Por JÚLIO FISHERMAN*
Mais que um crítico do totalitarismo, Orwell foi um arguto analista do controle social no Ocidente. Sua percepção sobre a gestão da verdade e a espionagem em massa revela-se cada vez mais atual, ancorada num profundo compromisso ético com os oprimidos
1.
Mais conhecido por sua célebre distopia 1984 e a fábula A revolução dos bichos, George Orwell é um autor mais precioso e fundo do que estas duas obras indicam. Embora 1984 seja um livro de grande qualidade narrativa, sua fama foi bastante instigada por uma leitura unidimensional e vulgar de resenhistas liberais que a indicaram como um mero panfleto a denunciar a pústula do regime stalinista e, por tabela, de estados autoritários.
Já a reflexão quanto a sua perspicácia analítica de alta voltagem, a examinar mecanismos de controle social que começavam a florescer e que hoje estão cada vez mais bem delineados no dito “mundo livre”, ainda quando não é completamente ignorada e chega a ser realizada, é bem pouco desenvolvida e popularizada.
Se é verdade que a grande paisagem de sua obra magna não guarda correspondência com a realidade do já adiante ano de 2025, não se pode dizer que os instrumentos de gerência da percepção pública e coerção social nela delineados não estejam praticamente todos em operação e se aperfeiçoando a cada dia.
Depois das revelações de Edward Snowden, ninguém mais deve ignorar que laptops, smartphones e mesmo aparelhos de televisão, realizam uma vigilância diuturna devassando intimidades e, mais importante, funcionando como instrumentos de um hub de espionagem onipresente contra planos e interesses de nações e povos. Sem gozar do peso do testemunho de Edward Snowden, Carl Sagan, em um dos artigos que compõem O mundo assombrado pelos demônios (1995), já havia descrito a paisagem: “Outra interseção instrutiva da conspiração com a cultura do sigilo diz respeito à Agência de Segurança Nacional (NSA). Essa organização monitora telefones, rádios e outros meios de comunicação tanto de amigos como de adversários dos Estados Unidos. Sub-repticiamente, lê a correspondência do mundo. Seu movimento de interceptações diárias é imenso. Em épocas de tensão, enormes grupos de funcionários da NSA, fluentes nas línguas importantes, ficam sentados com fones de ouvido, monitorando em tempo real todas as informações, desde comandos cifrados do estado-maior da nação-alvo até conversas íntimas. Em relação a outros materiais, há palavras-chave que fazem os computadores selecionarem, para escrutínio humano, mensagens ou conversas específicas de interesse atual urgente. Tudo é armazenado, de modo que seja retrospectivamente possível voltar às fitas magnéticas – para se pesquisar a primeira aparição de um código, por exemplo, ou a responsabilidade de um comando numa crise. Algumas das interceptações são feitas a partir de postos de escuta em países vizinhos (a Turquia no caso da Rússia, a Índia no caso da China), em aviões e navios que estejam patrulhando por perto, ou em satélites furões na órbita da Terra. Há uma dança contínua de medidas e contramedidas entre a NSA e os serviços de segurança de outras nações, que compreensivelmente não desejam que suas conversas sejam escutadas”.
2.
Na era das fake news, como não pensar o controle da verdade alertado por George Orwell? Com o cinismo se alastrando e assediando todo o rigor da consciência que deve agora esquecer-se de si mesma e se prostrar ao critério da acomodação utilitária conforme a conveniência, onde e como não ver o duplipensar? Como se esquecer da força do apagamento e do revisionismo da história no quadro das reflexões sobre o presente? Ou como não ver a novilíngua na constrição do debate a espectros muito “ortodoxos” e reduzido de posições e mesmo de linguagem, tema aliás muito bem dissecado por Noam Chomsky?
Traços todos apontados por George Orwell e que já estão a limitar definitivamente o imaginário humano ao corpo de uma convivência que conduz todo o planeta a um beco sem saída onde o apocalipse é considerado a única “solução”!
E não havia profecia do combativo escritor inglês em nada disso. Tratava-se sim de um diligente caráter observador e, mais importante, de um espírito humano intensamente comprometido com a vida. Características que, sem espaço para dúvidas, foram as que tornaram George Orwell um autor de grande envergadura.
Quando, como outros tantos militantes internacionais, se somou à luta de operários, anarquistas e comunistas, para combater a investida golpista e fascista de Franco, que acabou prevalecendo na Espanha, George Orwell buscou também acompanhar a cobertura jornalística dessa guerra de maneira assídua.
Como testemunha ocular de inúmeros fatos e acontecimentos, notou não apenas como esses eram deturpados e falseados, mas como novas narrativas passavam a ocupar o lugar de velhas e muitas vezes dizendo praticamente o contrário do que havia sido dito antes! Em outras palavras, uma verdadeira metamorfose ambulante em matéria de propaganda ideológica conforme o processo da luta e da relação entre as diversas tendências políticas, internas e externas, se desenrolavam.
Esta vertiginosa experiência (geo)política e antropológica, de um observador participante que miraculosamente não morreu com um tiro na garganta, foi registrada em diversas resenhas e artigos de debate que manteve na imprensa inglesa interrogando e criticando o modo como essa noticiava os acontecimentos e articulações envolvidas no conflito. Para abordar essa experiência pessoal e o tema da formação e gerência da percepção pública, Orwell escreveu Homenagem à Catalunha, valioso livro de memórias e ensaio reflexivo.
Escrito com a espirituosidade de um escritor talentoso e o afeto de um militante resoluto e honesto, é um documento soberbo porque George Orwell nunca deixa de apontar de que lado se colocava nas questões que levanta. Não deixa também de indicar suas eventuais limitações para compor o quadro de uma guerra com muitas variáveis, mantendo ainda mais forte seu compromisso com o máximo de rigor e honestidade intelectual de que podia dispor. São essas características que dão grande calado ao seu depoimento e que sempre serão de máxima importância para fazer avançar o pensamento.
Nesse relato, por outro lado, não registra apenas a desilusão com episódios pérfidos e insidiosos por onde adentrou a guerra. Socialista libertário, como ele mesmo se declarava e seus já mencionados resenhistas liberais evitam registrar, Orwell não deixa de destacar o potencial de autêntica fraternidade que foi despertado no princípio da revolução na Catalunha. “Os seres humanos estavam tentando se comportar como seres humanos e não como dentes na engrenagem capitalista”, indica logo nas primeiras páginas de seu relato.
3.
Os demais livros de George Orwell merecem ser lidos porque ele é este autor em diálogo constante com às contradições da experiência humana e, apesar de todo seu distanciamento com qualquer ingenuidade, segue notando todas as centelhas de fraternidade que elevam o espírito humano.
Ademais, George Orwell não foi um escritor de círculos literários, os estímulos de suas criações sempre foram encontrados na realidade concreta, naquilo que seu conterrâneo e contemporâneo, o filósofo Bertrand Russell, chamou de contato vital com a vida da comunidade. “Contato necessário para que os sentimentos humanos tenham a seriedade e a profundidade que caracterizam tanto a tragédia quanto a felicidade autêntica”.
Pouco conhecido, seu primeiro romance Dias na Birmânia é um livro de grande valor e beleza, justamente porque imbuído desta intimidade desenvolvida com os nervos e a epiderme para só então ganhar uma expressão literária. Recheado por seu conhecimento, experiência e impressões do tempo que viveu como funcionário da Polícia Imperial da Índia Britânica, Dias na Birmânia (hoje Mianmar) está prenhe ademais de uma fina sensibilidade.
George Orwell demonstra também uma aguda compreensão da atmosfera que o colonialismo inglês produzia ao forjar o rebaixamento da subjetividade nativa, essa marcada por tradições e modos de viver bastante distantes da racionalidade industrial. Por via de um de seus personagens ele denuncia: “Nós não estamos aqui para soerguer nossos irmãos negros, senão para roubá-los… Nós, os anglo-indianos, poderíamos até ser suportáveis se pudéssemos admitir que somos ladrões e que teremos de continuar assim abertamente”.
A experiência na Birmânia como agente do imperialismo britânico foi decisiva na vida de George Orwell já que ele se tornou disposto, mais que tudo, a se redimir do que então viveu.
4.
Em seu livro O caminho de Wigan Pier, misto de reportagem e ensaio sobre a dura condição dos mineiros na Inglaterra nos anos 1930, Orwell disseca o ponto.
“Quando voltei de licença à Inglaterra, em 1927, já estava meio decidido a abandonar meu emprego. Bastou dar uma cheirada nos ares londrinos para tomar a resolução: eu não voltaria a fazer parte daquele despotismo maléfico. Mas minha ambição era muito mais do que apenas escapar do meu emprego. Durante cinco anos eu havia participado de um sistema opressivo, que me deixara com a consciência pesada. Eu me lembrava de muitos rostos – o rosto dos prisioneiros no tribunal, dos homens à espera nas celas dos condenados, dos subordinados que eu tratava com brutalidade, de camponeses idosos que eu desprezara com esnobismo, dos criados e trabalhadores braçais que eu tinha agredido a socos em momentos de raiva (quase todo mundo faz essas coisas no Oriente, pelo menos em algumas ocasiões: os orientais podem ser muito provocadores) –, tudo isso me obcecava de forma intolerável. Eu tinha consciência de um imenso sentimento de culpa que eu precisava expiar. Suponho que isso pareça exagerado, mas se você passa cinco anos fazendo um trabalho que desaprova por completo, provavelmente vai sentir o mesmo. Eu reduzira tudo à simples teoria de que os oprimidos têm sempre razão e os opressores estão sempre errados; uma teoria equivocada, porém resultado natural de ser eu próprio um dos opressores. Eu sentia que precisava escapar não apenas do imperialismo, mas de toda e qualquer forma de domínio do homem sobre o homem. Eu queria submergir, entrar bem no meio dos oprimidos, ser um deles e ficar do lado deles contra seus tiranos. E, sobretudo, como eu tinha que pensar em tudo isso na solidão, levara meu ódio à opressão a um grau extraordinário. Na época, o fracasso me parecia ser a única virtude. Qualquer suspeita de querer progredir, e até mesmo de “vencer” na vida a ponto de ganhar algumas centenas de libras por ano, me parecia algo espiritualmente feio, uma espécie de violência”.
George Orwell passa também a se dar conta da classe operária inglesa. Não é só na Birmânia onde operava a tirania e a exploração. Orwell vê, assim, a vida pungente dos trabalhadores ingleses não como estatística: como vítimas cotidianas de injustiça. A exploração e humilhação não estão afinal apenas em paisagens exóticas.
Até então, ele admite, tomava a pobreza apenas em termos extremos (mendigos, marginais), e não compreendia a crueldade da pobreza “respeitável”: o trabalhador decente lançado ao desemprego, corroído pela vergonha, com família desfeita e sem recurso de compreensão da experiência enquanto parte das dinâmicas de forças socioeconômicas que o arruínam.
Seu impulso pessoal passa a ser infiltrar-se entre os párias para ver a vida deles de dentro. Além do desejo de compreensão encarnada, sua vontade de se aproximar dos despossuídos, o que o faz temporariamente, é uma busca também por reparar sua própria consciência. Ainda em A caminho de Wigan ele reflete: “… e tinha consciência, mesmo na época, de que era irracional: sentia que minha culpa, ao menos em parte, iria se soltar de mim”.
Tomando a decência humana como valor merecedor da mais decidida defesa, e muito para além de códigos e leis escritas, George Orwell com seu intenso, autêntico e atilado humanismo, atravessará os tempos por sua sensibilidade radical em amizade com a vida.
*Júlio Fisherman é jornalista. Graduado em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).
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