Por IURI TONELO*
Prefácio do livro recém-lançado.
A crise econômica internacional de setembro de 2008 atingiu em cheio o coração do sistema financeiro e representou uma inflexão histórica. A imagem mais marcante de seu estopim foi a bancarrota do quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos, o Lehman Brothers. Dada sua dimensão, as consequências de sua falência não se restringiram à esfera das finanças, mas afetaram toda a economia mundial.
Contudo, tanto o alcance dessa inflexão quanto o significado dessa crise não podem ser definidos recorrendo apenas à análise econômica, pois as determinações dessa transformação percorrem as diversas esferas da sociedade, entrelaçando a economia com a política, as disputas geopolíticas e as distintas formas de conflito entre o capital e o trabalho, bem como a dimensão cultural nas mais variadas formas de sentir e pensar. É nesse sentido que o estudo aqui apresentado não se restringe à área econômica, ou seja, não se trata de um estudo sistemático sobre as determinações econômicas da crise, mas centra-se nas transformações que vêm ocorrendo no capitalismo internacional a partir desta e, especialmente, nos saltos de qualidade em sua dinâmica nesta última década, a saber, a inflexão de 2008 e os aspectos de sua consolidação em 2016.
O primeiro impacto, no ano de 2008, foi, sem dúvida, o momento deflagrador do sentido “inflexivo” na dinâmica internacional que queremos abordar ao longo destas páginas. Para oferecer uma primeira dimensão desse processo, começamos por citar uma passagem de O capital, de Karl Marx, mais precisamente de seu livro terceiro, visto que, no pós-Lehman Brothers, o seguinte trecho sobre as razões da crise ganhou certa notoriedade entre os estudiosos da obra:
Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da conversibilidade das letras de câmbio em dinheiro. Mas a maioria dessas letras representa compras e vendas reais, cuja extensão, que vai muito além das necessidades sociais, acaba servindo de base a toda a crise.
Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras que representa apenas negócios fraudulentos, que agora vêm à luz e estouram como bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias desvalorizados, ou até mesmo invendáveis, ou refluxos de capitais que jamais se realizam. Esse sistema artificial inteiro de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser remediado fazendo com que um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra, conceda a todos os especuladores, com suas cédulas, o capital que lhes falta e compre todas as mercadorias depreciadas a seus antigos valores nominais. Além disso, aqui tudo aparece distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o preço real e seus fatores reais; o que se vê são apenas barras, dinheiro metálico, cédulas bancárias, letras de câmbio e títulos.
Essa destacável conclusão sobre a crise do capital se tratava, na realidade, de uma anotação do manuscrito que o pensador alemão não conseguiu publicar em vida e que coube a Friedrich Engels, seu grande amigo e cofundador das bases do materialismo histórico, elaborar na forma de livro. Pareceu chocante a muitos leitores do século XXI a atualidade que os escritos de Marx ganharam à luz dos impactos da corrente crise. A chamada crise financeira, nascida no coração do capitalismo mundial, a “demanda violenta de meios de pagamento”, significou a falência de poderosas instituições financeiras, bancos de investimento e seguradoras, choque entre capitais, intervenções colossais dos Estados, disputas entre monopólios, embates entre países, tensões e conflitos entre classes. Na essência do processo, estava o que está na “base de toda crise”, mas com as dimensões da hiperfinanceirização, que atingiram um grau inimaginável para economistas do século XIX ou mesmo da primeira metade do século XX.
A crise de 2008 não poderia se dar de maneira diferente: a própria natureza econômica de toda crise, “a conversibilidade de letras de câmbio em dinheiro”, ou de títulos hipotecários em juros mensais, como na crise dos subprimes, implica uma quebra abrupta do esquema de reprodução do capital, que tende a reorganizar de forma repentina o seu funcionamento. Isso significa que, no interior da crise, expressa-se com força a violenta passagem da redistribuição do lucro entre os capitais para a concorrência abrupta, canibalesca e destruidora do capital financeiro. Por isso, focar a própria dinâmica do capital é crucial para entender o desenrolar da crise, já que esse típico desenvolvimento interno dos choques de capitais é um dos motores que libera a energia da “bomba” que vemos no mundo dos fenômenos, ou seja, nos jornais, nas mídias, nas redes sociais, sobre o tamanho da crise e os impactos econômicos e sociais.
Nesse ponto, consideramos importante assinalar uma primeira consideração metodológica: ainda que, do ponto de vista da exposição, a abordagem da dinâmica do capital possa ser feita separadamente, é preciso partir de que, no movimento real, ela está integrada e multideterminada por fatores econômicos e extraeconômicos. Além disso, se temos em mente que a produção e a reprodução são determinantes, torna-se fundamental incorporar a ideia de que o conjunto dos outros fatores (políticos, sociais, ideológicos) também influencia decisivamente a dinâmica do capital. Dessa maneira, nosso desafio será conectar o que aparece separado na realidade, uma vez que “o todo”, dizia Aristóteles, “é necessariamente anterior à parte”.
A complexidade da clivagem de 2008 está precisamente nesta tensão: a combinação de elementos clássicos da crise econômica, que fizeram O capital de Karl Marx se tornar, de certa forma, mais atual do que nunca, complementada pelo fato de esses elementos se darem num tabuleiro histórico “não clássico”, ou seja, em um cenário internacional advindo de um longo período de relativa estabilidade do capital, entendida em termos econômicos, políticos e mesmo sociais. Em outras palavras, os desdobramentos econômicos da crise atual vão se conectar com o conjunto dos fatores subjetivos (políticos e ideológicos) de modo bastante distinto da crise de 1929, por exemplo, e essa é uma das chaves para se entender o processo que tem início em 2008.
Embora hoje não restem dúvidas de que se tratou de uma crise de dimensões históricas, desvelar a conexão das contradições econômicas (que levaram à crise) com o conjunto dos fatores políticos e sociais em nível internacional se revela como um dos grandes desafios da última década. Além disso, essa conexão não deve ser tomada apenas do ponto de vista do desenvolvimento futuro, mas também por meio de um olhar que mire o passado. As heranças das décadas neoliberais marcaram decisivamente a crise de 2008 em seus aspectos objetivos (sobretudo, econômicos), mas também subjetivos. Esses últimos podem ser sintetizados na observação de que a classe traba- lhadora chegou despreparada política e organizativamente para imprimir uma resistência substancial às “soluções do capital”, fato que se atesta desde os inícios da crise, particularmente no período dos planos de austeridade. Ou seja, avivou-se como poucas vezes na história a máxima de Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”.
Daqui se depreende uma segunda consideração metodológica que também se refere ao coração deste livro e à forma como foi pensado: o fato de almejarmos investigar a conexão entre os fatores econômicos e extraeconômicos está longe de nos dar uma compreensão de estudar a totalidade entendida como um conjunto infinito e inesgotável de determinações. Na realidade, com o ponto de vista da totalidade, podemos abordar as mais distintas formas de ser e seus fenômenos, dos mais simples e imediatos (com determinações de fácil observação) àqueles de dimensão multideterminada nas mais distintas áreas, podendo-se exemplificar tal percurso metodológico, seja por meio do estudo de grandes processos históricos, enigmas e interpretações de obras literárias, seja por meio da reflexão sobre as leis da física quântica na atualidade, para citar algumas possibilidades. Entretanto, nessa forma de pensar a investigação, uma abordagem que Marx faz em uma passagem dos Grundrisse nos parece de fundamental importância: para que o investigador não se desvie nesse caminho dialético da totalidade em uma busca indefinida de informações, o que resultaria em um percurso ineficaz no mar inesgotável da história, é crucial que se distingam os momentos predominantes no interior do conjunto de determinações possíveis a se investigar; do contrário, mesmo uma ciência específica seria inviável, não passando de uma desgovernada navegação no mar inesgotável da realidade.
Por fim, essas considerações levaram a um último aspecto para dar suporte ao nosso estudo da dinâmica do capitalismo internacional a partir da crise econômica de 2008: ter em vista que, na virada do século XIX para o século XX, produziu-se uma das mais valiosas contribuições para o estudo das metamorfoses do capital, quando adentramos na era do capital financeiro. Tal estudo teve no livro O capital financeiro, de Rudolf Hilferding, uma base econômica fundamental, mas foi na obra de Lênin, Imperialismo, fase superior do capitalismo, que atingiu o ponto alto da reflexão, uma pequena obra que conseguiu concatenar os aspectos econômicos, geopolíticos e políticos para encarar o problema de entender em que dinâmica adentrávamos, então, no capitalismo internacional. A concentração e a exportação de capitais, a formação de monopólios e de associações monopolistas e a partilha do mundo entre potências são alguns dos elementos econômicos que configuraram o sentido da mudança de época do modo de produção capitalista, passando de um capitalismo em que predominava a livre concorrência para um capitalismo em que predominam o capital financeiro e os monopólios, definido em termos, já clássicos nos dias de hoje, como época imperialista. Sem nos prolongarmos muito nessa explicação, partimos de que a base teórica que servirá a este livro está nas elaborações de Marx sobre as formas de capital, presentes no Livro III de O capital, e as subsequentes transformações, em especial a expansão e predominância do “capital financeiro” (Finanzkapital) na nova fase do capitalismo na virada do século XX, chamada de “época imperialista” por Lênin. Tendo isso em vista, no estudo da crise atual e de seu desenvolvimento, buscamos investigar quatro fatores fundamentais: a dinâmica do capital; os efeitos da crise no mundo do trabalho; os conflitos diretos e indiretos entre capital e trabalho – a partir de trabalhadores, mas também em movimentos de massa, movimentos sociais e fenômenos políticos –; e, por fim, a crise das ideias do período anterior e as ideias que (res)surgem a partir da crise. Em suma, nossos objetos são, dessa maneira, capital, trabalho, conflitos, ideias.
Se com isso podemos ter uma base metodológica a partir da qual pensar a estrutura global da reflexão sobre a dinâmica internacional do capitalismo, o conteúdo concreto só poderia se dar no estudo histórico da crise de 2008 e seus efeitos. Analisar o processo da crise em seu desenvolvimento implica partir de um fenômeno atual, além de altamente dinâmico e fluido. Isso significa que existe um componente objetivo, um processo interno da crise, mas também a constante intervenção dos sujeitos (governos, bancos e monopólios de um lado e, de outro, a ação subjetiva da classe trabalhadora nas suas distintas formas), o que dificulta enormemente a apreensão do desenvolvimento da crise em categorias fixas. Tal visão se reafirma com uma consideração feita por Engels ao examinar economicamente um largo período histórico, quando ele escreve o prefácio ao livro As lutas de classes na França, em que Marx busca compreender uma importante virada na dinâmica internacional do capitalismo com a Primavera dos Povos em 1848, tendo em vista a história francesa.
Comenta Engels: “ Na apreciação de acontecimentos e séries de acontecimentos a partir da história atual, nunca teremos condições de retroceder até a última causa econômica. Mesmo nos dias de hoje, em que a imprensa especializada pertinente fornece material em abundância, ainda é impossível, inclusive na Inglaterra, acompanhar dia após dia o passo da indústria e do comércio no mercado mundial, assim como as mudanças que ocorrem nos métodos de produção, de tal maneira que se possa fazer, a todo momento, a síntese desses fatores sumamente intrincados e em constante mudança, até porque os principais deles geral- mente operam por longo tempo ocultos antes de assomar repentina e violentamente à superfície. A visão panorâmica clara sobre a história econômica de determinado período nunca será simultânea”.
Engels, já no século XIX, alertava contra a visão vulgar de que seria possível fazer uma apreciação completa simultânea de um dado curso histórico-econômico, devido às dificuldades de se conhecer o conjunto das determinações para a análise do capitalismo global. Na atualidade, paradoxalmente, se a velocidade das informações alcançou, por um lado, níveis inimagináveis para a época do pensador alemão, por outro, a complexidade das estruturas econômicas industriais, bancárias e financeiras dificulta bastante a análise da crise do capital – isso sem falar da complexidade das estruturas socioeconômicas em geral, bem como políticas, culturais etc., as quais potencializam essa dificuldade. Em outras palavras, embora seja da própria essência do materialismo histórico analisar os fenômenos em sua transitoriedade, o estudo da crise implica uma dialética radical, por se tratar, em geral, de um fenômeno de impacto abrupto e consequências internacionais em distintas esferas.
Nesse sentido, é bastante difícil para a análise de processos vivos da atualidade definir com clareza – ainda mais que nossa temática é a análise de um grande processo internacional como a crise econômica e seus efeitos na dinâmica capitalista em seu conjunto – em que ponto se localizam os saltos de qualidade, ou seja, onde residem os pontos de inflexão que marcam grandes linhas divisórias na história, sabendo ainda que, como totalidade orgânica e dinâmica, essas “linhas”, essas inflexões, têm algo de analítico e epistemológico, não são só ontológicas. Isso porque, no plano histórico, o que observamos é um todo dinâmico e relativamente indivisível, e o que fazemos é traçar demarcações, isto é, analisar o processo de forma a delinear algumas características marcantes que possam ser parte de um todo orgânico e que, ao mesmo tempo, denotem transformações de qualidade.
Tendo colocado tais considerações, o que sustentamos neste livro pode ser sintetizado na ideia de que o ano de 2008 marca uma inflexão histórica, com “o começo do fim” da configuração neoliberal e “globalizante” do capital, tal como se deu nos anos 1990 e parte da década de 2000. Esse processo de transformação da dinâmica do capitalismo começa com o crash financeiro de 2008, mas vai paulatinamente implicando metamorfoses no próprio capital, no mundo do trabalho, em conflitos políticos e sociais e em mudanças ideológicas que marcam o período de interregno entre 2008 e 2016. A partir de então, vão se acentuando os determinantes no sentido de que entramos em uma nova dinâmica, ou dito em termos mais simples, em uma nova fase, com feições distintas da neoliberal das décadas anteriores, mas carregando a contradição da impossibilidade de o capital encontrar um padrão de acumulação internacional que ofereça alguma estabilidade e uma marca econômica a esse novo momento. Assim, o período pós-2016 apontou para um desenvolvimento mais conflituoso, com mais elementos de nacionalismo econômico, protecionismo, corrida tecnológica (sendo a última expressão as tecnologias 5G), um novo quadro expresso sobretudo pela ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e o conflito geopolítico – tendo em vista a chamada “guerra comercial” – com a China.
Buscamos aqui abordar as mudanças após 2008 em seus fundamentos mais estruturais de transformação na dinâmica do capital e do trabalho, e não apenas nas conformações políticas internacionais em seu aspecto conjuntural, já que pode haver avanços e retrocessos na influência de forças políticas “globalizantes” e “neoliberalizantes”, tendo em vista, por exemplo, a importância das eleições estadunidenses ocorridas nos últimos meses de 2020, nas quais Joe Biden foi eleito presidente. Sendo assim, o que se defende neste livro é que a crise de 2008 significou uma transformação indeclinável a uma nova dinâmica do capitalismo neoliberal dos anos 1990 e suas formas de equilíbrio instável, para além dos fluxos e refluxos das tendências políticas vigentes no capital imperialista internacional.
Resta dizer que o essencial das linhas deste livro foi escrito a partir do estudo do período entre 2008 e 2018. Logo após esse período, caberia destacar 2019, em que uma onda marcante da luta de classes tomou distintos países, e 2020, quando estivemos diante de uma nova crise de envergadura aparentemente maior que a Grande Recessão que aqui analisamos, no contexto da pandemia de covid-19. Assim, este estudo buscou contribuir para a compreensão das principais tendências vigentes no tabuleiro do capitalismo internacional até então, analisando o desenvolvimento da economia, as novas configurações geopolíticas e os embates da luta de classes. A importância disso é perceber os limites da estabilidade do capital para além das aparências. Afinal, mesmo que capitalismo venha reafirmando seu triunfalismo na superfície das últimas décadas, ele não pode impedir as crises que suas contradições periodicamente trazem à tona; dito em outras palavras (como as de Galileu Galilei), “no entanto, ela se move”.
*Iuri Tonelo é pesquisador de pós-doutorado na USP. Autor, entre outros livros, de A crise capitalista e suas formas (Iskra, 2016).
Referência
Iuri Tonelo. No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo. São Paulo, Boitempo, 2021, 288 págs.