Por VITOR SILVEIRA*
Uma grande massa de pessoas gastando parte significativa de seus recursos em serviços intangíveis é algo que ocorre apenas há algumas décadas
Os bens de consumo intangíveis não são nenhuma novidade, talvez o mais antigo desta classe seja o ensino. Embora possa parecer um tanto esdruxulo qualificá-lo assim, fato é que há séculos as pessoas pagam alguém que sabe mais sobre um determinado tema para que transmita esse conhecimento e o valor que é pago não se materializa em algo palpável.
Quem sabe pudéssemos incluir o pagamento por proteção, seja estatal ou privada, na lista, mas aí não há certeza, pois um guarda parado em frente à sua porta é tangível, já pagar impostos ou uma taxa de proteção para os criminosos locais não é tangível, na verdade você paga para que algo de ruim nunca se materialize.
Contudo, uma grande massa de pessoas gastando parte significativa de seus recursos em serviços intangíveis é algo que ocorre apenas há algumas décadas. O cinema em certa medida foi pioneiro em massificar esse fenômeno, embora o teatro e o circo sejam antiquíssimos. Mas aí também há certa controvérsia: quando se vai em um concerto, a um espetáculo ou assistir a um filme, o objetivo real também pode ser um passeio com os amigos regado a bebidas variadas ou mesmo flertar com alguém interessante e nesse caso, se concretizando o flerte, teremos (com sorte) algo tangível.
A chegada da televisão à cabo, nos anos 1980, foi outro grande passo para a indústria cultural. Ali assentou-se o habito de pagar por um bem de consumo individual, privativo e de uso continuo. Para convencer as pessoas a pagarem por algo que sempre foi grátis, o chamariz foi oferecer canais sem intervalos comerciais, é claro que quando a audiência estava consolidada os anúncios voltaram com toda força.
Hoje, no entanto, é comum alguém assumir o compromisso de pagar mensalmente por uma dúzia de produtos intangíveis e a internet é principal habitat deles, começando pelo provedor de acesso à rede. Se quiser mais privacidade contrate um VPN, um serviço de e-mail premium é usado por alguns, se quer ouvir músicas assine uma plataforma de áudio, para assistir aos esportes pode-se pagar individualmente por cada campeonato, se você prefere os filmes e as séries ai as opções são vastas, há dezenas destas plataformas à disposição de quem ainda tiver algum dinheiro sobrando. Aliás, as plataformas de áudio e vídeo representam um novo nível de consumismo nesta área, já que apesar de terem apenas um par de olhos e ouvidos, muitas pessoas assinam todos os serviços de streaming conhecidos pelo homem.
Mas é claro que isso ainda é muito pouco para o capitalismo, sempre voraz por novas formas mercadorias que garantam a sua (impossível) eterna expansão. Surge então a novíssima geração dos bens intangíveis, os tais NFT’s, em português algo como, produtos sem preço especificado.
Para quem não tem acompanhado de perto esse assunto ou mesmo não tem ideia do que se trata, peço desculpas antecipadas pela explicação pobre que darei. Mesmo tendo estudado o tema, também não entendi direito e duvido que alguém o tenha. Eu arriscaria dizer que são títulos de propriedade intelectual sobre arquivos digitais, tais como fotos, GIF’s ou mesmo texto e música. Você paga para ser o dono, de forma exclusiva ou não, de uma obra artística totalmente digital. Até aí tudo bem, nada de muito confuso ou tão inovador, afinal sempre houve quem pagasse para ser o único dono de pinturas ou esculturas por exemplo, embora nestes casos o objeto de contemplação estivesse bem ali na sua sala. Entretanto, os tempos são outros e já que hoje tudo é digital, é normal que as obras de arte repousem no HD do computador e não na parede, sem problemas, sinceramente acho uma boa coisa para os artistas, especialmente os visuais, esse novo mercado.
Quando, porém, se dá um passo a mais para tentar entender esse tal mercado as coisas começam a ficar realmente confusas. Por exemplo, alguns dos NFT’s mais valorizados são memes que viralizaram nas redes sociais e quando você compra os direitos autorais da pessoa que supostamente o criou (sim, a comprovação do verdadeiro autor é muitas vezes difícil) está pagando por um arquivo idêntico àquele que todos baixaram gratuitamente. Mas enfim você tem a propriedade intelectual do tal arquivo e com ela você pode… vender o meme para outra pessoa?!
Normal também, diriam os defensores desta tecnologia, nada de mais, a especulação é algo intrínseco ao mercado da arte. E já que seu meme ficou tão valorizado por ter sido compartilhado por milhões de pessoas, o melhor é que ele continue sendo distribuído livremente e chegue à casa dos bilhões de compartilhamentos, certo? Ao que parece não, alguns “proprietários” já ameaçaram processar todos aqueles que de alguma forma usem os seus (?) arquivos. E como saber se você pode compartilhar aquela montagem engraçada ou usar aquela ilustração como foto de perfil sem medo de receber uma visita do oficial de justiça? É para lá de confuso, em alguns casos chega mesmo ao nonsense.
Outro exemplo, um grupo de fãs do livro/filme Duna se juntou para comprar por milhões de dólares um NFT que mostrava um sketchbook usado na primeira adaptação para o cinema do romance de Frank Herbert. Gastaram uma fortuna achando que estavam adquirindo os direitos autorais da obra de ficção cientifica mais vendida de todos os tempos, mas levaram apenas uma foto do tal caderno de rascunhos. Acredite! Não foi nem mesmo o sketchbook o que eles compraram de fato, mas apenas uma fotografia deste.
Ainda está achando pouco? Bem, nunca subestime a criatividade dos mestres do capitalismo, pois agora, graças à outra tecnologia, você pode também pagar uma boa grana por uma roupa de marca ou um carrão novo que só existem de fato na forma de zeros e uns. Na verdade, esse comércio de itens de acesso exclusivo já existe dentro de alguns games há bastante tempo, mas agora, com o Metaverso do Facebook, muitas marcas do mundo real já estão vendendo seus produtos em versão intangível no tal universo virtual imersivo…
Por enquanto a coisa é ainda muito incipiente e o dito metaverso parece mais um videogame de 20 anos atrás, aonde os produtos não são lá muito atrativos nem mesmo para os mais consumistas, mas a tendência é que num futuro não muito distante um tênis da moda custe o mesmo preço para ser usado por você no mundo real ou por seu avatar no mundo virtual. Em uma sociedade como a nossa, obcecada pela imagem e pela diferenciação através do consumo, é perfeitamente plausível.
*Vitor Silveira é graduado em comunicação social, escritor e fotógrafo. Autor entre outros de Uma Vez Na Estrada.