilharam um print com a frase “O PL2630 pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil” estampada na página inicial do buscador, o que contribuiu para a decisão de abertura de um inquérito pelo ministro Alexandre de Moraes para julgar a conduta da empresa. Não obstante, o objetivo da big tech foi alcançado: no próprio dia 2 de maio, sob pressão da Google, da Meta, do Tik Tok e da oposição de direita (com forte atuação da bancada evangélica), a Câmara resolve adiar a votação por tempo indeterminado.

A postura da Google em relação ao PL2630 faz lembrar o escândalo envolvendo a coleta de dados que a Cambridge Analytica fez de milhões de usuários do Facebook, para, dentre outros expedientes, manipular o resultado da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e do Brexit no Reino Unido, em 2016. O caso fez com que Mark Zuckerberg fosse obrigado, como cidadão norte-americano, a passar por uma sabatina de mais de 600 perguntas em cerca de dez horas de depoimento em Washington, às quais respondeu da forma mais evasiva que foi capaz.

Já em relação às três intimações para depor que recebeu do parlamento britânico, o dono do Facebook, em termos metafóricos, apenas mostrou o dedo para os ingleses – e não foi o polegar do famoso “joinha” da rede azul. A insolência de Zuckerberg ao ignorar as intimações levou o parlamento britânico, no relatório sobre desinformação e fake news que publicou em 2019, a afirmar que “empresas como o Facebook não devem se comportar como “gangsters digitais” no mundo online, considerando-se estar à frente e além da lei”. O mesmo deve valer para o Twitter de Elon Musk, o Google de Larry Page e Sergey Brin e para qualquer CEO ou empresa que se julgue o Alpha e o Omega do universo digital.

*Arthur Coelho Bezerra é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ.


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