Mecanismos de alocação de capital

Imagem: Parrish Freeman
image_pdf

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O sistema financeiro global é uma dança complexa entre o risco volátil da renda variável e a segurança relativa da renda fixa, onde nenhum dos lados dita sozinho as regras do jogo

1.

Em Economia de Mercado de Capitais (EMC), a alocação de capitais em escala global se dá por regulação dos valores de mercado das ações, isto é, cotações em bolsas de valores em função da maximização do valor para o acionista (MVA) em cada empresa aberta transnacional.

Em Economia de Endividamento Público e Bancário (EEPB), a alocação de capital se dá pela possibilidade de alavancagem financeira da rentabilidade patrimonial do capital próprio com tomada de empréstimo de capital de terceiros, sendo definida pela fixação da taxa de juros básica de maneira arbitrária pelo Banco Central (BC).

Por um lado, na primeira, como na americana, predomina renda variável com maior volatilidade e, portanto, risco. Por outro lado, na segunda, como a brasileira, predomina renda fixa (no Brasil pós-fixada) a partir da taxa de juros acima da taxa de inflação com menor risco.

Nessa comparação instigante, há elementos de verdade, mas também vários matizes e correções importantes. Vou analisar essa questão em partes e verificar se há confronto com as afirmações da literatura mainstream. Cabe ver onde há concordância e onde há desacordo, e quais contraexemplos ou limitações se impõem.

Na questão proposta, há dois tipos de mecanismos de alocação de capital. Na EMC, há alocação global de capital via valores de mercado de ações, influenciado pela maximização do valor para acionistas de empresas transnacionais. Predomina renda variável, risco alto, volatilidade.

Na EEPB, há alocação via alavancagem do capital próprio com capital de terceiros, regulada pela taxa de juros básica, definida por Banco Central. Na economia brasileira, predomina a renda pós-fixada com menor risco.

A comparação se baseia em verdades, mas pode ser questionada por generalizar demais algumas hipóteses. Devo acrescentar observações de acordo com teoria e evidência empírica.

Condiz com a teoria e as evidências empíricas o chamado shareholder value ser adotado como imperativo dominante em muitas empresas transnacionais. A teoria do shareholder primacy (maximização do valor para acionistas) foi estabelecida desde os anos 1980.

2.

Em consequência, decisões de investimento de longo prazo em inovação e até mesmo a negociação de salários ficariam subordinadas à política de retorno financeiro com as ações no curtíssimo ou médio prazo.

Quanto à volatilidade maior nos ativos de renda variável é consensual, na economia americana, as ações (equities) terem retorno médio mais alto diante títulos de renda fixa, mas apresentarem maior risco (volatilidade) de perdas. Os investidores aceitam esse risco em troca do equity risk premium – o retorno esperado maior associado ao risco de mercado acionário.

O papel da taxa de juros básica como instrumento de política do Banco Central é crucial, “lá e cá”, isto é, nos Estados Unidos e no Brasil. Bancos centrais têm como função definir a taxa de juros de referência (overnight ou similar) para controlar a demanda agregada, o crédito bancário e daí a inflação. Essa taxa afeta todos os outros juros no sistema – empréstimos, captações, títulos públicos.

Em regimes com elevada inflação ou instabilidade, juro real elevado (pós-fixado acima da taxa de inflação) se torna um meio de preservação patrimonial também. Daí a renda fixa se torna um instrumento de enriquecimento menos arriscado, com retorno previsível.

Títulos públicos, obrigações ou títulos de dívida em geral oferecem remuneração em juros fixos ou pós-fixados, e têm menor risco de grande oscilação de valor se comparados com ações. Muitas pessoas físicas ou instituições financeiras usam renda fixa para preservação de capital ou fluxo de caixa seguro, especialmente quando avessas ao risco ou quando horizonte de investimento é curto.

Onde a comparação entre EMC e EEPB falha ou é imprecisa diz respeito à “taxa de juros básica fixada arbitrariamente pelo BC” não ser totalmente arbitrária. Na maioria dos regimes, o BC ajusta taxa de juros com base em metas de inflação, expectativas, equilíbrio macroeconômico, câmbio, crescimento, desemprego.

Não seria, então, pura vontade da maioria dos membros do Comitê de Política Monetária (COPOM) por haver restrições políticas, institucionais e de credibilidade. Além disso, os porta-vozes do mercado, entre os quais o jornalismo econômico, costumam pautar e antecipar decisões do Banco Central do Brasil e incorporarem expectativas no preço de ativos ou nos juros de longo prazo.

Empresas transnacionais também dependem de endividamento e de condições de juros. Mesmo em regime de shareholder value, muita alocação de capital se faz via emissão de dívida, interna ou externa. O custo dessa dívida depende da taxa de juros, do risco país etc.

3.

Assim, a EMC não funciona isoladamente da EEPB, porque há interdependência. O retorno da renda fixa também apresenta risco, especialmente devido à inflação diante juros prefixados (“eutanásia do rentista”) e risco de crédito (calote do devedor).

Se os juros nominais não compensarem a inflação esperada, ou se houver desvalorização da moeda, ou risco de default, a renda fixa não seria “segura”. Por exemplo, em investimentos em títulos públicos com juros prefixados de países emergentes com inflação instável, o retorno real se torna negativo.

Por isso, mesmo há diversificação entre ambos os regimes e classes de ativos. A maioria dos investidores institucionais e até de famílias ricas diversificam portfólio entre renda variável e fixa, para balancear risco-retorno.

O modelo ideal-tipo “tudo em ações” ou “tudo em títulos” raramente é seguido in totum. Por exemplo, nos Estados Unidos, prega-se a adoção da regra prática 60-40: diversificar a carteira de ativos com 60% em ações e 40% em títulos de renda fixa.

Portanto, embora tenha uma lógica real na distinção apresentada, mercados de capitais enfatizam risco/volatilidade/valor de ações. Já regimes de endividamento público/bancário enfatizam juros fixos ou pós-fixados e menor volatilidade, dados os ajustes contínuos.

Em conclusão, o Banco Central não fixa juros “arbitrariamente”, o risco da renda fixa não é zero, e os dois regimes (EMC e EEPB) coexistem e interagem. A maximização do valor do acionista, a taxa básica de juros e o comportamento agregado dos investidores formam um sistema complexo – e não dicotômico puro.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES