Por THOMAS PIKETTY*
Mario Draghi tem razão: para evitar a estagnação, a Europa precisa de investimentos.
Sejamos claros desde o início: o relatório de Mario Draghi à Comissão Europeia sobre a competitividade e o futuro da Europa vai na direção correta. Para o ex-presidente do Banco Central Europeu, a Europa precisa atingir no futuro 800 bilhões de euros em investimentos adicionais por ano – o equivalente a 5% do PIB da União Europeia (UE) –, ou cerca de três vezes o Plano Marshall (entre 1% e 2% do PIB em investimento anual no período pós-guerra).
Desse modo, o continente voltará aos níveis de investimento das décadas de 1960 e 1970. Para conseguir isso, o relatório propõe a contração de empréstimos europeus, como foi feito com o plano de recuperação de 750 bilhões de euros adotado em 2020 para fazer face à Covid-19.
Só que se trata agora de obter esses montantes todos os anos para investir de forma sustentável no futuro (especialmente em pesquisa em novas tecnologias) e não para financiar uma resposta excepcional à pandemia. Se a Europa se revelar incapaz de realizar estes investimentos, adverte o relatório, o continente entrará numa “lenta agonia” face aos Estados Unidos e à China.
Podemos discordar de Mario Draghi num certo número de pontos essenciais, em particular no que se refere à composição exata do investimento em questão, o que não é pouco. O fato é que este relatório tem o imenso mérito de torcer o pescoço ao dogma da austeridade fiscal. Segundo alguns, na Alemanha, mas também na França, os países europeus deveriam arrepender-se de seus déficits do passado e entrar numa longa fase de excedentes primários de suas contas públicas, ou seja, uma fase em que os contribuintes deveriam pagar muito mais impostos do que recebem em despesas, a fim de reembolsar os juros da dívida e o capital principal.
Na verdade, este dogma da austeridade baseia-se em disparates econômicos. Em primeiro lugar, porque as taxas de juro reais (líquidas de inflação) caíram para níveis historicamente baixos na Europa e nos Estados Unidos nos últimos vinte anos: menos de 1% ou 2%, e por vezes até níveis negativos. Isto reflete uma situação em que existe um enorme maná de poupanças, pouco ou mal utilizado na Europa e em escala mundial, pronto para entrar nos sistemas financeiros ocidentais praticamente sem retorno.
Nesta situação, cabe aos poderes públicos mobilizar esses montantes e investi-los na educação, saúde, pesquisa, etc. Quanto ao nível da dívida pública, é de fato muito elevado, mas não sem precedentes: está próximo do que se observou na França em 1789 (cerca de um ano de renda nacional), e muito inferior ao registrado no Reino Unido após as guerras napoleônicas e no século XIX (dois anos de renda nacional) e em todos os países ocidentais após as duas guerras mundiais (entre dois e três anos).
A história mostra que não é possível lidar com níveis de endividamento tão elevados através de métodos comuns: são necessárias medidas excepcionais, tais como impostos sobre os ativos privados mais elevados, como os que foram aplicados com sucesso na Alemanha e no Japão no período pós-guerra. Quando as taxas de juro reais voltarem a subir, teremos que fazer o mesmo, tributando os multimilionários e os bilionários. Alguns dirão que isso é impossível, mas na verdade é um simples jogo de escrita em computador. O mesmo não se pode dizer do aquecimento global ou dos desafios da saúde pública ou da educação, que não podem ser resolvidos com uma simples canetada.
Se olharmos agora para os detalhes das propostas do relatório Draghi, há obviamente muito a criticar, o que é muito bom. Uma vez que aceitemos o princípio de que a Europa precisa investir massivamente, é saudável que sejam expressas diferentes visões sobre o tipo de modelo de desenvolvimento e de indicadores de bem-estar que queremos promover. Neste caso, Mario Draghi apoia-se numa abordagem tecnófila, mercantil e consumista bem tradicional.
Ele enfatiza subsídios públicos em grande escala para investimentos privados em tecnologia digital, inteligência artificial e meio ambiente. Mas podemos pensar legitimamente que a Europa deve, ao contrário, aproveitar a oportunidade para desenvolver outros modos de governança e evitar dar, mais uma vez, plenos poderes a grandes grupos capitalistas privados para gerir nossos dados, fontes de energia ou redes de transportes.
Mario Draghi prevê também um investimento puramente público, por exemplo, na pesquisa e no ensino superior, mas de uma forma demasiadamente elitista e restritiva. Ele propõe que o Conselho Europeu de Pesquisa financie diretamente as universidades (e não apenas projetos de pesquisa individuais), o que seria excelente. Infelizmente, o relatório propõe que se concentre apenas em alguns centros de excelência nas grandes cidades, o que seria economicamente perigoso e politicamente inaceitável. A saúde pública e os hospitais estão quase totalmente ausentes do relatório.
De um modo geral, para que um plano de investimento como esse seja adotado, é essencial que os territórios e regiões mais desfavorecidos se beneficiem dele e recebam recursos massivos e visíveis. Se a França, Alemanha, Itália e Espanha, que representam três quartos da população e do PIB da zona euro, conseguirem chegar a um compromisso equilibrado e inclusivo do ponto de vista social e territorial, será possível avançar sem esperar pela unanimidade e com o apoio de um grupo central de países (como previsto no relatório Draghi). É este o debate que a Europa deve agora iniciar.
*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca). [https://amzn.to/3YAgR1q]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Publicado originalmente no jornal Le Monde.
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