Por CARLOS EDUARDO MARTINS*
A falta de compromisso com um projeto soberano que coloca em risco o progressismo na política externa e nas políticas públicas do governo Lula
As interpretações sobre a queda da popularidade de Lula
A publicação da pesquisa sobre a aprovação do governo Lula, pela parceria entre a Genial Investimentos e o Instituto Quaest, acendeu o debate sobre as razões de sua queda de popularidade. A pesquisa foi realizada entre os dias 25 e 27 de fevereiro, coincidindo com a manifestação de Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, patrocinada por Silas Malafaia, e suas repercussões.
Foi publicada, simultaneamente, com dois outros levantamentos do mesmo Instituto que versam sobre a declaração de Lula a respeito da ação de Israel em Gaza e sobre a avaliação da Lava Jato, sugerindo possíveis cruzamentos. Outra pesquisa, realizada pelo IPEC, antigo Ibope, ratificou a queda de popularidade com uma metodologia diferente.
Enquanto a pesquisa Genial/Quaest usou como principal variável indicadores binários de aprovação/desaprovação, a pesquisa IPEC utilizou três categorias, ótimo/bom e regular e ruim/péssimo, útil para medir a intensidade do apoio ou rechaço, mas que não permite classificar o regular em aprovação ou desaprovação. Ambas são convergentes em relatar queda de popularidade do atual Presidente da República.
Duas foram as leituras que ganharam divulgação para explicar a queda da popularidade de Lula. A predominante, que dominou o noticiário da grande imprensa, mídia televisiva e eletrônica, foi a de que a queda se explicaria em razão das declarações de Lula sobre a ação de Israel, comparando o massacre em Gaza às ações de extermínio em massa de Hitler. Essa visão, subliminarmente sugerida pelo Instituto, foi acolhida pelo secretário de comunicação do governo, Paulo Pimenta, e divulgada pela grande imprensa e por agências internacionais como a Reuters.
A segunda leitura, que não necessariamente exclui a primeira, foi a de que a queda de popularidade se explicaria pela percepção de piora do desempenho da economia pelos entrevistados. A pesquisa Quaest apontou que 73% dos participantes indicaram como expressão dessa piora a elevação nos preços dos alimentos, 63% das contas em geral e 51% dos combustíveis. Essa interpretação baseia-se ainda nos indicadores macroeconômicos, que registram estagnação do PIB no segundo semestre, após forte crescimento na primeira metade do ano, puxado pelo agronegócio, pelas exportações e pela expansão do consumo das famílias.
Defendo uma terceira hipótese: a de que a queda se explica principalmente pela estratégia política seguida pelo governo Lula que define como eixo de gravidade da sua governabilidade a aliança com a centro-direita neoliberal, em relação a qual se afasta com extrema cautela e minimalismo, considerando ser esse um traço fundamental de realismo político. Um dos pilares deste enfoque é a rígida política fiscal levada adiante pelo ministro Fernando Haddad.
Tal estratégia, que pode facilitar a governabilidade no curto prazo, tende a deteriorá-la aceleradamente no médio e longo prazo, sendo de alto risco para a liderança política de forças de centro-esquerda, como mais recentemente aqui na América do Sul, a Argentina de Alberto Fernandez e Sergio Massa voltou a revelar. Ponderar essa dimensão implica na necessidade de redefinir o realismo político para incluir margens maiores de autonomia, iniciativa político-ideológica e mobilização popular como ingredientes necessários de sustentabilidade política.
Ignorar esta exigência implica agravar as dificuldades e deteriorar o principal ativo com que o Partido dos Trabalhadores conta para infletir a agenda pública: a força simbólica e o prestígio popular do Presidente Lula. Tal ativo deve se desdobrar e se articular com a capacidade de organização dos movimentos populares para ganhar resiliência frente à ofensiva conservadora para restabelecer o comando sobre o governo federal brasileiro, que tende a se aprofundar à medida que se aproximam as eleições de 2026. Essa, todavia, não parece ser a escolha de Lula e nem das principais forças que assessoram seu governo.
A hipótese da perda de popularidade pela crítica a Israel
A hipótese da perda de popularidade pela comparação entre as políticas de extermínio de Benjamin Netanyahu na Palestina a de genocídio de Hitler foi sugerida pelo Instituto Genial/Quest como uma das causas da queda de popularidade. Essa alternativa foi abraçada pelo Ministro-Chefe da SECOM e pela grande imprensa por duas razões distintas. Por Paulo Pimenta, para atribuir a um tema da agenda externa, de relações internacionais, efeitos internos, blindando as políticas econômicas do governo de qualquer crítica.
Em entrevista ao programa Roda Viva em outubro de 2023, ao ser perguntado sobre as críticas feitas por Gleisi Hoffman ao Ministério da Fazenda, Pimenta afirmou estar o governo unido em torno às políticas de Fernando Haddad, que o representava em sua agenda no plano interno, dentro e fora do Congresso, e no plano internacional, sendo essa uma decisão do Presidente Lula. Pimenta apontou que a perda de popularidade de Lula seria provisória, e que o Presidente estaria contribuindo para a mudança na opinião pública brasileira e mundial sobre o tema, transformando a agenda internacional de gestão do conflito.
Os grandes conglomerados da mídia eletrônica nacional e internacional, alinhados com o imperialismo liberal dos Estados Unidos, viram na queda de popularidade um pretexto para atacar a política externa do governo Lula, atribuindo-lhe esta responsabilidade. Como sabemos, o governo Lula respaldou a ampliação do BRICS, restabeleceu os repasses financeiros ao Novo Banco de Desenvolvimento, reforçou o tema da desdolarização, recusou-se a estabelecer sanções contra a Rússia, defendeu a negociação entre as partes para estabelecer o fim da guerra na Ucrânia, reinseriu o Brasil na UNASUL e CELAC e apoia o fim das sanções à Venezuela e Governo Maduro no restabelecimento do calendário eleitoral na Venezuela.
Tal agenda provoca profundo desconforto e contrariedade nos interesses estadunidenses e da burguesia dependente e associada. Não é por outra razão que uma das primeiras decisões do governo de Michel Temer, após o golpe de 2016, foi iniciar o desmonte dos instrumentos de integração regional soberana, atuando para suspender a Venezuela do Mercosul, e o Brasil e outros cinco países da UNASUL. Michel Temer afastou-se da CELAC e não compareceu à V Cúpula em Punta Cana, abrindo espaço para que Jair Bolsonaro suspendesse a participação do Brasil, e foi cofundador do Grupo de Lima, que tentou articular a invasão e o golpe de Estado na Venezuela, episódio que fracassou posteriormente em 2019. Jair Bolsonaro extremou a direção subserviente de política externa, retirando o Brasil da UNASUL, suspendendo a participação na CELAC, entrando em conflito com o Novo Banco de Desenvolvimento, e principalmente com a China.
A retomada de uma política externa multilateralista que fortalece a inserção brasileira no Sul Global incomoda o establisment liberal. Pesquisa do Instituto Genial/Quaest com o mercado financeiro, de novembro de 2023, antes da comparação da política de Benjamin Netanyahu para a Palestina com o genocídio, indicava que 85% desaprovavam a conduta do governo Lula sobre o conflito entre Israel e Palestina. Matérias na Veja, Estadão, Folha de São Paulo, Valor Econômico e Reuters destacaram a relação entre a perda de popularidade e as declarações de fevereiro de 2024, quando Lula comparou a política de Benjamin Netanyahu a de Hitler.
Entretanto, essa relação parece muito pouco provável. Não houve nenhuma manifestação de massa a favor de Israel, o comício da Paulista fez referências mínimas ao tema, cabendo este papel a Silas Malafaia. Na própria pesquisa Genial/Quaest, a percepção favorável a Israel caiu de 52 a 39%, sendo ultrapassada pela desfavorável que atingiu 41%, mantendo-se a presença dos que não sabem na margem de erro de 21% para 20%.
O tema parece ter ficado restrito ao andar superior da sociedade brasileira, embora possa ter repercussão no grupo evangélico, mas não deve ser entendido como variável independente relevante de mobilização deste grupo. Este grupo vem se mobilizando pela ação de suas lideranças para proteger Jair Bolsonaro frente aos inquéritos do STF, em especial o referente à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, e para as eleições de 2024.
A hipótese da economia
A hipótese da economia foi indicada pelo Instituto Genial/Quaest como outra explicação para a queda de popularidade. Tendo sofrido queda de preços em 2023, os alimentos voltaram a pressionar o índice de inflação a partir de outubro. Chama à atenção que a supersafra de 2023 concentrou-se no primeiro trimestre e que o ano registrou forte expansão da produção de soja (27,1%) e milho (19%), cana de açúcar (10,9%) e café (8,2%), intensamente vinculados às exportações – inclusive o milho nos últimos anos –, as quais responderam por mais metade do crescimento do PIB do ano passado, 1,7% dos 2,9%.
Ao mesmo tempo registrou-se expressiva retração na produção de trigo (22,8%), laranja (7,4%) e arroz (3,5). Se entre janeiro e setembro houve desinflação dos alimentos, de outubro de 2023 a janeiro de 2024 os preços dessas mercadorias subiram 4,38%. A previsão para a produção de grãos, cereais, oleaginosas e leguminosas este ano é de queda de 3,2%. A percepção de subida dos preços dos alimentos por 73% da população tem reforçado a iniciativa do governo Lula de retomar os estoques reguladores da CONAB, esvaziados durante o governo de Jair Bolsonaro.
Entretanto, permanecem os problemas estruturais de subfinanciamento da agricultura familiar, concentração da estrutura fundiária e sua orientação para as exportações. Apenas 7% do crédito destinado para a economia brasileira em 2023 foi contratado a taxas subsidiadas, e o investido na agricultura representeou apenas 1,6% do PIB. Os gastos do BNDES estão muito abaixo dos níveis alcançados em 2015, representando aproximadamente 54% dos mesmos e pequeno crescimento em 2023 frente ao ano anterior.
Mesmo a Nova Política Industrial desenhada pelo governo Lula, que contempla R$300 bilhões de investimentos entre 2023 e 2026, parte com taxas de juros subsidiadas, apresenta um investimento financeiro bastante modesto para suas metas e necessidades do país, e caso se realize integralmente representa um montante de aproximadamente 2,7% do PIB no intervalo de quatro anos, reunindo os setores público e privado. Como sabemos, a taxa de investimento em 2023 foi de 16,5% do PIB, bastante inferior aos níveis de 2021 e 2022, de 17,9% e 17,8%, de 2011-13, quando atingiu 20,7%, e de 1971-80, quando alcançou 21,9%.
Como quer que seja, a elevação dos preços dos alimentos e das contas em geral não atingiu a aprovação de Lula entre os segmentos mais pobres, segundo a pesquisa Genial/Quaest. Essa oscilou na margem de erro entre 63% em outubro e 64% em dezembro, em 2023, e 61% em fevereiro de 2024. Já o segmento que percebe renda familiar entre 2 e 5 salários-mínimos registrou queda acentuada de aprovação. Em outubro de 2023 e fevereiro de 2024 houve uma queda expressiva de 53% a 45%. No Nordeste, a aprovação se manteve constante em 68% entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, mas no Sudeste houve queda de 49% a 43% e no Sul, de 50% a 40% no mesmo período.
Como explicar a queda de popularidade já que a elevação dos preços não afetou o apoio dos segmentos e regiões mais vulneráveis socialmente?
Nossa hipótese: o centrismo e a frente política com neoliberalismo
Em nossa opinião, a queda de popularidade se explica pelos limites estratégicos em que passou a se mover o governo Lula, que reproduz com maior gravidade a aliança com o capital financeiro e o rentismo, o agronegócio, o monopólio midiático e os militares, de gestões petistas anteriores, só superado pela virada na política monetária do segundo mandato de Dilma, o que limita o espaço para a elaboração de políticas públicas e articulação com os setores populares.
Se o período de 2004-2013 foi definido, em sua maior parte, pela aceleração do crescimento econômico, superávits fiscais, e enorme acumulação de reservas monetárias em razão do boom das commodities e do forte ingresso de capitais estrangeiros, ampliando a margem de manobra do governo, o golpe de Estado 2016 e a ascensão do neofascismo colocaram como pedra de toque de sua economia política a austeridade, chave para reestabelecer altas taxas de superexploração da força de trabalho. O principal pilar deste processo foi a emenda constitucional 95 que limitou a variação das despesas primárias à inflação por 20 anos.
A crise política da aliança que sustentou o neofascismo e a sua derrota eleitoral abriram o espaço para a aprovação da emenda constitucional 126/2022, que possibilitou a substituição do teto de gastos por projeto de lei complementar enviado ao Congresso para definir as diretrizes orçamentárias. Este novo quadro jurídico-político permite ao governo aprovar suas propostas orçamentárias por maioria simples. Entretanto, a conquista deste espaço estrutural não foi acompanhada da iniciativa para liderar a transição política do país para um novo ambiente político-ideológico e uma nova coalizão de forças. Ao contrário, a estratégia adotada por Lula para as eleições de 2022 foi a de disputar com o fascismo a aliança com o neoliberalismo para isolá-lo, aproximando-se de vários personagens que participaram do golpe de 2016, mas posteriormente se afastaram da extrema-direita por suas tentativas de solapar o modelo político liberal e de articular o protagonismo de uma burguesia emergente em troca de fidelidade política, o que ameaçava a posição hierárquica de segmentos mais tradicionais e internacionalizados do grande capital e sua autonomia diante do Estado.
A eleição e a governabilidade passaram a ser buscadas por Lula e os segmentos hegemônicos do Partido dos Trabalhadores, garantindo-se ao grande capital uma margem de segurança maior e um nível de ameaça menor na defesa de seus interesses do que a aliança com o fascismo poderia proporcionar. Isso implicou uma agenda que mesclou contemplar os avanços multilateralistas de proteção ao meio ambiente; diversificar a política externa para aprofundar a parceria com os BRICS, a América Latina e os países do Sul Global, abrindo novas oportunidades de comércio e mecanismos de cooperação financeira e diplomática; manter sob controle e baixo perfil de atuação os movimentos sociais organizados; restringir o combate à desigualdade às políticas compensatórias e de erradicação da extrema pobreza; gerenciar os avanços conquistados pela ofensiva neoliberal nas políticas de Estado, minimizando os seus efeitos ou revertendo-os apenas parcialmente; promover a transparência e reduzir o patrimonialismo e a corrupção na gestão estatal; e limitar o enfrentamento com a extrema-direita nas Forças Armadas ao círculo de estreita proximidade a Jair Bolsonaro.
Tais diretrizes foram e têm sido manejadas como uma condição indispensável para a vitória eleitoral em 2022 e para a estabilidade política do governo. Em razão dessa concepção tática, que afasta o espaço para formulações estratégicas do horizonte, Lula descarta realizar uma ofensiva política ideológica de elevação da consciência e nível organização popular e a atua cautelosamente dentro do arcabouço neoliberal e dos limites do que Ruy Mauro Marini chamou de Estado de 4º poder, no qual as Forças Armadas atuam como guarda pretoriana do grande capital e do imperialismo estadunidense, servindo como poder moderador e força de dissuasão de avanços sociais e políticos mais consistentes.
Todavia, o suposto pragmatismo e a inevitabilidade dessa orientação, reivindicada pelos segmentos centristas do Partido dos Trabalhadores para as eleições de 2022, devem ser postos em questão, tomando-se como parâmetro a realidade. Se descartamos a eleição de 2018 por ser atípica e compararmos a votação de Lula em 2022 com a de Dilma em 2014, veremos que os percentuais gerais são praticamente os mesmos e a aliança com segmentos da centro-direita e quadros egressos do PSDB não contribuiu para aumentar o coeficiente eleitoral do bloco de centro-esquerda. Na região Sudeste, Lula alcançou uma pequena vantagem em relação à votação de Dilma em 2014, 45,7% versus 43,8%. Na região Sul, Centro-Oeste e Nordeste teve votação ligeiramente inferior, respectivamente, 38,2% versus 41,1%, 39,8% versus 42,6%, e 69,3% versus 71,7%. Na região Norte, o atual Presidente da República alcançou o seu resultado mais nitidamente inferior, 49% versus 56,5%.
Em São Paulo, a aliança com Geraldo Alckmin em nada alterou os resultados eleitorais. A base conservadora, hegemonizada pela centro-direita, migrou com esmagadora fidelidade para aceitar a liderança da extrema-direita como o seu novo vértice aglutinador. Em 2010, José Serra alcançou 54,1% no estado e Dilma 45,9%, praticamente a mesma votação de Jair Bolsonaro e Lula 12 anos depois, que obtiveram 55,2% e 44,8%, e de Tarcísio de Freitas e Fernando Haddad, candidatos ao governo do estado, que receberam 55,3% e 44,7%. Em síntese, os dados mostram que a aliança com quadros de destaque do antigo PSDB, onde despontam Geraldo Alckmin e Fernando Henrique Cardoso, foi irrelevante para aumentar a votação de Lula em 2022, em relação a de Dilma em 2014.
Em relação às estratégias de médio e longo prazo de disputa do Estado pelo bloco de centro-esquerda, a defesa da frente antifascista com os neoliberais se torna ainda mais implausível. O vínculo da centro-esquerda a um paradigma em crise profunda, o neoliberal, abre espaço para que seus efeitos a atinjam e a extrema direita a acuse de ser parte do establishment, colocando-se demagogicamente como alternativa por meio de uma agenda que prioriza a violência contra grupos que elege preferencialmente como inimigos do Estado e da sociedade brasileiros: a esquerda, os comunistas, a China, os movimentos sociais organizados, o feminismo, os povos originários, as lutas antirracistas, LGBTQIA+, ecológicas, pela descriminalização das drogas, pelo desarmamento e contra a violência policial e o encarceramento.
A ascensão da extrema direita, nos Estados Unidos e na União Europeia, explica-se em grande parte pela vinculação da social-democracia ao rentismo que desvinculou o padrão de acumulação de regulações e compromissos sociais com os trabalhadores, priorizando a geração de capital fictício.
A escolha dos neoliberais como os principais parceiros políticos do governo Lula leva a opções de políticas públicas extremamente restritivas que comprometem os gastos em saúde, educação, e serviços públicos em geral. Embora o governo Bolsonaro tenha transferido para o novo governo dívidas de R$140 bilhões em 2023, acumulou déficits fiscais de R$998 bilhões em 4 anos. A meta projetada por Fernando Haddad nas LDOs de 2024, 2025 e 2026 é de déficit zero em 2024, e superávits de 0,5% em 2025 e 1% em 2026.
O déficit fiscal de 2,3% do PIB, apresentado pelo governo federal em 2023, está bem abaixo dos registrados na União Europeia ou na Zona do Euro em 2022, que atingiram 3,3% e 3,6%. A Comissão Europeia reiterou considerar aceitável o indicador de até 3% do PIB como déficit fiscal para os países que tenham dívida pública acima de 60% do PIB. Com exceção de Suécia, Chipre, Irlanda e Croácia, todos os demais 23 países apresentaram resultados fiscais negativos. Nos Estados Unidos, o déficit alcançou 6,3% do PIB em 2023, superior aos 5,4% de 2022.
A priorização da dimensão fiscal do ajuste das contas públicas, em detrimento da financeira, que volta a marcar os governos petistas na atual gestão, é uma concessão dramática ao paradigma neoliberal. A meta de déficit fiscal zero perseguida pelo ministro Fernando Haddad em 2024 está em desalinho à praticada pelos principais Estados do capitalismo ocidental, sendo ainda mais rigorosa que as expectativas dos agentes do mercado financeiro registradas na pesquisa Instituto Genial/Quaest, de novembro de 2023. 49% consideravam que a meta de déficit fiscal proposta pelo governo seria de 0,5%, 18% que atingiria 0,75% e apenas 20% trabalhavam com a expectativa de déficit zero. O governo não utilizou o prazo de que dispunha para alterar a meta de déficit fiscal para 2024, reforçando as previsões sustentadas por Haddad contra as pressões de setores do PT para flexibilizá-las, e agora só poderá fazê-lo por emenda parlamentar.
Não se trata, portanto, apenas de mover-se no paradigma neoliberal, mas de mover-se ofertando ao grande capital, em particular ao capital financeiro parasitário, benefícios para que a aliança com o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores seja a sua opção preferencial, mantendo-se a engrenagem do que Ruy Mauro Marini chamou em seus últimos escritos de economia de transferência, em que o Estado transfere valor às frações dominantes do capital sem qualquer contrapartida de produtividade (Martins, 2023, p. 70) (Marini, 1989, p. 40).
O efeito concreto dessa linha de atuação é a realização de políticas para os extremamente ricos e os extremamente pobres, negligenciando um imenso segmento no qual a popularidade de Lula cai de maneira acentuada e compromete as estratégias de hegemonia no médio e longo prazo da centro-esquerda no Brasil. O esforço em considerar o Brasil, nos governos petistas, um país majoritariamente de classe média, a partir da gestão de Marcelo Nery no IPEA, em 2012, como resultado das políticas de distribuição de renda realizadas, em direção inversa às teses adotadas por Marcio Pochmann, têm o objetivo de legitimar esse tipo de política.
Se tomarmos em consideração o salário-mínimo necessário do DIEESE e cruzarmos com os dados da PNAD sobre distribuição de renda, poderemos situar que aproximadamente 75% da população brasileira não percebe uma renda familiar per capita suficiente para atender às condições minimamente necessárias de consumo e depende de serviços públicos gratuitos, não podendo ser relegada ao mercado e à sua variação de preços. Uma das principais características das classes médias é a capacidade de atender às suas necessidades de consumo no mercado.
Entretanto, 67% das crianças brasileiras estão matriculadas em escola pública, 77% da população não possui plano de saúde, 42% da população não está conectada à rede geral ou pluvial de esgoto, apenas 27,7% dos lares possuem por TV por assinatura, somente 43% acesso a serviços de streaming e apenas 40,2% dos domicílios possuem microcomputador.
O bolsa-família atualmente atende a cerca de 30% das famílias brasileiras e lhes destina 1,5% do PIB. Representa um montante muito menor que os 6,6% do PIB pagos de juros em 2023, sendo o governo central responsável pela transferência de 5,6% do PIB aos rentistas. À meta fiscalista que elude a natureza financeira do déficit e da dívida do Estado brasileiro, soma-se a pressão dos juros e restringe significativamente os gastos públicos com o setor real. O Estado limita a oferta e a qualidade dos serviços e bens públicos e delega ao mercado a atenção das necessidades básicas de nossa população.
O resultado é tanto a precificação das necessidades sociais encarecendo a atenção das necessidades básicas, quanto a exclusão relativa e absoluta de um enorme segmento socialmente e economicamente vulnerável da população dos serviços públicos, aproximadamente 40% da população brasileira que tem renda familiar entre 2 e 5 salários-mínimos, segundo a pesquisa Genial/Quaest. É exatamente neste segmento que a queda se faz mais acentuada alcançando 11% entre agosto de 2023 e fevereiro de 2024, contra 7% no segmento de renda familiar até 2 salários-mínimos e 5% naqueles que percebem renda familiar superior a 5 salários-mínimos.
Embora tenha havido forte expansão da renda do trabalho em 2023, de 11,7%, impulsionada principalmente pelo aumento do salário-mínimo e pela queda do desemprego, as pressões de demanda se chocam com as restrições da oferta impulsionando o preço dos alimentos diante de uma estrutura fundiária altamente concentrada, voltada para a exportação e altíssimo custo do crédito para o investimento do qual dependem os pequenos e médios agricultores.
A insistência do governo em manter a meta de déficit zero, e até superá-lo por superávits em 2025 e 2026, restringe os efeitos multiplicadores do investimento sobre a arrecadação, principalmente em situação de alto desemprego aberto, e atinge violentamente os servidores públicos da educação e da saúde que compõem umas das frações mais importantes da vanguarda ideológica da classe trabalhadora, capaz de lançar uma ofensiva ideológica contra o neoliberalismo.
Ao invés de acolherem o movimento sindical destes segmentos, os governos petistas lhes impuseram uma drástica derrota em 2012, optando pelas políticas fiscais neoliberais, posição da qual não renunciaram no atual mandato. Tal derrota abriu espaço para a ofensiva da direita na sociedade civil, o isolamento do governo e o golpe de 2016.
O governo Lula, portanto, não arranha a desigualdade e a superexploração da força de trabalho que continuam a avançar no capitalismo dependente brasileiro, apesar das políticas de combate à extrema pobreza. Em 2022, as rendas do 0,1% e do 1% mais rico eram, respectivamente, 189,2 e 37,6 vezes maior que a dos 95% mais pobres, tendo se expandido em 87% e 51% contra 33% dos últimos entre 2017 e 2022. Apenas 9% e 36% da renda auferida pelos 0,1% e 1% mais rico vinha do trabalho, configurando segmentos fortemente rentistas, que continuam a se beneficiar das políticas monetárias e fiscal.
Apesar das escaramuças entre o governo Lula e o PT de um lado, e o Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de outro, sobre os níveis das taxas de juros, nenhuma gestão para retirá-lo do comando do BC por desempenho insuficiente foi realizada, mesmo tendo o governo maioria no Conselho Monetário Nacional. Roberto Campos Neto sofreu abertura de processo na CGU para apurar suspeitas da CGU sobre inconsistências contábeis de R$ 1 trilhão, sua gestão desvalorizou o Real perante o Dólar em mais de 30%, e elevou as taxas de desemprego a 14,9% comprometendo a meta do BC de atingir o bem-estar econômico da sociedade. Temeroso de não alcançar maioria simples no Senado ou de desagradar o mercado financeiro, Lula preferiu não arriscar este passo. Muito menos colocar em discussão o fim da autonomia do Banco Central.
O governo Lula não promove nenhuma ofensiva ideológica significativa para alterar a correlação de forças sociais e políticas, baseando a sua popularidade na história de lutas, na origem operária e no carisma pessoal, cujo tempo de vida útil nas disputas eleitorais dificilmente se estenderá além do intervalo de 2026-2030. Não desafia o monopólio dos meios de comunicação, o domínio fundiário do agronegócio, o protagonismo do capital financeiro, a ofensiva neopentecostal e a vinculação das Forças Armadas ao golpe de 1964 e sua concepção restrita e ambígua de democracia, capaz de metamorfosear-se em fascismo.
Tal vulnerabilidade coloca em risco a sucessão da liderança política no governo federal para o bloco de centro-esquerda, pois o tempo acentua a crescente perda de nitidez ideológica e a ausência de uma individualidade que possa compensá-la. Se houve ampliação de recursos para o Ministério da Cultura, as universidades públicas sobrevivem com orçamentos restritos, menores que em 2023, e queda relativa de alunos, atualmente apenas 22% das matrículas no ensino superior; a Empresa Brasileira de Comunicações mantém-se com limitações econômicas e a TV Brasil atinge somente 0,2% da audiência, não havendo jamais os governos petistas associado nosso país à Telesur, ou atuado para reconstruí-la como parte de uma possível revitalização da UNASUL.
Se a reforma agrária se mantém em ritmo lento, tendo Lula reservado a quinta parte dos recursos reivindicados pelo MST para o tema no ano corrente, as igrejas evangélicas gozam do apoio do governo federal para PEC que amplia as isenções tributárias para seus conglomerados empresariais. Finalmente, nos 60 anos do golpe de 1964, Lula declara não se interessar pelo tema, mantém sepultada a Comissão da Verdade, abandona o projeto do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, apesar de o Brasil ser talvez único país da América do Sul sem justiça de transição e liderar o ranking de números de homicídios no mundo.
No âmbito da política externa, o governo assume uma orientação contraditória, multilateralista e centrista, buscando ampliar a margem de manobra internacional do país ao vinculá-lo a um novo eixo geopolítico emergente que tem seus pilares mais ativos, hoje, na China e na Rússia, mas ao mesmo tempo não desafia a dependência e o imperialismo na América Latina, buscando o caminho cada vez mais estreito da coexistência entre forças rivais de um mundo que aprofunda a sua bifurcação: de um lado, o imperialismo estadunidense e a OTAN, e de outro, um novo bloco multilateralista que se organiza através da articulação do Sul Global para reverter assimetrias mundiais e construir um ambiente internacional cooperativo, plural, democrático e pacífico.
Se o Brasil assume protagonismo discursivo nos conflitos no Oriente Médio, ancorado no BRICS e se torna sede das conferências do G-20, na integração latino-americana assume um perfil baixo, não exercendo papel estruturante.
Lula assume posição de destaque em temas sobre os quais têm pouca capacidade de decisão institucional, mas avança pouco em temas próprios da região onde o peso da influência política, financeira e ideológica brasileira pode ser muito maior. Se denunciou corretamente o genocídio palestino perpetrado pela política da grande Israel de Netanyahu, mantém congelada a UNASUL e na VIII Conferência da CELAC não se dedicou a temas sensíveis como a crise da democracia, a penetração do narcotráfico nas estruturas de poder, os conflitos territoriais como o de Essequibo e as pressões imperialistas sobre a fronteira mexicana.
O Projeto de Decreto Legislativo 548/2012, que ratifica a entrada brasileira no Banco do Sul, jamais entrou em votação no Congresso Nacional, foi retirado da pauta de votação em 2015 e o governo Lula não demonstrou nenhuma intenção de retomá-lo.
Limitada pelo compromisso com a dependência que assume um perfil financeiro extremamente parasitário e predatório na fase atual do capitalismo mundial e pela adesão a preceitos do imperialismo liberal dos Estados Unidos, cada vez mais descolado do desenvolvimento das forças produtivas da América do Sul, mas fiador das políticas de austeridade, dos limites sociais da democracia brasileira, e de uma integração regional de baixa densidade, incapaz de desafiar sua hegemonia no Hemisfério Ocidental, a política internacional do país não é capaz de realizar a sua vocação de liderança continental, mantendo subaproveitada as possibilidades regionais e os projetos de desenvolvimento nacionais.
Batizada de altiva e ativa, e não de soberana, no lugar de independente, dos anos 1960, nossa política externa parece estar mais interessada em destacar características de interação e adaptação em um ambiente externo onde pretende se mover, do que em promover e liderar um novo padrão internacional onde se quer chegar.
É exatamente a falta de compromisso com um projeto soberano que coloca em risco o progressismo na política externa e nas políticas públicas do governo Lula. Suas dimensões parecem ser insuficientes ou limitadas para uma época em que as confrontações se aceleram, em que a extrema direita se nutre da insatisfação de segmentos populares com a limitação dos projetos de democracia da centro-esquerda para propor o giro a sistemas políticos de transição ao fascismo, questionando a natureza da democracia e as reais intenções das esquerdas. Enfrentar o fascismo e a extrema direita de forma consistente exige um outro tipo de estratégia política que a aliança com as oligarquias liberais decadentes não pode proporcionar.
*Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo). [https://amzn.to/3U76teO]
Referências
MARINI, Ruy Mauro. Estado, grupos económicos y proyectos políticos en Brasil (1945-1988), 1989. Mimeo.
MARTINS, Carlos Eduardo. Ruy Mauro Marini e a dialética do capitalismo contemporâneo. Reoriente: Estudos sobre marxismo, dependência e sistemas-mundo, v. 3, n.1, p. 38-73, 2023.
Publicado originalmente no blog da Boitempo [https://blogdaboitempo.com.br/2024/04/03/o-governo-lula-a-popularidade-e-o-projeto-de-estado/]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA