Por Remy J. Fontana*
Canudos e as favelas e periferias pobres do Brasil seguem a mesma lógica perversa e dizimadora
“Never”, como sabemos, não é propriamente um nome de uma pessoa, embora tenha sido desta forma que ela respondeu a inquirição sobre como se chamava. E não o fez por capricho ou coqueteria, nem porque de fato assim se chamasse, por mais estranho que fosse, mas para resguardar a última chama que lhe restava de sua condição humana. Tendo perdido tudo, pago um preço alto demais para viver uma realidade que agora lhe aparecia como uma loucura, só lhe parecia restar seu nome, o qual não entregaria a ninguém, nem que a destroçassem ou “se a fizessem em pedaços”. Esta resolução tinha “algo de imutável, indiscutível e definitivo”.
Nem seu nome real, àquela altura e naquelas circunstâncias, lhe conferia uma identidade indiscutível, sua marca pessoal, reveladora de uma personalidade única, de vez que um nome, para não ser apenas um registro cartorial ou uma inscrição vocabular abstrata, só adquire plena validade para designar uma pessoa quando vem associado ao histórico de seus relacionamentos e referido aos contextos e vivências que lhe imprimem um caráter singular, de tal forma que a pessoa faz o nome, não o nome a pessoa.
Que importância teria um nome em meio aquela hecatombe, da qual saia como uma figura deplorável, como um trapo humano? Que possível correspondência ainda haveria entre seu corpo esquálido, sua alma, se ainda a tivesse, e um nome, o seu próprio ou um outro qualquer?
O fato de utilizar uma palavra estrangeira indicava que não se tratava de uma nativa da terra, embora estivesse num solo pátrio recém devastado pela barbárie de um massacre, onde a morte se anunciou com o estrondo do bombardeamento da incipiente república.
A personagem, ficcionalizada pelo húngaro Sandor Marai, emergia da brutal dizimação do reduto de Canudos, uma das raras sobreviventes, na reconstrução que faz do clássico brasileiro: “Um dia comecei a escrever sobre o que acreditava ter ficado ´de fora` do livro de Euclides da Cunha – ficara de fora, mas ´poderia também ter sido assim`”.
A ignomínia terminara em 5 de outubro de 1897, após quatro expedições militares, ao longo de dez meses, quando de sete a dez mil soldados, àquela altura quase tão maltrapilhos quanto seus adversários, oito anos após a Proclamação da República, liquidaram nove mil famintos, cadavéricos, enlouquecidos, os rebeldes de Canudos e seu líder, profeta, Antônio Maciel, o Conselheiro.
Se a “questão social” como caso de polícia, tem sido uma das clássicas expressões do domínio secular que atravessa a história de iniquidades deste país com respeito às classes subalternas, talvez pudéssemos ampliar a fórmula, adaptando-a, designando a “questão da miséria” como caso de exército.
Na validação desta semântica trágica bastaria invocar dois exemplos pretéritos, Canudos e Contestado, e um atual, de uma atualidade que segue a mesma lógica perversa e dizimadora, a das favelas e periferias pobres do Brasil.
Nos três casos, diferentemente do que teria proclamado o Marechal Bittencourt em Canudos, a jovem república não levava triunfalmente ao sertão a bandeira das “ideias democráticas”, a não ser pela reiteração do cinismo, e pelo discurso mistificador que atravessa os tempos, os tempos da história de nosso país.
Talvez não seja fortuito o fato de designar de “favela” – um dos morros nas cercanias de Canudos -, os ajuntamentos nos morros e periferias destituídas de nossas cidades, cujo movimento demográfico remonta a população expelida do sertão à toque de varras, bazucas ou miséria desde a escravidão colonial, adentrando à república, primeiro militarizada, depois oligarquizada e na sequência carente de consistência quanto aos seus valores, e efetividade quanto aos seus mecanismos e instituições.
Mas vamos indo em direção ao banheiro, ou mais precisamente, à gamela.
Os três rebeldes prisioneiros, trazidos à presença do marechal que conduzira o genocídio, pelos andrajos que lhes cobriam as peles ressequidas de sol, manchadas de sangue e cheirando à pólvora mal se distinguiam. Soubera-se que entre eles uma era mulher, mas como reconhecê-la sob tais condições?
“Qual dos três era ela?”
Nenhum traço, nenhuma percepção ajudavam a desvendar a condição feminina entre os que se apresentavam apenas com trapos e ossos. Por exclusão, depois de algum escrutínio identificador de um mestiço, pelo chapéu, e de um preto, pelo cachimbo de barro aderido ao peito, restou a terceira pessoa, indistinta pelo “gênero”, nem masculina, nem feminina. Ao marechal, sem outra opção, coube instruir um soldado, já que achava indigno dirigir-se diretamente àquela “escória,” que perguntasse qual era a mulher.
“A mulher sou eu,” soou uma voz rouca e com acento estranho.
“Eu sou o marechal. O que você quer?”
Como estabelecer uma comunicação em tais circunstâncias, em que de um lado, abatida, está prostada uma criatura a quem o silêncio se impõe diante da dificuldade de formulação de ideias ou da mera articulação de palavras e, de outro lado reina soberana a imposição de um marechal, como que presidindo uma corte marcial?
É nestas condições que é interpelada sobre o paradeiro do Conselheiro, se estava vivo, o que pretendia fazer, quem era ela, ao término do que repete o marechal “O que você quer?”
O que poderia querer esta mulher?
No caso da senhora “Never”, no entanto, estamos distantes das sofisticadas e abstratas elaborações da psicanálise quanto ao que querem as mulheres, e mais próximos, melhor, dentro da realidade objetiva das condições abjetas que tornam a vida de muitos “…pobre, grosseira, animalizada e breve”.
“O que você quer?”
Abrindo os olhos, com voz rouca e grave, disse:
“Quero tomar um banho.”
O que poderia ser tomado apenas por compreensível desejo de alguém em tais lamentáveis condições, encobria uma dimensão profunda, vinda não só de suas entranhas ou da superfície da pele que implorava por águas reparadoras a conferir-lhe higiene e bem-estar. O que estava em curso, e o que buscava meio inconscientemente, era um ritual de recuperação da dignidade afrontada e anulada; o que pretendia em meio ao estupor em que se achava era recobrar o sentido de si mesma, redescobrir-se como pessoa dotada de humanidade, para além da animalidade radical da qual penosamente emergia dos meses de privação, miséria e agora de sobrevivente da chacina do arraial do Conselheiro, que a tinham degradado mais que uma enfermidade letal.
Quando nada resta, quando tudo parece perdido, quando a derrota escancara sua brutalidade, quando a vida, ela mesma reduzida a um sopro tênue que parece conceder uma última mirada ao que foi, este é o momento de uma epifania possível ou de um irremediável colapso.
Desnudar-se, entrar numa banheira improvisada, numa tenda de campanha, expondo um corpo emaciado aos olhares, entre perplexos e concupiscentes, de alguns militares poderia constituir um obstáculo insuperável ao pudor feminino.
Se era o seu corpo que, graças as efusões das águas claras e frescas, revelava-se antes pelos olhos dos outros do que dos seus próprios, era por uma percepção interior que reavia a identidade de si mesma a cada movimento que fazia para desprender-se das placas tectônicas de pó, pólvora e sangue; até ao ponto de assenhorear-se por inteiro não apenas do que explicitamente a denunciava como uma mulher – que mesmo a esqualidez de suas carnes não ofuscava a exuberância sensível de suas formas -, mas também ao ponto de recobrar a disposição de um espírito altivo, que agora a fazia encarar com destemor e serenidade seus algozes.
Retomado o domínio sobre seu corpo, agora irrigado pelo sangue quente e perfumado pelo sabonete de almíscar cedido pelo marechal, emergia transfigurada, numa metamorfose que perturbava os sentidos de masculinidades longamente privadas do desafogo de suas pulsões, e mais ainda perturbadora por revelar-se como uma estrangeira culta, naquela terra de caboclos miseráveis dizimados pela violência “civilizatória” do novo regime.
Aquela era uma mulher “de verdade”, aos olhos surpresos dos oficiais, que os agradecia pelo banho com um “Thank you, gentlemen”, com a segurança moral de quem sabia que uma derrota por mais acachapante – embora não fosse combatente, como esposa de um médico que estava circunstancialmente em Canudos -, ou uma luta fracassada, não precisa curvar a espinha dos que apenas defendem suas vidas, nem baixar seus queixos ou afrouxar a postura.
Agora podia responder às inquietações do marechal quanto ao destino do Conselheiro, que não lhe cortaram a cabeça, mas, ao contrário, que lhe enviava o recado de estar vivo, e que os canhões eram inúteis, porque embora tivessem destruído Canudos, amanhã haverá dez Canudos no Brasil. “E depois de amanhã, cem”.
Em meio a tais dúvidas sobre a possível reaparição do rebelde, ou de outros místicos, “profetas bárbaros” a agitar o sertão, temeroso de uma opinião pública amedrontada, que agora levara o povo das cidades a celebrar nas ruas o esmagamento “daquela gente perigosa”, o marechal temia um escândalo político se não fosse capaz de mostrar a cabeça do Conselheiro.
E esta preocupação do militar, temeroso de um ressurgir do espectro selvagem da revolta, talvez tenha sido desde então uma das matrizes do contínuo sufocamento deste mesmo povo, reposto em sucessivas gerações em sua miserável condição, à espreita de uma fresta libertária, por onde viria um novo líder messiânico, novamente a lhe frustrar as esperanças, até o momento em que descobrir que só pode ampliá-la, por onde possa avançar, quando confiar em suas próprias forças, sabendo organizá-las, para então banhar-se nas límpidas águas de uma liberdade conquistada.
A imagem da sobrevivente de Canudos saindo “gloriosamente” de seu banho poderia ser interpretada, na condição de uma mulher comum, como uma Marianne dos revolucionários franceses, ou nem tanto comum, como a nossa Marielle, como símbolo da liberdade, tomando o lugar do místico, do ícone religioso ou do líder populista.
Parodiando “a árvore da liberdade” dos radicais de 1789, quem sabe não instituíssemos uma “banheira da liberdade” para os nossos” feios, sujos e malvados” para celebrar os novos tempos, aqueles que ainda não chegaram, infelizmente.
*Remy J. Fontana, sociólogo, é professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referência
Sandor Marai, Veredicto em Canudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.