Literatura na quarentena: Marrom e Amarelo

Imagem_Elyeser Szturm
image_pdf

Por Daniel Brazil*

Comentário sobre o mais recente romance de Paulo Scott

Outro dia, numa conversa de amigos sobre literatura, confessei minha implicância com finais abertos. Na maioria das vezes, parece que o autor não soube como terminar a história. Fui devidamente esculhambado pelos interlocutores, final fechado é coisa do século XIX, narrativa com começo-meio-e-fim é algo careta, assim como a palavra careta. Felizmente estávamos num bar, e não num simpósio.

Relembrei meus tempos de estudante de cinema, do impacto que me causou assistir filmes de mestres como Antonioni e Fellini com geniais e inovadores finais abertos (nos anos 1960!), e de como isso se tornou fórmula simplista nas décadas seguintes, banalizando um recurso que rompia com a narrativa tradicional, mas que logo foi absorvido pelo “sistema”.

Parece ser um estigma das estéticas do século XX do pós-guerra, em todas as artes. Brilharem por algum tempo e depois serem canibalizadas pela incansável e voraz tribo dos diluidores. Efeito perverso da era das comunicações, onde toda novidade é copiada ad nauseam. Não há achado interessante no cinema, por exemplo, que não seja vulgarizado pela publicidade um ano depois. Nas artes plásticas, então, melhor nem comentar. Aspirante a artista de Xiririca da Serra copia o que causou impacto no MoMA no mês anterior, graças à internet.

Todo esse preâmbulo é pra tentar disfarçar o impacto que me causou a leitura do romance Marrom e Amarelo (Alfaguara, 2019), do gaúcho Paulo Scott. Autor premiado e estimado pela crítica, Scott encara o desafio de desenvolver um romance sobre a questão racial brasileira sem parecer panfletário ou sabichão. E manda muito bem!

Lourenço e Federico são irmãos, um mais “marrom”, outro mais “amarelo”, nascidos em Porto Alegre. Federico é o narrador, militante, dirigente de ong, que é convidado a participar em Brasília de um grupo ministerial voltado para a questão das cotas raciais nas universidades. Perto dos 50 anos, fracassado na vida amorosa, relembra momentos cruciais da infância e juventude vividos com o irmão “mais preto”, hoje técnico de basquete da seleção gaúcha.

A narrativa nervosa flui com facilidade, à medida em que novos ingredientes são acrescentados à trama. A sobrinha Roberta é presa numa manifestação estudantil, e Federico retorna a Porto Alegre para ajudar o irmão. O pai, policial aposentado, nunca discutiu racismo dentro de casa. A mãe, idem. O diálogo entre as três gerações não será fácil.

Quase nunca é, independente do tema. Mas Paulo Scott consegue com sabedoria mesclar dilemas familiares, lembranças estudantis, amores erráticos, amizades (e inimizades) que atravessam décadas, orquestrando tudo de forma coerente. Traçou um retrato atualíssimo dos efeitos do racismo numa família negra de classe média, sem apelar para ancestrais africanos ou rituais de candomblé. O patriarca reza um Pai Nosso antes das refeições, e isso é de uma ironia fina, sem julgamento de valor.

Marrom e Amarelo é, desde já, obra fundamental de ficção a enfocar de maneira realista a questão racial no século XXI, num país onde a democracia plena já não respira, e a democracia racial nunca existiu. Mais que tudo, um grande romance, bem escrito, contundente e necessário. Apesar do final aberto…

Um grande romance, admiravelmente bem escrito, contundente e necessário. Apesar do final aberto…

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

REFERÊNCIAS

Marrom e Amarelo Capa comum – Agosto 2019 – Paulo Scott (https://amzn.to/47AdRE9)

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES