Por JOÃO QUARTIM DE MORAES*
Trecho do livro recém-lançado
Da revolução democrática à insurreição de outubro
Quanto mais uma guerra se prolonga, mais destruição, fome e desalento ela provoca. Extremamente rude, o inverno de 1916-1917 agravava o sofrimento da população. Em 22 de fevereiro, um movimento grevista eclodiu no complexo fabril Putilov, em Petrogrado. No dia seguinte, uma grande manifestação de mulheres, em sua maioria operárias têxteis, clamando por pão e pela paz, percorreu as fábricas em greve. A repercussão foi ampla, estendendo-se pela capital.
Choques violentos com forças policiais levaram os manifestantes mais decididos a atacar postos de polícia para se armar. No dia 25, cerca de 250 mil trabalhadores tinham entrado em greve. O tsar ordenou que a força militar de Petrogrado suprimisse à bala a mobilização popular. O sangue correu. Mas os soldados do Regimento Pavlovsky, recusando-se a atirar no povo, voltaram suas armas contra os oficiais. Os demais regimentos da capital se juntaram ao levante. No dia 2 de março, o tsar abdicou.
Muitos historiadores salientam o caráter espontâneo da revolução de fevereiro. Com certeza, a iniciativa das massas foi decisiva do começo ao fim da revolta. Mas, salvo a entendê-la de modo demasiado estreito, como ação coletiva não planejada previamente, a noção de espontaneidade leva em conta a memória coletiva das lutas sociais. A classe operária russa, particularmente a de Petrogrado, mantinha na memória as lutas revolucionárias dos trabalhadores do parque industrial Putilov, protagonistas das greves desencadeadas em janeiro de 1905, dias antes do “domingo sangrento”.
Os comitês que coordenavam as greves deram origem aos sovietes, que nos últimos meses de 1905, principalmente em Petrogrado e em Moscou, assumiram o papel de órgãos do poder político proletário. Os operários de 1917 retomaram, por iniciativa própria, o legado revolucionário de 1905, inscrito em sua cultura política.
A mobilização das tecelãs de Petrogrado no segundo dia dos protestos que deram início à revolução de fevereiro, decisiva para ganhar amplo apoio das massas populares à rebelião, celebrizou-se por vincular o combate do povo russo pela paz e pelo pão à luta das mulheres pela igualdade de direitos. Nem sempre se lembra que o 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, homenageia as operárias de Petrogrado. No velho calendário juliano, que ainda vigorava na Rússia, a data era 23 de fevereiro. Pelo mesmo motivo, a rebelião proletária que derrubou o tsarismo passou à história como Revolução de Fevereiro, embora no atual calendário gregoriano ela tenha ocorrido em março.
Assim que souberam da revolução, Lênin e os demais bolcheviques exilados na Suíça empenharam-se em retornar à Rússia. As tratativas para atravessar a Alemanha em guerra foram complicadas. Não que desagradasse ao governo alemão deixar passar esses revolucionários profissionais que, provavelmente, criariam problemas para o novo governo russo. Mas este, por isso mesmo, não tinha pressa alguma em vê-los de volta. Somente no fim de março, graças ao apoio dos social-democratas suíços, eles puderam viajar de trem pela Alemanha até a Escandinávia e, de lá, para a Rússia, aonde chegaram na noite de 3 de abril de 1917.
Recebido por uma grande massa de simpatizantes na Estação Finlândia de São Petersburgo, Lênin fez um discurso em defesa da revolução socialista internacional. No dia seguinte, compareceu ao Palácio de Tauride, onde se tinham instalado o governo provisório e o soviete de Petrogrado. Perante um largo público social-democrata surpreso e perplexo, ele negou apoio ao governo provisório e preconizou a transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária.
Dois artigos publicados sucessivamente no jornal bolchevique Pravda, em 7 e 9 de abril de 1917, fundamentam de forma sintética suas teses. No primeiro, “As tarefas do proletariado na presente revolução”, também conhecido por “Teses de Abril”, Lênin caracterizou o “momento atual” como “transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia […] para sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato”.
No segundo, “Sobre a dualidade de poderes”, a partir do princípio de que “o problema fundamental de toda revolução é o do poder”, ele assinala que uma “totalmente original dualidade de poder” foi instaurada pela Revolução de Fevereiro: “ao lado […] do governo da burguesia, formou-se um outro governo, […] os sovietes dos deputados operários e soldados, o qual, considerado quanto a sua composição de classe, é uma ditadura revolucionária do proletariado e dos camponeses (sob o uniforme do soldado)”.
No calor da derrubada da autocracia tsarista, os mencheviques e os socialistas-revolucionários apoiaram o governo provisório. A dualidade de poder era incontestável, mas eles podiam argumentar que a coexistência de interesses opostos constituía a regra, não a exceção, nas repúblicas democráticas burguesas. Mesmo militantes e dirigentes bolcheviques rejeitaram a proposta das “Teses de Abril” de mudança radical do programa e da tática. Lev Kamenev (1883-1936), então editor do Pravda, publicou-as com relutância, colocando uma nota em que marcou suas discordâncias.
A audaciosa lucidez das teses consistiu em sustentar que os interesses predominantes do governo provisório eram antagônicos às reivindicações fundamentais da população: paz e terra. Para atendê-las, era preciso derrubar o governo burguês e transferir o poder aos sovietes.
Pavel Milyukov (1859-1943), ministro das Relações Exteriores do governo provisório, confirmou, à sua maneira, a pertinência das posições radicais de Lênin, notadamente a paz imediata. Dirigente da ala direita dos kadets, monarquista e belicista, Milyukov enviou em 18 de abril uma nota aos aliados anglo-franceses, assegurando que a Rússia prosseguiria na guerra “até a vitória final”.
Era, pois, o próprio governo que afastava a esperança de um cessar-fogo a curto prazo. “Inteiramente atrelado ao capital imperialista anglo-francês”, do qual “o capital russo era mera sucursal”, como lembrara Lênin em suas “Cartas de longe” (escritas pouco antes de deixar o exílio suíço), o novo governo não tinha opção. Mesmo porque, iniciada a guerra, o governo francês abriu créditos de 3,5 bilhões de francos de ouro ao tsar para pagar os vencimentos anteriores dos “títulos russos”, cujo valor total superava 10 bilhões de francos de ouro; após a Revolução de Fevereiro de 1917, novos empréstimos foram feitos ao governo provisório.
À medida que as Teses de Abril iam sendo comprovadas pelo curso dos acontecimentos, esmorecia a oposição que elas tinham encontrado em núcleos importantes do Partido Bolchevique. Infatigável e pacientemente, Lênin não só participava de todas as reuniões do Partido como também percorria os quartéis e as fábricas para explicar suas teses aos soldados e aos operários. Graças a seu esforço descomunal, conseguiu convencer a maioria a apoiar a inflexão decisiva no programa e na linha política que suas teses propunham; elas foram aprovadas pela Conferência dos bolcheviques, ocorrida entre 24 e 29 de abril.
Já nos sovietes, nos quais mencheviques e socialistas- -revolucionários eram maioria, predominava o apoio ao governo provisório, do qual fazia parte, como ministro da Justiça, o dirigente socialista-revolucionário Aleksandr Kerensky. Em 3 de junho, abriu-se o I Congresso dos Sovietes de deputados operários e soldados da Rússia. Lênin defendeu as teses bolcheviques com sua habitual firmeza, enfrentando os sarcasmos dos governistas. Desafiou-os a divulgar “os lucros exorbitantes obtidos pelos capitalistas, atingindo 500% e até 800%, no fornecimento de materiais bélicos”. Bastaria prender cinquenta ou cem dos maiores milionários por algumas semanas para revelar as falcatruas que custavam todos os dias milhares e milhões ao país. Ele foi aplaudido por uma parte dos delegados, mas o Congresso acabou outorgando um voto de confiança ao governo.
Entrementes, ao assumir os ministérios da Guerra e da Marinha, Kerensky decidiu reforçar a contestada autoridade de seu governo com uma vitória militar, lançando em 16 de junho uma vasta ofensiva contra os austro-húngaros. Após um êxito inicial, os soldados se recusaram a prosseguir na ofensiva. Kerensky decidiu então enviar para a frente um destacamento do 1o Regimento de Metralhadoras, aquartelado em Vyborg, na periferia de Petrogrado.
Mas o Regimento se insubordinou, porque desde a Revolução de Fevereiro, da qual tinha sido protagonista, sua missão era defender a capital. A agitação contra a guerra se ampliou; crescia a influência dos bolcheviques entre os soldados e os marinheiros. No final de junho, fisicamente exausto e com a saúde abalada, Lênin passou alguns dias em uma aldeia finlandesa. Lá ficou sabendo que as manifestações de 3 e 4 de julho contra o governo haviam assumido prematuramente caráter insurrecional. De armas na mão, mas sem coordenação, os manifestantes travaram combates de rua contra as tropas de choque dos cossacos que permaneciam às ordens do governo. Muitos morreram; o levante foi esmagado.
A situação tornou-se extremamente perigosa para os revolucionários. O embaixador britânico G. W. Buchanan (1854-1924) exigiu a todo custo a cabeça de Lênin, em quem via, não sem lucidez, uma gravíssima ameaça. Kerensky, que assumira em julho a chefia do governo, atendeu zelosamente à exigência, prendendo alguns dos principais dirigentes bolcheviques, como Kamenev, Trótski, Lunatcharski e Aleksandra Kollontai (1872-1952).
Caluniosamente acusado pelo governo de trair o país a favor da Alemanha, Lênin passou para a clandestinidade, ocultando-se em Razliv, um subúrbio da capital. Impedido de participar presencialmente do VI Congresso do POSDR bolchevique, que se reuniu em Petrogrado de 26 de julho a 3 de agosto, ele se fez representar por Stálin (1878-1953), encarregado de sua segurança. Coube-lhe apresentar o relatório do Comitê Central e a resolução política, que preconizava a insurreição armada rumo à revolução socialista.
Ao longo de agosto, o prestígio dos bolcheviques aumentou rapidamente, permitindo ao Partido contar com cerca de 240 mil militantes. Ele aumentou mais ainda na resistência ao golpe de Estado desfechado em 27 de agosto pelo general Kornilov (1870-1918), comandante do Exército russo, que deu ordem ao 3o Corpo de Cavalaria, comandado pelo general Krymov (1871-1917), de ocupar a capital sob pretexto de evitar um golpe bolchevique. O episódio até hoje comporta zonas de sombra: Kornilov teria inicialmente agido de acordo com Kerensky, também interessado em conter a agitação revolucionária.
Mas teria tentado ultrapassá-lo, pondo-se à frente de uma ditadura contrarrevolucionária? Um mês antes, no artigo “O começo do bonapartismo”, publicado em 29 de julho, Lênin chamara a atenção para esse risco. O fato é que, perdendo o controle da intervenção militar, Kerensky rompeu com os generais e apelou para o Soviete de Petrogrado e para os guardas vermelhos. O trem que conduzia o general Krymov à capital foi detido pelos ferroviários; boa parte dos cossacos de sua escolta passou para o lado do soviete. Krymov compareceu diante de Kerensky para se justificar, mas este enviou-o a um tribunal militar. Ele preferiu o suicídio. Kornilov foi preso.
Embora os mencheviques e os socialistas-revolucionários tenham cerrado fileiras para defender o governo de Kerensky, os grandes vencedores do dramático episódio foram os bolcheviques, que constituíram o centro dinâmico da resistência ao golpe. Durante as semanas seguintes, o governo provisório perdeu a autoridade que lhe restava. A guerra se arrastava, a situação econômica se deteriorava, o horizonte se fazia mais sombrio.
Da Finlândia (onde se abrigara uma vez mais, após deixar o subúrbio de Razliv na madrugada de 8 de agosto para escapar da caçada policial), Lênin fazia chegar ao Partido análises da conjuntura em que denunciava a impotência do governo provisório perante “a catástrofe que se aproxima” (título de um alentado folheto escrito de 10 a 14 de setembro). Caracterizava a situação como revolucionária e afirmava a urgência de preparar a insurreição, cujo êxito dependia de três fatores: (a) apoiar-se não em uma conspiração nem em um partido, mas na classe de vanguarda; (b) contar com o ímpeto revolucionário do povo; (c) ocorrer em uma viragem ascendente das forças revolucionárias.
O Comitê Central recebeu com reserva o apelo à insurreição. Seus membros lembravam-se da derrota dos levantes ocorridos no início de julho. Mas, justamente, essas ações armadas, improvisadas e descoordenadas tinham sido firmemente condenadas por Lênin na ocasião, porque ainda eram grandes as ilusões populares a respeito do governo provisório. Foi por discernir com clarividência, dois meses depois, que a situação mudara radicalmente após o fracasso do putsch de Kornilov que ele considerou reunidas e amadurecidas as condições sociais para tomar o poder.
Vários dirigentes do Partido hesitaram em trilhar o caminho da insurreição. Para convencê-los, Lênin deixou em 17 de setembro o refúgio finlandês de Helsinque e retornou à Rússia de barba cortada, rosto disfarçado por maquilagem, peruca e trajes rústicos. Suas intervenções e seus escritos durante as últimas semanas de setembro concentraram-se num único e decisivo tema: organizar a tomada do poder.
Ele permaneceu três semanas na cidade portuária de Vyborg; no dia 7 de outubro, rumou para Petrogrado, onde se instalou no apartamento de Margarita Fofanova (18831976), “ardorosa bolchevique”, como registrou Nadiéjda Krúpskaia em seu precioso relato sobre os dias e as horas que precederam o levante. O apartamento ficava no bairro também chamado Vyborg, em um prédio habitado praticamente só por operários. As condições de clandestinidade eram rigorosas. Krúpskaia e Fofanova faziam os contatos; o endereço foi mantido estritamente secreto.
No dia 10, com a presença de Lênin, o Comitê Central se reuniu em outro local secreto para deliberar sobre o levante armado. Dos doze membros presentes, dez votaram a favor: Lênin, Sverdlov (1885-1919), Stálin, Dzerzhinsky (1877-1926), Trótski, Uritsky (1873-1918), Kollontai, Bubnov (1883-1938), Sokolnikov (1888-1939) e Lomov (1888-1937). Zinoviev e Kamenev votaram contra, exercendo seu direito de divergir em uma questão decisiva da história contemporânea. Não contentes, porém, publicaram no jornal menchevique Novaia Jizn declarações condenando o projeto de tomar o poder pelas armas.
Ao tornarem pública uma resolução secreta, cuja divulgação prematura só poderia favorecer o inimigo, os dois exasperaram Lênin, que os denunciou como sabotadores e pediu que fossem expulsos do Partido. Mas a dinâmica insurrecional já estava ativada e o episódio não teve maiores consequências práticas. No final da tarde de 24 de outubro, Lênin abandonou o esconderijo e dirigiu-se para o Instituto Smolny, onde se reunira o estado-maior insurrecional. Deixou a Margarida Fofanova um curto bilhete com uma afetuosa ironia: “Estou indo para onde você não queria que eu fosse. Até a vista. Ilitch”.
*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular) [https://amzn.to/3snSrKg].
Referência
João Quartim de Moraes. Lênin: uma introdução. São Paulo, Boitempo, 2024, 142 págs. [https://amzn.to/4fErZPX]
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