Não sobrará país algum

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MAURICIO FALAVIGNA*

Enquanto no mundo começa-se a discutir um certo valor ao trabalho e ao Estado social, aqui mais que a primazia absoluta do mercado, ainda buscamos o desmantelamento do Estado

“A liberdade leva à desordem, a desordem à repressão, e a repressão novamente à liberdade.”
(Balzac)

Como em todas as ocasiões em que há propostas e discussões caras ao governo e a sua base de apoio, os assuntos na mídia tergiversam para polêmicas em torno da figura do presidente e de agressões calculadas. Enquanto as privatizações, a reforma administrativa e a manutenção do teto de gastos são as obsessões do momento, surgem disparates que ocupam o espaço dos noticiários. Desta vez a própria mídia se colocou à disposição para criar os factoides, já que houve pouca diferença entre o editorial da Folha e a ameaça de agredir um jornalista.
Mas a comédia humana também inclui a vida real e, portanto, voltando às intenções do governo…
Enquanto o mundo liberal indignou-se no primeiro momento com a quantidade de provas e argumentos levantados por Piketty que comprovam que, se há uma normalidades incontestável é a de que o livre mercado não distribui a riqueza, mas gera desigualdade crescente e cria oligarquias cujo objetivo final é o de abarcar o Estado e minar qualquer aspiração democrática, hoje essas ideias já foram assimiladas por importantes atores políticos do mundo civilizado.

Partidos de esquerda e centro-esquerda validaram essa argumentação no debate político, e até mesmo parte do discurso liberal assimilou o golpe. A forma do capitalismo passou a ser questionada, assim como a do papel social do Estado, as ideias de taxação progressiva, de impostos sobre os ricos e uma necessária redução das desigualdades.
No entanto, por aqui, a selvageria dos anos 80 faz sucesso com a elite. Guedes deve ter sua sala decorada com cartazes de Tatcher e Reagan em cores berrantes. Se considerarmos a cena histórica como o embate político entre Capital e Trabalho (o que não há em Piketty), foi um período em que os interesses dos trabalhadores foram massacrados por políticas antissindicais, desemprego e achatamento salarial. Primeiro se deu a perda do governo, em seguida a desmobilização e a crise salarial e de emprego, por fim uma perda política que aproximou até os partidos de oposição da agenda liberal.
Em Piketty, quando afirma que o retorno sobre o capital sempre supera o crescimento da renda, é colocada uma contradição capitalista. Para Marx seria uma regra ou lei: é o desequilíbrio de poder entre Capital e Trabalho que leva a essa constante. E a história nos mostra que isso vai até levar o achatamento do consumo a níveis em que não se absorve o produto do capital. E, quando se necessita de um aumento de demanda, volta-se a dar um certo valor ao trabalho e ao Estado social. E os caminhos para isso vêm sendo discutidos no cenário internacional.
Mas aqui caminhamos no sentido oposto, percorremos a primeira estrada, hoje globalmente questionada. E, mais que a primazia absoluta do mercado, ainda buscamos o desmantelamento do Estado. Tanto a inação em áreas sociais, quanto reforma administrativa e as almejadas privatizações carecem de sentido lógico, mas liquidam qualquer controle estatal sobre o jogo econômico e reduzem consideravelmente as possibilidades de investimento. Sem contar áreas sociais, que ficariam à mercê da filantropia e da iniciativa privada – duas fontes de investimento que jamais reduziram a desigualdade, que mantêm o status quo. A liberdade do mercado leva ao desespero e aos gritos, estes farão nascer a repressão e o jogo deveria seguir até a retomada do poder por valores que privilegiem a visão do trabalhadores. Mas que Estado sobrará após essa devastação?
O mais impressionante, no caso brasileiro, é a voz única que ecoa nos debates públicos construídos pela mídia. Por mais que haja personagens que se esgoelem contra a política econômica deste governo, não encontraremos um depoimento sequer em noticiários que aponte a irracionalidade do teto de gastos, da criminalização do funcionalismo público, das privatizações de setores estratégicos, do esfacelamento de empresas como a Petrobras, Correios, Caixa e Banco do Brasil. Os interesses do capital são mascarados como forças naturais, como a única estrada a trilhar.
Piketty entrevê soluções políticas para o horror capitalista, enquanto Marx disseca o horror da vida sob esses princípios. Como leitores ávidos de Balzac, com mais ou menos ódio, ambos usam como exemplo o mesmo ser humano para pintar o egoísmo e a ganância que se espraiam pelas relações humanas. Mas, seja nos tons pastéis de Piketty, ou na paleta expressionista do alemão, ambos sabem que, na selvageria dessa reconstrução da realidade brasileira levada a cabo pela primazia do mercado, como diria o romancista, o “privilégio de sentir-se em casa em qualquer lugar pertence apenas aos reis, às prostitutas e aos ladrões”. Não sobrará país algum.

*Mauricio Falavigna é historiador. Autor do livro Inclusão digital – vivências brasileiras.

Publicado originalmente no site reconta aí

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Afrânio Catani José Dirceu Manchetômetro Sandra Bitencourt Ladislau Dowbor Claudio Katz Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Daniel Afonso da Silva Henry Burnett Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Ronald Rocha Antonio Martins Mariarosaria Fabris Julian Rodrigues Luiz Renato Martins Dennis Oliveira Ronaldo Tadeu de Souza Celso Frederico Matheus Silveira de Souza Marcos Silva Leonardo Boff José Luís Fiori Francisco Pereira de Farias Caio Bugiato José Micaelson Lacerda Morais Antonino Infranca Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Fernão Pessoa Ramos Marcus Ianoni Plínio de Arruda Sampaio Jr. Annateresa Fabris Berenice Bento Ricardo Abramovay Airton Paschoa Rafael R. Ioris Rubens Pinto Lyra Vladimir Safatle Luciano Nascimento Anderson Alves Esteves Francisco de Oliveira Barros Júnior Remy José Fontana Chico Alencar Jorge Branco Valerio Arcary João Lanari Bo Rodrigo de Faria Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Guimarães Lima Marcos Aurélio da Silva José Geraldo Couto Daniel Costa Michel Goulart da Silva Marilena Chauí Jorge Luiz Souto Maior Walnice Nogueira Galvão Eugênio Bucci Vanderlei Tenório Ricardo Fabbrini Leonardo Avritzer Carlos Tautz André Singer Alysson Leandro Mascaro José Machado Moita Neto Eleutério F. S. Prado Francisco Fernandes Ladeira Eliziário Andrade Alexandre de Lima Castro Tranjan Celso Favaretto Thomas Piketty Andrés del Río Leonardo Sacramento Milton Pinheiro Benicio Viero Schmidt Ricardo Musse Lincoln Secco José Costa Júnior Eugênio Trivinho Manuel Domingos Neto Juarez Guimarães Lucas Fiaschetti Estevez Atilio A. Boron Bruno Machado André Márcio Neves Soares Eduardo Borges Fábio Konder Comparato Vinício Carrilho Martinez Marilia Pacheco Fiorillo José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Gilberto Lopes Tarso Genro Gabriel Cohn Antônio Sales Rios Neto João Carlos Loebens Igor Felippe Santos Samuel Kilsztajn Chico Whitaker Érico Andrade Carla Teixeira Tales Ab'Sáber João Paulo Ayub Fonseca Renato Dagnino Paulo Nogueira Batista Jr Lorenzo Vitral Priscila Figueiredo Salem Nasser Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Martins Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Boaventura de Sousa Santos Dênis de Moraes Anselm Jappe Luiz Eduardo Soares Gerson Almeida Paulo Fernandes Silveira Paulo Capel Narvai Bento Prado Jr. Liszt Vieira Alexandre Aragão de Albuquerque Denilson Cordeiro Ronald León Núñez Ari Marcelo Solon Jean Pierre Chauvin Armando Boito Mário Maestri Heraldo Campos Luís Fernando Vitagliano João Feres Júnior Gilberto Maringoni Fernando Nogueira da Costa Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Werneck Vianna Otaviano Helene Andrew Korybko Kátia Gerab Baggio Marcelo Módolo João Carlos Salles Bernardo Ricupero Eleonora Albano Osvaldo Coggiola Michael Roberts Luiz Roberto Alves Luis Felipe Miguel Luiz Bernardo Pericás Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marjorie C. Marona Flávio Aguiar Slavoj Žižek Jean Marc Von Der Weid Ricardo Antunes Tadeu Valadares Daniel Brazil Elias Jabbour Paulo Sérgio Pinheiro

NOVAS PUBLICAÇÕES