Greve de docentes nas Universidades Federais? Será?

image_pdf

Por MARCELO SEVAYBRICKER MOREIRA*

Fazer greve agora é inoportuno, ao menos para quem se coloca como um defensor do Estado democrático de direito e da ampliação do bem-estar social no país

O 42º Congresso do ANDES, realizado no início deste ano, deliberou pela aprovação do indicativo de greve nas instituições federais de ensino. O site oficial do sindicato informa que a greve docente deve ser construída nos próximos meses sob a justificativa de que o governo federal não apresentou uma proposta de reajuste salarial à categoria no ano de 2024 (ainda que exista uma proposta de reajuste de 9%, dividido nos dois anos subsequentes, além de aumento nos benefícios de saúde e alimentação), dentre outras reivindicações, como a reversão da tendência de subfinanciamento das instituições de ensino do país.

Este texto não pretende discutir propriamente o mérito dessas razões, mas o contexto em que elas são feitas. Porque política nunca é apenas sobre princípios e razões, mas também sobre o momento em que elas são apresentadas. Identificar o tempo oportuno para agir é uma virtude política essencial, como já diziam os gregos (a partir da noção de kairós). Vejamos então o contexto em que tal proposta de greve se apresenta.

Primeiramente, cabe lembrar que este é o segundo ano do governo Lula-Alckmin, um governo de frente ampla e de centro-esquerda, estabelecido após uma vitória dificílima e crucial para a democracia brasileira, contra a ameaça fascistizante de um segundo governo de Jair Bolsonaro. O primeiro ano do governo Lula-Alckmin foi fundamentalmente um período de recolher os cacos do projeto de destruição da Nova República, levado a cabo então pelo líder da extrema direita.

Mas a despeito do cenário de devastação política, o governo federal concedeu, em 2023, reajuste salarial aos servidores públicos federais, inclusive aos docentes, de 4%, além de verem serem retomadas as negociações regulares com os gestores da União. Ou seja, o governo Lula-Alckmin sinalizou por este gesto a inequívoca guinada na relação entre Executivo, universidades e classe trabalhadora, quando comparado ao governo anterior.

É contra este governo que docentes das universidades públicas (que devem defender a democracia e suas liberdades – mal construídas no país até aqui) pretendem fazer uma greve? Mas por que contra os governos anteriores (que tratavam as universidades públicas como um espaço a ser destruído) nenhuma greve foi construída? Nenhuma greve nos dois anos do governo golpista de Michel Temer e nos quatro anos do fascista Jair Bolsonaro!

Há outro aspecto conjuntural do presente momento a ser considerado: estamos em um país ainda muito conflagrado e dividido e no qual este governo de reconstrução do Estado democrático de direito vive permanentemente sob ataque da direita radical. Como a manifestação do dia 25 de fevereiro na Avenida Paulista deixou ver, Jair Bolsonaro e a direita ultraradical tupiniquim têm muita força política. Como disse o professor de história Valério Acaray, em artigo recente publicado no site A Terra é redonda: “o pior erro que a esquerda pode cometer é desvalorizar o impacto da contraofensiva dos neofascistas.”

A derrota de Jair Bolsonaro no pleito de 2022 não é a derrota do bolsonarismo. Ademais, ainda que as políticas do governo Lula-Alckmin, em geral, sejam inquestionavelmente superiores às do governo anterior, ele não saiu fortalecido nesse segundo ano de governo. Ao contrário, tem visto a sua aprovação minguar ligeiramente mesmo em sua tradicional base de apoio (os eleitores do Nordeste, feminino, de renda baixa etc.) e a sua desaprovação aumentar.

Ora, poder-se-ia questionar: mas o que diabos os docentes têm com isso? Por acaso estariam eles, então, obrigados a apoiar o atual governo? Claro que não. Não obstante isso, a defesa legítima de seus direitos e da Universidade pública, gratuita e de qualidade não pode descurar do contexto maior em que essa luta é travada: e o contexto ainda é fortemente adverso. Fazer uma greve agora irá inevitavelmente jogar água no moinho da oposição, dado que irá desgastar o governo frente à sociedade brasileira. Nesse sentido, é agir contra o interesse da classe trabalhadora e das universidades públicas.

Associado aos dois primeiros pontos há que se lembrar também que em outubro de 2024 ocorrerão eleições municipais. O bolsonarismo e a centro-direita estão amplamente mobilizados e articulados nacionalmente. Ora, o que alguns setores à esquerda pretendem fazer? Uma greve contra um governo de centro-esquerda? Independentemente se obterá ou não êxito nas duas demandas, o movimento grevista certamente dividirá esse campo, já mais fragilizado, descapitalizado e desmobilizado do que a oposição. Um erro estratégico, portanto, pois enfraquece a própria defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade na medida em que tende a gerar benefícios eleitorais imediatos para os candidatos bolsonaristas, que estão de olho em todo tipo de notícia ruim para o governo Lula-Alckmin.

Por essas razões conjunturais, fazer greve agora é inoportuno, ao menos para quem se coloca como um defensor do Estado democrático de direito e da ampliação do bem-estar social no país. Constatar isso não implica em adotar postura submissa frente ao atual governo federal. Longe disso, mas é necessário compreender mais amplamente o contexto para decidir qual linha de ação é melhor para a classe trabalhadora. Espera-se que ela seja fortalecida pela greve – quando esse importante meio de ação coletiva tenha que ser adotado – e não o contrário!

Juízos em política usualmente têm validade curta, a depender dos ventos da fortuna. Não se tem a vã pretensão de estabelecer, portanto, um conjunto de razões suficientes ou permanentes, mas tão-somente incitar uma reflexão sobre o contexto político brasileiro mais geral, que possa contribuir na adoção de uma estratégia política mais harmoniosa com os princípios da democracia e da universidade pública.

P.S.: os argumentos acima arrolados foram construídos com base no pressuposto – adotado para fins de economia textual – de que o cenário nos institutos de ensino da rede federal são similares, quando sabemos que isso não é verdade. Eventualmente, as condições adversas de uma ou outra instituição de ensino podem colocar na balança mais motivos para iniciar um movimento grevista. Além disso, tratou-se neste curto artigo de opinião apenas da condição dos professores federais. Os técnicos-administrativos, categoria igualmente essencial à vida universitária, têm outra realidade, que demandaria uma análise própria, não realizada aqui.

*Marcelo Sevaybricker Moreira é professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Autor do livro O pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos (Appris). [https://amzn.to/3ToA2H0]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES