Por SERGIO SCHARGEL*
Desde o início dos anos 2000 cresce em quantidade e potência movimentos e regimes autoritários ao redor do planeta
A primeira coisa que precisamos levar em consideração é que há, em curso, um processo global de fragilização democrática que já data de quase duas décadas, de acordo com órgãos que medem a saúde da democracia, como o V-Dem e a Freedom House. A maior parte dos pesquisadores concordam que desde o início dos anos 2000 cresce em quantidade e potência movimentos e regimes autoritários ao redor do planeta, colocando em xeque o mito da estabilidade da democracia liberal no pós-Guerra Fria.
Então, antes de tudo, precisamos pensar nos elementos internacionais que fomentam a ascensão de partidos extremistas, principalmente, mas não apenas, na direita. A crise econômica de 2008, as medidas de austeridade tomadas por consequência, a Guerra da Síria e a imigração maciça à Europa, todos esses elementos se somaram e contribuíram para um ponto fundamental à ascensão do extremismo: o sentimento de antipolítica.
É claro que há diversos elementos idiossincráticos da própria Itália que tornaram possível a chegada ao poder do partido Irmãos da Itália, e não vamos conseguir pensar em todos aqui. Mas podemos rascunhar algumas hipóteses. Para começar, a Itália é um país que sempre flertou com o autoritarismo. Ao contrário da Alemanha, que sofreu um processo enorme de desnazificação – e ainda assim continuou com alguns movimentos nazistas e neonazistas – a Itália nunca fez as pazes com o seu passado fascista.
O fascismo nunca desapareceu por completo do debate público no país, ainda que tenha se tornado uma força minoritária. Foi evoluindo, absorvendo novos elementos (algo que o próprio Mussolini também fez com bastante frequência em seus 20 anos de governo), mas permaneceu na política, enrustido, velado, às vezes explícito quando o tempo se mostrava propício.
A surpresa não é a vitória de uma primeira-ministra de extrema direita, seja ela pós-fascista, fascista, neofascista, populista, reacionária, ou qualquer outro conceito que se queira usar. Há anos a Itália era uma das principais candidatas a ter um chefe de governo do tipo. A surpresa é ter sido o Irmãos da Itália, que até então não estava entre as principais forças políticas do país.
A falta de um processo de desfascistização na Itália, como ocorreu com a Alemanha (e mesmo assim a Alemanha lida com um partido como a Alternative für Deutschland, que já chegou a ser a terceira força no país), fez com que a sua democracia sempre fosse instável. Silvio Berlusconi já flertava com o fascismo no início dos anos 2000, quando declarava sua simpatia por Mussolini. Chegou a colocar fascistas declarados em sua coalizão, com o Movimento Social Italiano-Direita Nacional, partido herdeiro do Fascismo Italiano. Matteo Salvini já é uma força no país há anos, assim como o Lega Nord. A neta de Mussolini foi parlamentar europeia.
Os sinais de instabilidade na democracia italiana aparecem na dificuldade que seus chefes de governo têm em manter-se no poder. Sistemas de governo parlamentaristas tendem à volatilidade por natureza, mas a Itália exagera nesse ponto. Foram 70 primeiro-ministros em pouco mais de 70 anos, uma média de pouco mais de um ano por governo. No mesmo período o Reino Unido teve 16. Essa instabilidade política e democrática se reflete sobre o eleitor, que tende a achar que pouco importa o seu voto, ou que todo político é igual.
Nada é mais revelador do que o nível histórico de abstenção nessas eleições italianas. É um fenômeno que se repete quase sempre que um líder extremista é eleito. Quando há um aprofundamento na distância entre representante e representado, entre os eleitores e os candidatos, aliado com outros elementos que falamos aqui como crise econômica, crise social, crise sanitária, etc., crescem discursos que criminalizam a política. O que chamamos de antipolítica. Os eleitores se tornam, nesses cenários, predispostos a conceder uma chance a alternativas fora do establishment. Crescem figuras messiânicas, com discursos que simplificam a política, como se somente com uma figura forte o suficiente seria possível retomar o país à grandeza, mudar tudo o que há de errado.
Vi muita gente falando que a vitória de Giorgia Meloni não é tão preocupante, por ela ter supostamente moderado o discurso. Alguns chegam a dizer que ela agora se tornou de centro-direita. Nenhum chefe de governo governa sozinho, ainda mais em um sistema parlamentarista. Giorgia Meloni vai, sim, precisar fazer concessões constantes, para todos os lados do espectro.
Só que historicamente ocorre um fenômeno com a eleição de líderes de extrema direita: eles se encontram em um ponto de inflexão com o establishment. E ninguém melhor do que a própria Itália para mostrar isso. É paradoxal, mas é preciso que o establishment tolere a ascensão de uma figura outsider que ataque eles próprios, ou esse líder não consegue fazer muito.
Há um mito sobre a Marcha Sobre Roma: a de que ela foi um golpe de Estado. Não foi. Teve pretensões golpistas, certamente, mas Mussolini chegou a chefe de governo dentro da lógica legal da Itália da época, nomeado pelo chefe de Estado. O seu autoritarismo foi crescendo ao longo dos anos, e em seu início foi forçado a governar com uma coligação liberal-conservadora. A Itália só passa a ter um regime efetivamente fascista quatro anos depois, com o autogolpe em 1926. Giorgia Meloni, tal como Mussolini e qualquer líder extremista antes e depois, não chegou ao poder sozinha, não vai governar sozinha. Resta saber o quanto conseguirá avançar suas pautas, e o quanto terá que conceder.
Não creio que veremos um novo regime fascista na Itália, o contexto geopolítico é outro. Mas há diferença entre um movimento fascista e um regime ou Estado fascistas. Ainda é muito cedo para prever como vai ser o governo de Giorgia Meloni, ou sequer se vai durar. Mas do ponto de vista democrático é, sim, profundamente preocupante. Mesmo com todos os elementos que apontamos aqui, ainda é bastante sintomático que a terceira maior economia da União Europeia tenha eleito um governo de extrema direita. Nos resta acompanhar e torcer para que o centenário da Marcha Sobre Roma não seja marcado por uma ironia histórica.
*Sergio Schargel é doutorando em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
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