Por GUSTAVO CAPONI
O homem que enfrenta a patrulha
Em seu ensaio “Nuestro pobre individualismo”, Borges alude a uma noite que deixaria em evidência a raiz hispânica da literatura argentina; e que também permitiria entender um elemento típico de nossa cultura. Borges fala dessa “desesperada noite na que um sargento da polícia rural gritou que não ia consentir o delito de que se matasse a um valente, ficando a pelear contra seus soldados, junto ao desertor Martin Fierro”. Entrar em conflito com a autoridade, enfrentar o instituído, e saber desprezar a cobertura falaciosa da lei, e da ‘moral’, para assim ficar do lado justo, que sempre é o lado do oprimido: eis aí atitudes que as boas argentinas e os bons argentinos consideram como expressão das virtudes fundamentais. Essas virtudes são a coragem e a antipatia pelos que levam a de ganhar já antes de começarem a briga. É claro, entretanto, que a amplíssima maioria das argentinas e argentinos não está à altura dessas virtudes: nem todos somos, nem de longe, as Mães e as Avós da Praça de Maio. Mesmo assim, porém, a maior de nós reconhece e admira essas virtudes, embora quase nunca as honre; e só uns poucos cínicos as negariam explicitamente.
Esse culto do ‘homem que enfrenta à patrulha’ não só encontrou sua expressão em Martín Fierro e no sargento Tadeo Cruz, que ficou do seu lado. Borges também refere aos gaúchos Hormiga Negra e Juan Moreira, que ademais de personagens literários também foram lendas populares. Eles também foram exemplos claros desse culto: ambos, inclusive, morrem enfrentando a patrulha depois de sempre ter vivido brigando com dela. Mas Borges também alude ao gaúcho Dom Segundo Sombra, cujos atributos só têm sentido se a gente chega a pensar que “em potência ou no passado”, ele pôde, ou poderia, ter enfrentado essa circunstância sem a qual a valia de um argentino, e de uma argentina, nunca fica totalmente comprovada. É claro, todavia, que é possível mencionar muito mais exemplos desse tipo de heróis. ‘Um certo capitão Rodrigo’ também entraria na lista, ratificando a raiz rio platense da cultura do Rio Grande do Sul. E ainda haveria que mencionar a personagens não literários que ingressaram no mundo da mitologia argentina pelo fato de ter encarnado o espírito de Martin Fierro. O ‘Gauchito Gil’ seria um caso paradigmático; e também o Che Guevara: que viveu e morreu servindo a esse arquétipo.
Porém, embora doutra forma, esse também foi o caso de Maradona. Ademais de seu humilhante talento e de sua estonteante efetividade como jogador de futebol, Maradona sempre viveu enfrentando apatrulha. Essa patrulha podiam ser os empresários do futebol argentino e internacional, o jornalismo hipócrita e classista de Buenos Aires; mas também todos os valores e instituições de uma ordem social na qual Maradona nunca acreditou. Inteligente como era, ele sempre soube qual teria sido seu lugar no mundo, não fosse a excelência de suas pernas e a velocidade de seus cálculos no campo de jogo. Ele nunca esqueceu que era um ‘pibe de Villa Fiorito’; e nunca deixou de manifestar seu desprezo por aqueles cujo único mérito era ser os ‘donos da bola’. Entre a torcida e os dirigentes, ele sempre ficou do lado da torcida. Entre os dirigentes e os jogadores, sempre ficou do lado dos jogadores. E assim sempre: entre os ‘pibes de Villa Fiorito’ e os poderosos, ele sempre optou pelos ‘pibes’. Isso aconteceu em todos os planos e em todas as circunstâncias: sem medir riscos; e ele sempre o fez alegremente, da mesma forma na que jogava bola. Por isso o admiramos tanto assim.
Mas é claro: viver enfrentando sempre patrulha não é fácil; isso tem custos. Optar sempre por se desmarcar do instituído é perigoso; porque obriga a transitar por atalhos mau sinalizados e insuficientemente iluminados: trilhas que bordeiam precipícios, sem que haja nenhum guard-rail que assim o indique. Aí, ademais, nesses margens, a gente pode terminar muito mal acompanhado, e ainda encarando brigas desnecessárias. Brigas aceitas pelo simples gosto de ratificar a própria coragem, se mostrando indomável. Esse, porém é um risco inevitável. Todos os heróis a la Martin Fierro o correram; isso faz parte da sua essência. Aliás, a maior parte deles sucumbiu justamente por isso. Assim foi com Juan Moreira, com Hormiga Negra, com o ‘Gauchito Gil’, e com o Che. E assim foi com o Maradona. Foi, em nessas más brigas, sempre acontecidas ‘en una esquina cualquiera’, aonde lhe fizeram essas feridas que, ao final, acabaram por matá-lo. Mas há que aceitá-lo: esse era seu destino; e é por tudo isso que agora já está nesse lugar de privilégio que ele sempre ocupará no panteão dos grandes mitos argentinos: perto do Mono Gatica, e nem tão longe assim do Che.
*Gustavo Caponi é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).