José Almino Alencar, poeta

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Prefácio a um livro ainda inédito do escritor pernambucano

Por Maria Rita Kehl*

Tive a sorte de conhecer José Almino quando o escritor foi convocado a nos ajudar nas pesquisas da Comissão Nacional da Verdade, em 2013. Até então, não tinha tido contato com sua poesia. Li, encantada, os poemas de A estrela fria, (Companhia das Letras, 2010). Me fizeram lembrar a economia de metáforas de Francisco Alvim – mas onde o minimalismo de Alvim é predominantemente irônico, o de Almino não perde a ternura. Como neste poema curto, que dá nome ao livro:

De longe/ a infância queima:/ ela é a luz de uma estrela fria.

Depois de saber de meu encantamento com os poemas, Almino me apresentou a suas crônicas (O motor da luz, Editora 34, 1994), também excelentes. Com a mesma precisão, a mesma economia de metáforas e de adjetivos e com o mesmo olhar enternecido, o poeta compõe, ali, retratos de tipos populares de Recife, muitos deles frequentadores da casa da família. Tenho em mãos, agora, Encouraçado e cozido dentro da pele, versos de sua leva recente

A expressão que me ocorre ao pensar na poesia de Zé Almino é pedestre. O adjetivo não designa uma poesia banal; é bem o contrário disso. É que o olhar do poeta abrange – sem perder a ternura – o que se passa nas calçadas e nas ruas do Recife. Nem por isso o leitor deve esperar pouco de seus versos. O que se “eleva”, aqui, não é o tom: é a simpatia do autor por todos, por qualquer um, pelos tipos mais comuns de sua Recife natal. Mas como consegue combinar tão bem a ternura e o distanciamento exigido pela boa poesia?

Dizer de sua pegada irônica não esclarece muita coisa: a ironia marca a poesia moderna pelo menos desde Baudelaire. Mas neste poeta, a ironia não vem para revelar o distanciamento crítico do poeta em relação a seu objeto e promover a mesma disposição afetiva no leitor. Ou pelo menos, não serve apenas a este propósito. Me parece que o uso da ironia, em José Almino, vem para temperar a vastíssima ternura que banha sua voz poética:

E a suavidade das presenças fraternas/ e a consolação dos aflitos/ O oco do mundo.

Como no livro anterior, vários poemas deste atual também descrevem personagens pernambucanos do século passado. Quero dizer: o vinte. São tipos populares com que o poeta conviveu desde a infância em Recife, à época uma cidade progressista com traços inevitavelmente provincianos. Alguns desses personagens viviam, ou compareciam, na própria casa da família; outros chegavam no portão a procurar ajuda de seu pai, o governador Miguel Arraes, mais tarde cassado e exilado pela ditadura – a família toda mudou-se para a Argélia, que depois da guerra da independência contra a França passou por um período progressista.

Em breves linhas, à maneira de caricaturas, o poeta nos transmite os traços essenciais dos personagens que inspiram sua poesia: neste aqui o falso ar blasé esconde a tristeza; no outro, nota-se o jeito manso de andar. Uma frase do poeta dirigida ao leitor resume o doutor Nazareno: “Mulato de terno branco e gravata grená”. Nos idos do século vinte, um mulato bem vestido seria considerado pernóstico?  Nazareno é doutor. É bovarista. Mas a primeira palavra com que o poeta o define, na intenção de chacoalhar o leitor, é mulato. Já o uso do termo “bovarismo”, eu diria que resume a melancolia brasileira: pretensões fracassadas, semblants adotados por um pobre coitado, (como qualquer brasileiro pé de chinelo, qualquer pobre diabo como nós), na ilusão de – como a Emma de Flaubert – “tornar-se outro”.

No entanto o recurso – marca de Almino desde o livro anterior – de inserir no meio de seus poemas trechos de versos de poetas canônicos da melhor cepa dos séculos dezenove e vinte, não é, como poderia parecer, bovarista. Penso que, bem ao contrário, indicam que o autor abdica de qualquer pretensão de autoria absoluta, narcisista, de seus poemas. Sem tirar o chapéu, sem “licença meu branco[i]”, José Almino exige docemente do leitor o reconhecimento de que sua poesia navega no grande oceano onde navegaram Baudelaire, Rilke, Valéry, T.S.Eliot, Emilly Dickinson, assim como seus conterrâneos Joaquim Cardoso, Manuel Bandeira e João Cabral.

E notem como este pernambucano sutil, “comovido feito o diabo[ii]” com a condição do povo à sua volta, está à vontade nesse panteão! Ele nos introduz no ambiente erudito de seus melhores amigos literários para, em seguida, desapear o leitor:

…que me agarrei ia infância/ que me agarrei na esperança… depois, a contrapelo:  que me agarrei no pandeiro.

No pandeiro: recurso do povo, instrumento rítmico só nosso – motor do carnaval. Em que qualquer pé de chinelo pode se agarrar em troca de uns tostões de alegria.

A enorme simpatia pelos tipos populares de sua terra não deve ser razão para que o leitor dessa poesia se instale no conforto das emoções fáceis. José Almino anda no fio da navalha. Sabe se comover – e comover-nos – sem qualquer auto complacência.

Num certo momento, o leitor se depara com referência cortante a João Pedro Teixeira, “cabra marcado para morrer” cuja tragédia foi registrada no filme de Eduardo Coutinho iniciado em 1964 e terminado apenas depois da redemocratização, em 1984.

O cabra marcado para morrer/morreu/só. // Foi só isso/ Foi isso/ só.

Poemas como estes dois citados acima iluminam – a luz de vela, não de neon – o enigmático título desse Encouraçado e cozido dentro da pele. Título que citaum verso do terceiro poema, “Nada não”:

Encouraçado e cozido dentro da pele/ em agulha e fio firme, um nó cego/ um baque n’água/ que ninguém ouve/ ou jamais ouviu/ nem ouvirá.

Será este verso uma alusão à melancolia brasileira, esta que volta e meio retorna por cima de todos os carnavais e, também, com toda essa fúria que se alterna com nossa “euforia pra inglês ver”? Será o poeta, como também se declara Drummond[iii], um ressentido? Pergunta retórica: estou convencida de que não. Um recolhido, talvez. Pouco afeito aos holofotes. “Porque a glória”, como teria dito Sinhô ao jovem Mário Reis[iv] – “é de um tremendo mau gosto”.

Nesse aspecto, devo apontar que o poeta se inscreve sim, como os descendentes dos escravos que inventaram o samba. Assim como o melancólico Drummond. E como Goeldi. Como Clementina e tantos outros brasileiros (cito a esmo) que escaparam à cafonice de reivindicar a glória. Esperteza declarada:

Sou besta[v],?/mas nem tanto.

*Maria Rita Kehl, psicanalista, é autora, entre outros livros, de Ressentimento (Casa do psicólogo)

Notas


[i] Como no verso do poema Irene, de outro conterrâneo de José Almino: Manuel Bandeira.

[ii] Verso de Drummond no Poema de sete faces.

[iii] “Que o poeta é um ressentido e o mais são nuvens”, CDA

[iv] Veja-se o filme “Mandarim” de Ronaldo Bressane, 1988.

[v] “O desânimo manso”, p. 16.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Bruno Machado Bernardo Ricupero Rafael R. Ioris Alexandre de Lima Castro Tranjan José Raimundo Trindade Manuel Domingos Neto Lorenzo Vitral André Singer João Lanari Bo Luis Felipe Miguel Rodrigo de Faria Paulo Nogueira Batista Jr Fábio Konder Comparato Atilio A. Boron Julian Rodrigues Denilson Cordeiro Ronald Rocha Slavoj Žižek Ricardo Antunes Francisco de Oliveira Barros Júnior André Márcio Neves Soares Antonio Martins Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Annateresa Fabris Andrew Korybko Carla Teixeira Paulo Fernandes Silveira Andrés del Río Michael Roberts Samuel Kilsztajn Sandra Bitencourt Liszt Vieira Dennis Oliveira Leda Maria Paulani Jorge Luiz Souto Maior Eleutério F. S. Prado Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Pereira de Farias Kátia Gerab Baggio Vanderlei Tenório José Geraldo Couto Jorge Branco Benicio Viero Schmidt Priscila Figueiredo Francisco Fernandes Ladeira José Micaelson Lacerda Morais Lincoln Secco Érico Andrade Paulo Martins Luiz Marques Eduardo Borges Valerio Arcary Eleonora Albano Chico Alencar Luís Fernando Vitagliano Luiz Eduardo Soares Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Módolo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Daniel Brazil Luiz Werneck Vianna Marcus Ianoni Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Alexandre Aragão de Albuquerque Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn Armando Boito José Dirceu Bento Prado Jr. João Sette Whitaker Ferreira Berenice Bento Osvaldo Coggiola Afrânio Catani Salem Nasser Bruno Fabricio Alcebino da Silva Paulo Sérgio Pinheiro João Carlos Salles Carlos Tautz Manchetômetro Leonardo Sacramento Gilberto Maringoni Leonardo Boff Ari Marcelo Solon Flávio Aguiar Antonino Infranca Leonardo Avritzer João Carlos Loebens Gilberto Lopes Luiz Renato Martins Heraldo Campos Tadeu Valadares Jean Pierre Chauvin Michael Löwy Maria Rita Kehl Marcos Aurélio da Silva Vladimir Safatle Claudio Katz Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Paulo Ayub Fonseca Antônio Sales Rios Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Musse Luciano Nascimento Renato Dagnino Tarso Genro Airton Paschoa Marilena Chauí Juarez Guimarães Milton Pinheiro Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Thomas Piketty Elias Jabbour José Machado Moita Neto João Adolfo Hansen Marjorie C. Marona Daniel Afonso da Silva José Luís Fiori Eugênio Trivinho Daniel Costa Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Capel Narvai Henri Acselrad Mário Maestri Anselm Jappe Ricardo Abramovay Luiz Roberto Alves Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber Caio Bugiato Walnice Nogueira Galvão Jean Marc Von Der Weid Igor Felippe Santos Flávio R. Kothe Marcos Silva Fernando Nogueira da Costa Sergio Amadeu da Silveira Eugênio Bucci Ronald León Núñez Dênis de Moraes Chico Whitaker Gerson Almeida Celso Favaretto Eliziário Andrade João Feres Júnior Celso Frederico Mariarosaria Fabris Yuri Martins-Fontes Alysson Leandro Mascaro Henry Burnett José Costa Júnior Marilia Pacheco Fiorillo Otaviano Helene Rubens Pinto Lyra Vinício Carrilho Martinez Michel Goulart da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES